Por Eugenia Gonzaga
Por lobby político,
Gleise atropela Constituição e Convenção da ONU
A função primordial da
Casa Civil, tida como o primeiro entre os ministérios, é assistir a presidência
da República na coordenação e na integração das ações do Governo, bem como na
verificação prévia da constitucionalidade e legalidade dos atos presidenciais.
Por tudo isso, causa
espanto que, na página oficial em que se definem as funções acima, a Ministra
Gleise Hoffmann tenha publicado uma nota oficial em que garante que irá
descumprir a Constituição brasileira e a Convenção da ONU sobre direitos de pessoas
com deficiência. Diz a nota que ela já "acertou" isso com o relator
do Plano Nacional de Educação - PNE.
Com uma falta de técnica
inaceitável para uma nota oriunda da Casa Civil, garante que a inclusão escolar
ocorrerá apenas "preferencialmente" na rede básica. Ao negar
categoricamente a inclusão escolar como direito fundamental das crianças com
deficiência e também das demais crianças, a Ministra contraria texto expresso
da Convenção da ONU nesse sentido (art. 24).
A nota confunde
"atendimento escolar" com "atendimento educacional
especializado". O primeiro diz respeito à escolarização comum (ensinos
infantil, fundamental e médio), que só pode ser ofertada – e de modo
obrigatório - em escolas oficiais, para alunos com e sem deficiência,(CF, art.
208, inc. I), jamais "preferencialmente".Trata-se de princípio geral
de educação: atendimento escolar só em estabelecimento oficial de ensino.
O segundo diz respeito a
apoios e medidas específicas (ensino de língua de sinais, adaptações e
complementos, por exemplo) destinados apenas a crianças com deficiência ou
superdotação. Este é que pode ser ofertado de maneira preferencial, não
obrigatória, em escolas comuns (art.
208, inc. III). E também é isto o que consta da redação atual do PNE, que a
nota disse ter garantido, mas dessa frase, "atendimento educacional
especializado preferencialmente nas escolas comuns", não se extrai a
conclusão que a Ministra tira em sua nota. A de que a inclusão é facultativa.
Inclusão, Ministra, diz respeito a atendimento escolar.
O que está por trás
desse comportamento da Casa Civil são os interesses políticos específicos da
Ministra-Chefe, para demonstrar aos seus correligionários que está atendendo ao
pleito da Federação Nacional das APAEs (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais).
Não confundir a
Federação com as APAEs nos municípios, as verdadeiras prestadoras de serviços.
A Federação é sustentada pelas verbas recebidas das APAEs municipais.
E o que está por trás da
nota da Ministra – e do lobby da Federação – é o acesso à matrícula dupla do
Fundeb (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica).
O que consta de nossa
legislação e que o PNE apenas reproduz é, em síntese: se uma criança com
deficiência estiver matriculada na escola comum e receber também apoio
especializado de uma APAE ou similar, cada uma recebe o equivalente a uma
matricula para fins de Fundeb. Se a escola comum prestar ambos os atendimentos,
recebe a verba em dobro. Já as escolas especiais podem receber a verba do
ensino especial, e não em dobro, como forma de garantir o direito à inclusão.
Esse movimento gerou uma
campanha mentirosa da Federação das Apaes de que a redação do PNE levaria ao
fechamento das APAEs.
Não é verdade. O que se pretende com essa
campanha da Federação é dobrar a receita das APAEs, ainda que à custa do
sacrifício das crianças com deficiência que deixarão de ser incluídas no ensino
fundamental regular.
Tudo está funcionando muito bem onde os
gestores municipais estão comprometidos com o direito à inclusão. Mas há
lugares em que, com base em uma interpretação distorcida da legislação,
permitida pelos termos do Decreto 7.611/2011 - e elogiado pela Ministra em sua
nota-, o Fundeb paga tais matriculas em dobro para instituições filantrópicas
que não colaboram com a inclusão e mantêm crianças com deficiência sendo
atendidas ali de forma segregada de seus colegas sem deficiência.
É exatamente essa distorção que a ministra
disse que vai garantir. A justificativa apresentada é a de que algumas
deficiências são muito graves e tais crianças não podem ser incluídas.
Também não é verdade. Se
a criança tem alguma condição de aprendizado - e são essas que encontramos nas
escolas de Apaes - deverá fazê-lo na rede básica, e não exclusivamente em
ambientes segregados. Já as pessoas com deficiências muito graves, sem nenhuma
interação com o ambiente externo, precisam de atendimentos relacionados à
saúde. E, se ainda forem crianças ou adolescentes e tiverem alguma mínima
condição de frequentar um ambiente escolar, precisam ter seu lugar educacional
garantido juntamente com todas as demais crianças e adolescentes da sua
geração, ainda que por poucas horas do dia.
Se a Ministra
"acertou" com o relator do PNE a absurda ideia de que a inclusão será
apenas facultativa - pasme-se, como se não houvesse nenhum direito sendo ferido
- tinha que ter mantido o termo
"preferencialmente" para "atendimento escolar" e não para
"atendimento especializado", como constou da nota. Mas eles nem sabem a diferença de uma coisa e
de outra.
Por aí se compreende o porquê de não
avançarmos em tantas áreas sensíveis para o país. Há em vários pontos do
Governo um imenso despreparo e total ausência de compromisso com os direitos
humanos. Tudo em nome de atender a interesses que não contribuem em nada para
um estado democrático de direito que assume verdadeiramente medidas
civilizatórias de inclusão.
Pode ficar tranquila Sra. Gleise: as APAEs não
vão fechar, se esta é a sua preocupação, mas sinto informá-la de que seus
"acertos" não se sobrepõem à Lei de Diretrizes e Bases, muito menos à
Constituição brasileira e à Convenção da ONU. Com essa sua pretensão, de tornar
a inclusão facultativa, só podemos concluir que a presidência da República está
muito mal de assessoramento jurídico e estratégico para seus atos.
Eugenia Gonzaga
Procuradora Regional da
República e autora do livro "Direitos das Pessoas com Deficiência"
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