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Por uma mídia que ouse ser ética

Por Mariana Martins, no Observatório do Direito à Comunicação:
Mais uma vez o que me motiva a sair da inércia para escrever é a nossa mídia, aquela mesma de sempre, ávida pelo lucro e cheia de vaidades. A mídia não é um ser inanimado, ela é feita de pessoas. A mídia é feita, principalmente, de jornalistas que devem receber uma formação para saber, antes de tudo, o que é notícia e o que é espetacularização. Jornalistas que devem sempre optar pela notícia.
É uma pena que, em todas as tragédias, nós tenhamos péssimos exemplos da nossa imprensa. As coberturas são traumáticas. A grande maioria tenta logo de saída fazer das tragédias grandes espetáculos. Procuram por parentes, procuram por vítimas, procuram por testemunhas. Pessoas que, por tão intensamente envolvidas, podem não querer colocar mais uma vez o dedo na ferida. Pessoas que estão tendo que prestar depoimentos na polícia e assim por diante. (Esse tipo de fonte deve ser usada com muita cautela e parcimônia; eu diria que em doses homeopáticas. Nunca podem ser o foco da cobertura).
Os jornalistas procuram também por fotos, imagens de qualquer tipo, mas que de preferência mostre desespero, mostre aflição e, na maioria das vezes, que mostrem corpos.
Corpos estendidos no chão, amontoados, enfim, corpos. Cenas dos familiares recebendo as notícias, se despedindo dos entes, em momentos de profunda dor e de uma dor familiar, privada e não pública. E essas histórias se repetem a exaustão, por vários e intermináveis dias.
Convido todos os jornalistas, mas em especial os das emissoras e veículos públicos para pensar sobre a cobertura das tragédias. Estes últimos em destaque porque, por princípio, deve ousar e fazer diferente. Primeiramente, vou pedir para que vocês não pensem na audiência, o que pode ou não “trazer gente para matéria”. Não pensem em alavancar audiência para veículo A ou B, não vejam isso como tábuas de salvação para o “sucesso” de vocês.
Convido vocês a pensar então na notícia. Será que todas as imagens - sejam fotos, sejam vídeos na internet que vocês colocaram na matéria - têm, de fato, o propósito de contribuir com a informação? Já sei que você vai me responder que todo mundo clica no vídeo e na imagem, que todo mundo quer ver sim aquelas imagens. E eu vou refazer a pergunta destacando a ideia principal do questionamento que é: a imagem tem relevância para aquela informação que você está dando como notícia? É essa relação muito tênue do que você precisa dar com o que as pessoas “querem ver” que precisa ser repensada. É nela que reside a audiência como preciosidade e, muitas vezes, não é só o lucro em si que move esse interesse, é a audiência mesmo, é mostrar que está bem, é fazer sucesso. É dizer que bateu o site A, B ou C, é dizer que teve mais Ibope que o programa tal e o programa tal.
A questão é a seguinte: se jornalista colocar as imagens vai ter sim quem veja e muita gente mesmo vai querer ver. A diferença de um jornalista responsável para um vaidoso é justamente saber diferenciar o que é de interesse público e o que é de interesse do público. A comunicação é também um modelo informal de educação, cabe ao jornalista saber que tipo de sociedade ele quer ajudar a formar a partir do que ele decide veicular. Isso é o princípio da responsabilidade, caro ao jornalista comprometido. O processo de seleção é um eterno conflito e são nos conflitos, nos dilemas, que se avaliam a reserva ética e moral de um cidadão, bem como de um jornalista. É, portanto, aí que reside um dos principais problemas, que não é só da mídia, mas é também do jornalista, das equipes: a vaidade!
O que pode ser mais importante na tragédia de Santa Maria, por exemplo, do que mostrar as imagens das pessoas tentando salvar as vidas ou tirando os corpos da boate? O que é mais importante do que mostrar a dor das famílias? Os momentos de desespero e os momentos de profunda particularidade das pessoas? De saída, afirmo que é tentar compreender as causas e consequências das tragédias. O que ainda pode e, principalmente, o que deve ser feito. Como as pessoas devem se voluntariar. Onde estão os responsáveis, quem são as autoridades envolvidas? Deve-se também não querer encontrar de cara um culpado, seja o poder público, sejam pessoas particularmente. Essa é uma informação que merece ser dada com precisão. Estamos trabalhando com pessoas, com vidas, com emoções. Vale sempre lembrar que o papel da polícia, das perícias e das investigações deve ser respeitado.
Gosto sempre de lembrar aos jornalistas que eles não têm na faculdade nenhuma disciplina pericial ou de investigação criminal. Portanto, polícia é polícia e jornalista é jornalista. O que não o impede de apurar de forma muito séria e aguerrida os fatos, as causas. Um bom jornalista trabalha em parceria com a polícia e sabe os órgãos sérios com quem pode contar.
Ao invés de mostrar os corpos ou as imagens, pode-se falar quem são as vítimas, o que estavam fazendo no local da tragédia, o que faziam da vida. Não é preciso apostar em dramatizar a vida das pessoas. Sejam sérios e serenos. Num momento como esse, pense nos entes que ficaram, que irão ver a sua matéria, o que ele irão sentir? Sejam responsáveis com a vida e o sentimento das pessoas, sejam humanos, sejam coerentes. Ser um bom jornalista é poder deitar a cabeça no travesseiro à noite e dormir tranquilo.
Convido então os jornalistas a ousarem fazer uma cobertura mais humana, menos refém da audiência, diferente de tudo que acontece sempre, preocupado com as causas e com as consequências dos fatos. Preocupem-se não apenas em chocar a sociedade, isso acaba banalizando a tática, procurem fazer com que as pessoas se movimentem, saiam também da sua inércia, exerçam a sua cidadania, mas também a sua solidariedade. Contribuam efetivamente para que as pessoas não aceitem mais crimes impunes, que se sintam parte das histórias e possam ter instrumentos para construírem um mundo melhor a partir do aprendizado, que, mesmo de forma dolorosa, as tragédias podem nos trazer.
* Mariana Martins é jornalista, mestra e doutoranda em Comunicação. Foi professora substituta da Universidade de Brasília. Professora de ética na comunicação, políticas de comunicação e Comunicação Pública.

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