Por Bruno Fiuza*
Especial para o Viomundo
Uma das grandes
novidades que as manifestações de junho de 2013 introduziram no panorama
político brasileiro foi a dimensão e a popularidade que a tática black bloc
ganhou no país.
Repito: dimensão e
popularidade – pois, ao contrário do que muita gente pensa, esta não foi a
primeira vez que grupos se organizaram desta forma no Brasil, e muito menos no
mundo.
Aliás, uma das questões
que mais saltam aos olhos no debate sobre os black blocs no Brasil é a
impressionante falta de disposição dos críticos em se informar sobre essa
tática militante que existe há mais de 30 anos.
É claro que ninguém que
conhecia a história da tática black bloc quando ela começou a ganhar
popularidade no Brasil esperava que os setores dominantes da sociedade nacional
tivessem algum conhecimento sobre o assunto.
Surgida no seio de uma
vertente alternativa da esquerda europeia no início da década de 1980, a tática
black bloc permaneceu muito pouco conhecida fora do Velho Continente até o fim
do século XX.
Foi só com a formação de
um black bloc durante as manifestações contra a OMC em Seattle, em 1999, que as
máscaras pretas ganharam as manchetes da imprensa mundial.
Natural, portanto, que
muita gente ache que a tática tenha surgido com o chamado “movimento
antiglobalização” e tenha se baseado, desde o início, na destruição dos
símbolos do capitalismo.
O que realmente assusta
é a ignorância e a falta de disposição de se informar sobre o assunto
demonstradas por certos expoentes e segmentos da esquerda tradicional
brasileira.
O desconhecimento e a
falta de informação levaram grandes representantes do pensamento crítico
brasileiro ao extremo de qualificar a tática black bloc de “fascista”.
Ao se expressarem nesses
termos, esses grandes lutadores, que merecem todo o respeito pelas inúmeras
contribuições que deram à organização da classe trabalhadora no Brasil ao longo
de suas vidas, caíram na armadilha de reproduzir o discurso da classe dominante
diante de toda forma de contestação da ordem vigente que não pode ser
imediatamente enquadrada em categorias e rótulos familiares.
Ao não compreenderem a
novidade do fenômeno tentaram enquadrá-lo à força em esquemas conhecidos.
Fetichização
Essa incompreensão
aparece, de cara, na própria linguagem usada tanto pela mídia conservadora
quanto por certos setores da esquerda tradicional para se referir à tática
black bloc.
Em primeiro lugar, usam
um artigo definido e letras maiúsculas para se referir ao objeto, como se “o
Black Bloc” fosse uma organização estável, articulada a partir de algum obscuro
comando central e que pressupusesse algum tipo de filiação permanente.
Ora, tratar um black
bloc desta forma seria o mesmo que tratar uma greve, um piquete ou uma
panfletagem como um movimento.
Talvez a melhor forma de
começar a desfazer os mal-entendidos sobre os black blocs seja combater a
fetichização do termo.
Como chegou ao Brasil
por influência da experiência americana, essa tática manteve por aqui seu nome
em inglês, mas não é preciso muito esforço para traduzir a expressão.
Por mais redundante e
bobo que possa parecer, nunca é demais lembrar que um “black bloc” (assim, com
artigo indefinido e em letras minúsculas) é um “bloco negro”, ou seja: um grupo
de militantes que optam por se vestir de negro e cobrir o rosto com máscaras da
mesma cor para evitar serem identificados e perseguidos pelas forças da
repressão.
Fazer isso não significa
se filiar a uma determinada organização ou movimento. Da mesma forma que
operários que decidem fazer um piquete para impedir a entrada de outros
trabalhadores em uma fábrica em greve não deixam de fazer parte de seus
respectivos sindicatos para ingressar em uma misteriosa sociedade secreta.
Eles apenas optaram por
uma determinada tática de luta. É exatamente o que fazem os militantes que
decidem formar um bloco negro (leia-se, “black bloc”) durante uma manifestação.
Não há dúvida de que a
opção pelo anonimato e a disposição para o enfrentamento com a polícia são
peculiaridades que diferenciam profundamente o bloco negro de outras táticas,
mas nem por isso a opção por esse tipo de ação dá margem para confundi-la com
um movimento.
Aí entramos em um
segundo ponto fundamental para a discussão da tática black bloc: seus métodos.
De cara, é preciso esclarecer que os próprios métodos dos black blocs mudaram
ao longo do tempo e por isso é fundamental conhecer o contexto histórico, político
e social em que nasceu e se desenvolveu essa tática.
A origem
Os primeiros black blocs
surgiram na então Alemanha Ocidental, no início dos anos 1980, no seio do
movimento autonomista daquele país.
Como o movimento
autonomista europeu é muito pouco conhecido no Brasil (para não dizer
completamente desconhecido), quem quiser se informar melhor sobre o assunto
pode recorrer a um ótimo livro sobre o tema escrito pelo militante e sociólogo
americano George Katsiaficas: “The Subversion of Politics – European Autonomous
Social Movements and the Decolonization of Everyday Life”, disponível para
download no site do autor (http://www.eroseffect.com).
Surgido a partir da
experiência da autonomia operária na Itália dos anos 1970, o autonomismo se
espalhou pela Europa ao longo das décadas de 1970 e 1980.
Um dos países onde o
movimento mais se desenvolveu foi na Alemanha. Fiel ao espírito revolucionário
original do marxismo, mas renegando o fetiche pelo poder das burocracias
sindicais e partidárias, o autonomismo se desenvolveu como um conjunto de
experimentos sociais organizados por setores que optaram por se manter à margem
do modo de vida dominante imposto pelo capitalismo e criar focos de
sociabilidade alternativos no seio das próprias sociedades capitalistas, mas
pautados por valores e práticas opostos aos dominantes.
Na Alemanha Ocidental, o
movimento autonomista surgiu no fim dos anos 1970, quando grupos começaram a
organizar ações diretas contra a construção de usinas nucleares no interior do
país por meio da criação de acampamentos nos terrenos onde as centrais seriam
erguidas.
O mais famoso deles foi
a República Livre de Wendland, um acampamento criado em maio de 1980 na cidade
de Gorleben, na região de Wendland, no norte da Alemanha, onde estava prevista
a construção de uma usina nuclear.
Enquanto os acampamentos
antinucleares surgiam no interior da Alemanha Ocidental, em grandes cidades,
como Berlim e Hamburgo, grupos de jovens e excluídos começaram a ocupar imóveis
vazios e transformá-los em moradias coletivas e centros sociais autônomos.
Assim nasceram os
primeiros squats alemães, inspirados pela experiência de grupos que já faziam
isso havia anos na Holanda e na Inglaterra.
A mobilização contra a
construção de usinas nucleares no interior e as ocupações urbanas nas grandes
cidades se tornaram os dois pilares do movimento autonomista alemão.
Para os envolvidos
nesses processos, a criação de espaços autônomos era uma forma de
questionamento da ordem capitalista na prática, por meio da criação, no interior
da própria sociedade capitalista, de pequenas ilhas onde vigoravam relações
sociais opostas às vigentes no entorno dominante.
Obviamente, quando
acampamentos e squats começaram a proliferar pelo país, o governo da República
Federal Alemã se deu conta de que era preciso cortar pela raiz aquela agitação
social.
Em 1980, lançou uma
grande ofensiva policial contra acampamentos antinucleares e squats em
diferentes partes do país.
A República Livre de
Wendland foi desarticulada em junho, e os squats de Berlim sofreram um violento
ataque policial em dezembro.
Diante da ofensiva
policial, os militantes alemães se organizaram para resistir à repressão e
proteger seus espaços de autonomia. Desse esforço nasceu a tática black bloc.
Durante a manifestação
de Primeiro de Maio de 1980, em Frankfurt, um grupo de militantes autonomistas
desfilou com o corpo e o rosto cobertos de preto, usando capacetes e outros
equipamentos de proteção para se defender dos ataques da polícia.
Por causa do visual do
grupo, a imprensa alemã o batizou de “Schwarzer Block” (“Bloco Negro”, em
alemão).
Desse momento em diante,
a presença de blocos negros se tornou um elemento constante nas ações dos
autonomistas alemães, e sua função original era a de servir de força de
autodefesa contra os ataques policiais às ocupações e outros espaços autônomos.
Um relato em alemão
sobre o surgimento dos black blocs pode ser encontrado no seguinte endereço:
http://www.trend.infopartisan.net/trd0605/t370605.html.
O caminho para Seattle
Da Alemanha, a tática se
difundiu pelo resto da Europa, e, no fim dos anos 1980, chegou aos Estados
Unidos, onde o primeiro bloco negro foi organizado em 1988, para protestar
contra os esquadrões da morte que o governo americano financiava em El
Salvador.
Uma ótima fonte sobre a
história dos black blocs nos Estados Unidos é o livro “The Black Bloc Papers”,
editado por David Van Deusen e Xavier Massot e disponível para download em
http://www.infoshop.org/amp/bgp/BlackBlockPapers2.pdf.
Ao longo dos anos 1990,
outros black blocs se organizaram nos Estados Unidos, mas a tática permaneceu
praticamente desconhecida do grande público até que um bloco negro se organizou
para participar das manifestações contra a OMC em Seattle em novembro de 1999.
Graças à ação desse
black bloc, a tática ganhou as páginas dos grandes jornais no mundo inteiro,
principalmente porque, a partir de Seattle, os black blocs passaram a realizar
ataques seletivos contra símbolos do capitalismo global.
A mudança se explica pelo
contexto em que se formou o black bloc de Seattle. A década de 1990 foi a era
de ouro das marcas globais, quando os logos das grandes empresas se
transformaram na verdadeira língua franca da globalização.
Nesse contexto, o ataque
a uma loja do McDonald’s ou da Gap tinha um efeito simbólico importante, de
mostrar que aqueles ícones não eram tão poderosos e onipresentes assim, de que
por trás da fachada divertida e amigável da publicidade corporativa havia um
mundo de exploração e violência materializado naqueles logos.
Ou seja: o black bloc de
Seattle inaugurou uma dimensão de violência simbólica que marcaria
profundamente a tática a partir de então.
Daquele momento em
diante, os black blocs, até então um instrumento basicamente de defesa contra a
repressão policial, tornaram-se também uma forma de ataque – mas um ataque
simbólico contra os significados ocultos por trás dos símbolos de um
capitalismo que se pretendia universal, benevolente e todo-poderoso. Foi nesse
contexto que a tática chegou ao Brasil.
Os primeiros black blocs no Brasil
Os acontecimentos de
Seattle levaram grupos de militantes brasileiros a se articular em coletivos
para construir no país o movimento de resistência mundial à globalização
neoliberal.
Assim surgiram os
núcleos brasileiros da Ação Global dos Povos, uma rede de movimentos sociais
surgida em 1998 que criou os dias de Ação Global, articulações mundiais para
organizar protestos simultâneos em várias partes do planeta contra as reuniões
das instituições internacionais que sustentavam26 de setembro de 2000, marcado
contra a reunião do FMI em Praga.
Nesse dia, em São Paulo,
um grupo de manifestantes atacou o prédio da Bovespa, o que gerou confronto
entre policiais e ativ a globalização neoliberal.
O primeiro Dia de Ação
Global que contou com ações no Brasil foi istas. Na época, o incidente não
ganhou destaque na imprensa e o termo “black bloc” não foi mencionado, mas a
lógica da ação desses militantes, em sua maioria ligados ao movimento anarcopunk
de São Paulo, seguia a lógica da tática black bloc.
O segundo Dia de Ação
Global que contou com atos no Brasil foi 20 de abril de 2001. Em São Paulo, foi
organizada uma manifestação na Avenida Paulista como parte dos protestos
convocados em todo o mundo contra a Cúpula das Américas, reunião realizada na
cidade de Quebec, no Canadá, na qual líderes dos países do continente
discutiram a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).
Essa foi a primeira vez
que uma manifestação contra a globalização neoliberal realizada no Brasil
ganhou as manchetes da imprensa nacional.
Em São Paulo, um grupo
entre os manifestantes adotou a mesma tática do black bloc de Seattle, em 1999,
e atacou símbolos capitalistas na
Avenida Paulista, como uma loja do McDonald’s.
Mais uma vez, a imprensa
nacional não fez referência ao termo “black bloc”, mas a tática utilizada na
Paulista foi claramente a dos blocos negros.
O curioso é que a mesma
edição de 21 de abril de 2001 da Folha de São Paulo que noticia o protesto na
Paulista traz uma matéria do enviado do jornal ao Canadá sobre o “bloco de
preto” que atuou em Quebec.
O debate sobre a violência
Mas se nessa época a
imprensa brasileira não usava o termo “black bloc” na cobertura dos protestos
no país, ele já era bem conhecido da mídia internacional, principalmente da
europeia e da norte-americana.
E ganhou ainda mais
projeção durante as manifestações contra a reunião do G8 realizada em Gênova,
na Itália, em julho de 2001.
O Dia de Ação Global
marcado para 20 de julho de 2001 foi a maior mobilização do gênero até então e
nesse dia as ruas de Gênova foram tomadas por mais de 300 mil pessoas, entre as
quais marchou o maior black bloc organizado até então.
O grau de confronto com
a polícia atingiu um novo patamar e um jovem italiano que fazia parte daquele
black bloc, chamado Carlo Giuliani, foi morto pela repressão com um tiro na
cabeça.
Gênova marcou um divisor
de águas para a tática black bloc e para o chamado “movimento antiglobalização”
como um todo.
Assim como acontece hoje
no Brasil, o debate sobre o uso da violência nas manifestações – mesmo que
apenas contra lojas e outros objetos inanimados – criou uma divisão entre
ativistas “violentos” e “pacíficos” que contribuiu muito para a desmobilização
do movimento como um todo dali para frente.
A semelhança do debate
sobre o black bloc na época e agora é impressionante. Quem quiser conhecer um
pouco das discussões e das respostas de adeptos da tática black bloc na época
pode encontrar uma boa seleção de textos de ativistas reunidos na coletânea
“Urgência das ruas – Black block, Reclaim the Streets e os Dias de Ação
Global”, organizada por um anônimo que se identifica como Ned Ludd (referência
a um dos líderes do Movimento Ludita na Inglaterra do século XIX) e publicada
no Brasil pela editora Conrad.
Com o fim dos grandes
protestos contra a globalização neoliberal, o debate sobre os black blocs saiu
das manchetes da grande imprensa internacional e brasileira.
A tática continuaria a
ser adotada em manifestações na Europa e nos Estados Unidos nos anos seguintes,
e militantes libertários no Brasil certamente sabiam muito bem o que eram os
black blocs, mas o tema nunca repercutiu fora dos meios militantes.
E assim foi até que
começaram as manifestações contra o aumento das tarifas de ônibus e metrô
convocadas pelo Movimento Passe Livre em junho de 2013.
As manifestações de junho
Assim como os black
blocs, o MPL estava longe de ser uma novidade no Brasil, mas, pela primeira
vez, ambos começaram a ganhar um protagonismo inédito conforme as manifestações
cresciam.
Até o dia 13 de junho,
aquela era uma mobilização muito parecida com as que o MPL vinha organizando
desde 2004.
Era um movimento
restrito a um núcleo militante que reunia ativistas do próprio MPL, integrantes
de partidos e coletivos libertários – alguns dos quais formaram black blocs
durante os atos.
A violência policial
contra a marcha do dia 13 de junho em São Paulo, no entanto, mudou tudo.
Os ataques contra
jornalistas e jovens da classe média e da elite indignaram uma parcela da
população normalmente avessa à militância política.
O choque diante da
brutalidade da PM de São Paulo e a simpatia por uma causa que se tornou quase
uma unanimidade – barrar o aumento das tarifas do transporte público na cidade
– “levaram o Facebook para a rua”, para usar a feliz expressão que o jornalista
Leonardo Sakamoto usou para definir a marcha de 17 de junho.
De repente, centenas de
milhares de brasileiros se deram conta de que podiam, de alguma forma, usar as
ruas para expressar sua insatisfação com algum aspecto da política brasileira.
Em um desses raros
momentos da história nacional, o cidadão comum percebeu que a política não é
propriedade privada dos políticos profissionais, e se deu conta de que ela se
faz no dia a dia, na rua, em vários lugares. De vez em quando, até no
Congresso.
As manifestações de 17
de junho abriram a caixa de Pandora, e gente de absolutamente todas as
tendências políticas foi para a rua. Por um breve momento, a elite mais
reacionária marchou ao lado do militante mais revolucionário. Mas em algum
momento a contradição teria de aparecer.
As contradições de junho
A partir de agora,
minhas observações se restringem ao que aconteceu na cidade de São Paulo, pois
foi o único lugar onde acompanhei as manifestações in loco, e não acho que os
movimentos nas várias partes do Brasil possam ser analisados sob uma única
perspectiva.
Em cada cidade ou região
teve especificidades que não sou capaz de avaliar.
Quem esteve na Paulista
no dia 18 de junho já podia farejar, de certa forma, o que aconteceria no dia
20.
Aquilo era a Revolução
Francesa. As reivindicações mais contraditórias conviviam nos cartazes
empunhados por grupos sociais muito diferentes entre si, muitos deles
antagônicos.
O pessoal das bandeiras
verde-amarelas e dos slogans moralistas era claramente uma elite que tinha
pouco ou nada a ver com os anarquistas e trotskistas que circulavam com
palavras de ordem anticapitalistas.
A direita, a
extrema-direita e a extrema-esquerda já estavam ali. Faltava a esquerda
moderada, dos partidos no poder. E, quando ela apareceu, a bomba-relógio
explodiu.
Pode-se acusar o PT de
muitas coisas por ter convocado sua militância a ir para a Paulista no dia 20
de junho, mas uma coisa é certa: aqueles militantes tinham todo o direito de
estar lá.
O problema é: vai
explicar isso para a elite raivosa que, estimulada pelas mobilizações, passou a
expor em praça pública seu ódio pelo PT…
Olhando em retrospecto,
o ataque fascista aos militantes partidários no dia 20 de junho parece um
desdobramento natural do que vinha acontecendo: com a revogação do aumento das
tarifas, a única bandeira que unificava aquela multidão de opostos deixou de
existir.
Sem o elemento
unificador, apareceram as profundas contradições que já existiam entre os
inúmeros grupos que saíram às ruas.
A elite queria a cabeça
do governo do PT, a extrema-esquerda queria a revolução social, e, espremida
entre os dois extremos, sobrou para a esquerda moderada o papel de defender o
status quo, sobrou para a esquerda moderada a posição conservadora – no mais
literal sentido da palavra.
Os meses seguintes só
vieram confirmar a tendência que apareceu pela primeira vez no 20 de junho em
São Paulo.
A grande mobilização que
prometia unificar todos os setores da esquerda para responder ao ataque
fascista virou um ato dominado pelas centrais sindicais e seus militantes
profissionais, no dia 11 de julho, que foi incapaz de atrair o cidadão comum
que saíra às ruas em junho.
As convocatórias da
direita contra a corrupção se tornaram pequenos atos isolados, dissipando o
medo de alguns militantes da esquerda de que as manifestações de junho pudessem
abrir caminho para uma escalada fascista.
Por fim, a extrema-esquerda
se deu conta de que o mar humano que saiu às ruas em junho não era tão
anticapitalista assim, e passou a organizar também seus atos isolados.
Essas três tendências
ficaram claras nas manifestações do 7 de setembro em São Paulo.
Pela manhã, marcharam os
movimentos sociais ligados à esquerda moderada, que, em sua maioria, continuam
defendendo o governo do PT.
À tarde, duas
convocatórias distintas dividiram o vão livre do Masp: de um lado, um grupo
formado pela elite de direita e extrema-direita, que era, supostamente, contra
todos os partidos, mas que destilava seu ódio de classe contra o PT; do outro,
um black bloc que também se dizia contra todos os partidos, mas que mirava
prioritariamente no governo Alckmin, do PSDB.
Os black blocs no Brasil de hoje
Isso nos traz de volta
ao nosso tema central: os black blocs.
Aqui é preciso abrir um
pequeno parêntese para falar do Rio de Janeiro, pois este foi o único lugar em
que os protestos de fato continuaram com força depois da revogação do aumento das
passagens.
Acontece que, além da
tarifa, lá havia outra bandeira que unificava o movimento: a oposição ao
governador Sérgio Cabral.
E talvez seja por isso
mesmo que lá os black blocs tenham se tornado mais fortes e atuado de forma
mais coerente.
Vale lembrar que o
movimento contra Sérgio Cabral girou em torno de uma ocupação urbana – o
acampamento montado em frente à residência do governador – e, não por acaso, os
black blocs cariocas desempenharam um importante papel de autodefesa do
movimento contra a repressão policial.
Ou seja: justamente no
momento em que caiu na boca do povo no Brasil, a tática black bloc estava
voltando às origens, atuando como uma organização popular de defesa dos
movimentos sociais.
Na minha opinião, a
situação no Rio ajuda a explicar porque em São Paulo os black blocs nunca
chegaram a contar com o apoio que tiveram na capital fluminense.
Em São Paulo, a partir
do fim de julho os black blocs se formaram como uma força isolada, inicialmente
em solidariedade aos cariocas, e depois lançando uma campanha contra o
governador paulista, Geraldo Alckmin.
Ao se voltar contra
Alckmin, os black blocs paulistas poderiam se articular com a esquerda
moderada, por terem um inimigo comum, mas a incompreensão mútua impossibilitou
a aproximação.
E aqui chegamos ao x da
questão: a desconfiança mútua entre duas culturas militantes distintas, mas que
compartilham muitos objetivos, está acabando com as possibilidades de
aproveitar a incrível energia social gerada pelas manifestações de junho para
construir novos espaços de debate e mobilização que poderiam abrir perspectivas
inéditas de ação política no Brasil.
Não se trata aqui de
querer apagar as diferenças entre a cultura de militância partidária – baseada
na hierarquia, na centralização e na estabilidade – e a cultura libertária que
está na base da tática black bloc – horizontal, descentralizada e instável –
mas de propor que, apesar de suas diferenças, estes dois setores podem
trabalhar juntos em prol de causas que os unem.
Por uma assembleia das ruas
O ponto de partida para
essa aproximação é o diálogo aberto entre as partes, reconhecendo as diferenças
e os equívocos de parte a parte, mas buscando achar formas de cooperação que
respeitem as especificidades de cada um.
Os momentos em que os
black blocs foram mais fortes foram justamente aqueles em que atuaram no seio
de movimentos mais amplos, que englobavam grupos com táticas muito diferentes,
todos lutando por causas comuns.
E esta é, na minha
opinião, uma das fraquezas dos black blocs hoje (pelo menos em São Paulo): uma
certa fetichização da tática, tomando a formação de blocos negros como um fim
em si mesmo.
Olhando para a história
dos black blocs, me parece que os melhores momentos dessa tática foram quando
ela serviu de instrumento para um movimento mais amplo.
E esses momentos foram
marcados por avaliações de que tipo de ações serviam mais aos fins buscados.
Por exemplo: a
condenação, a priori, da destruição de propriedade privada corporativa me
parece absurda por parte de qualquer um que sonhe com uma sociedade mais
igualitária.
No entanto, cabe
questionar, sim, se essa tática é a mais acertada em um determinado momento da
luta.
O ataque contra símbolos
das grandes corporações globais promovido pelo black bloc de Seattle fazia todo
sentido no seio de um grande movimento que desafiava, justamente, o poder
dessas grandes corporações.
Mas será que o simples
ataque a agências bancárias e concessionárias de carros de luxo faz sentido em
mobilizações que não passam de algumas centenas de pessoas sem uma bandeira
clara, em uma São Paulo cuja população tende a repudiar esse tipo de ação? Para
que serve essa ação?
Os black blocs têm força
social suficiente para sustentar uma mobilização sem buscar apoio de outros
setores? Na minha opinião, a resposta para todas essas perguntas, hoje, é
“não”.
Por outro lado, as
organizações tradicionais da esquerda, como partidos e sindicatos, claramente
não estão conseguindo se sintonizar com as pessoas que saíram às ruas em junho
justamente por insistirem em restringir suas mobilizações aos seus próprios quadros,
olhando com desconfiança para qualquer um que não seja filiado a uma
organização formal.
Ao fazerem isso,
reproduzem no nível da rua a mesma lógica de quem está no poder: a ideia de que
a política é um assunto para iniciados e especialistas, da qual só podem
participar aqueles devidamente credenciados por organizações estabelecidas,
sejam elas partidos, sindicatos ou movimentos sociais.
Ora, foi justamente isso
que levou as pessoas às ruas em junho: a revolta contra o distanciamento entre
aqueles que formulam a política e aqueles que apenas sofrem suas consequências.
Os gritos histéricos de
“sem partido” podiam ter uma conotação fascista em alguns casos, mas eles
também expressavam esse mal-estar profundo de uma política que se vê como cada
vez mais autônoma do resto da população.
O grito de junho foi,
acima de tudo, um grito contra o autismo da política institucional no Brasil –
e nesse autismo se incluem absolutamente todos os partidos com alguma
representação parlamentar (com exceção, talvez, do PSOL, cujos militantes
estavam nas ruas desde o começo).
Foi um grito contra o
abismo que existe entre a política institucional e o cidadão comum, criado por
políticos profissionais (de todos os partidos) que colocam o jogo da
politicagem acima da defesa de bandeiras concretas de interesse da população.
Nesse sentido, mesmo o
combate à corrupção, que em geral tem um viés claramente conservador, se torna
parte de uma crítica mais ampla a um sistema representativo que, cada vez mais,
é ditado apenas pelos interesses dos representantes, e não dos representados.
Ao insistir em
mobilizações restritas aos iniciados, as organizações tradicionais da esquerda
reproduzem a barreira que afasta o cidadão comum da política, e por isso são
hostilizadas por aqueles que se sentem excluídos da política.
Os black blocs, por
outro lado, oferecem justamente o contrário: a possibilidade de qualquer
cidadão participar da mobilização política sem necessidade de filiação prévia.
Enquanto partidos e
sindicatos são vistos como uma porta fechada para os não iniciados, os black
blocs são vistos como uma porta aberta para a política.
Disso decorre, em grande
parte, a atração que vem exercendo sobre muitos jovens que estão saindo às ruas
pela primeira vez na vida.
Muitas vezes essa distinção
leva alguns a se apegarem a um fetiche que opõe “velhas” e “novas” formas de
organização, como se fossem irreconciliáveis.
A pergunta mais
importante hoje, na minha opinião, é: seria possível romper com essa visão
binária e criar espaços onde as diferentes lógicas pudessem dialogar?
Acredito sinceramente
que sim. Até porque isso já aconteceu no passado.
Em Gênova, por exemplo,
o black bloc optou por marchar ao lado dos Comitês de Base (Cobas) dos
sindicatos italianos; na Alemanha, os black blocs muitas vezes marcharam ao
lado dos sindicados no Primeiro de Maio; e, aqui mesmo no Brasil, lembro
perfeitamente de militantes do PSTU que participavam das reuniões da Ação
Global dos Povos para a organização dos atos em São Paulo.
Ou seja: o que nos falta
são espaços de articulação que abram espaço para o diálogo entre culturas
militantes distintas, mas que compartilham certos objetivos.
O que nos falta é um
fórum de lutas, uma assembleia das ruas.
Um espaço assim, que não
fosse controlado por nenhuma organização, mas que estivesse aberto aos
militantes de qualquer organização e a quem não é filiado a nenhuma delas,
poderia servir de convite à participação dos não iniciados e agregar a
experiência dos iniciados, abrindo a possibilidade de diminuir a desconfiança
mútua e abrir caminho para uma cooperação entre grupos que adotam táticas
distintas, mas que podem ser complementares.
Outra condição
fundamental para que um espaço assim pudesse florescer é que não se pautasse
pela lógica eleitoral.
Uma das razões do
desgaste da política institucional no Brasil (e em várias outras partes do
mundo) é a necessidade de reduzir todas as discussões ao calendário eleitoral.
Uma verdadeira
assembleia das ruas seria um espaço de discussão e formulação de um projeto
popular para a cidade, para o estado e para o país, que articulasse seus
integrantes em torno de bandeiras comuns, mas que não se colocasse a serviço de
campanhas eleitorais de A,B ou C.
Um espaço que pudesse se
tornar um poder constituinte da multidão, definindo o que o povo quer do seu
governo. Caberia ao governo de turno, a partir daí, lidar com essas demandas.
Os zapatistas, no
México, já nos forneceram um modelo desse tipo de organização ao lançarem, em
2006, sua “Outra campanha”, uma mobilização nacional que pretendia ir além do
calendário eleitoral e formular um verdadeiro projeto popular independente das
ambições dos partidos da ordem.
É claro que em um espaço
como esse a participação de militantes partidários e sindicais seria mais do
que bem vinda, mas sempre como indivíduos, e não como representantes de suas
organizações, o que exigiria daqueles mais acostumados com as formas
tradicionais de militância um esforço para abrir mão da ambição de ditar a
linha política a ser seguida por todos os participantes dessa articulação.
Por outro lado, exigiria
dos adeptos da tática black bloc um esforço para coordenar suas ações com as
dos demais grupos, muitas vezes se abstendo de realizar ataques ao patrimônio
público e privado quando esse tipo de ação puder comprometer outros grupos que
adotam táticas distintas.
Acredito, sinceramente,
que a criação de um espaço plural como este poderia diminuir o fosso entre a
“velha” e a “nova” esquerda e abrir novas e estimulantes perspectivas para a
luta popular no Brasil.
Mas, para isso, seria
preciso um exercício de compreensão mútua que fosse além dos preconceitos e
buscasse aprender a respeitar a diferença e a diversidade, vendo nela não uma
fraqueza, mas uma força do movimento.
*Bruno Fiuza é
jornalista, historiador e mestrando em História Econômica na Universidade de
São Paulo
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