Nessa entrevista, publicada inicialmente em Folha de S. Paulo, a
marxista chilena Marta Harnecker fala sobre os desafios da conjuntura na
Venezuela e o legado de Chávez. Confira.
Folha - Qual é
o legado de Chávez?
Marta Harnecker - O legado de Chávez tem uma
dimensão mundial. Quando ele trinfou nas eleições presidenciais de 1998, o
modelo capitalismo neoliberal estava fazendo água. Nesse momento, ele se viu
perante o dilema de refundar o modelo capitalista neoliberal --certamente com
mudanças, entre elas uma maior preocupação pelo social, mas movido pela mesma
lógica de busca do lucro--, ou avançar na construção de outro modelo.
Considero que seu principal legado é ter
optado por esta segunda alternativa: construir uma sociedade não capitalista,
mas fazer isso com as pessoas. Apesar da carga negativa que tinha a palavra
socialismo, ele decidiu recuperá-la para designar a nova sociedade que queria
construir. Mas esclarecendo de imediato que não se tratava de socialismo
soviético, mas de um socialismo diferente. Por isso empregou o termo socialismo
do século 21, para diferenciá-lo do socialismo do século 20. Advertiu
especificamente que não se devia "cair nos erros do passado", no
"desvio stalinista", que burocratizou o partido e terminou por
eliminar o protagonismo popular. Rechaçou também o capitalismo de Estado, que
acentuou a propriedade estatal e não a participação dos trabalhadores na gestão
das empresas.
Como é esse
socialismo?
Chávez concebeu o socialismo como uma nova
existência coletiva, onde reina a igualdade, a liberdade, uma democracia
verdadeira e profunda, onde o povo tenha um papel protagonista, um sistema
econômico centrado no ser humano e não na ganância, uma cultura pluralista e
anticonsumista, em que o ser tenha primazia sobre o ter.
O presidente venezuelano pensava, como [José
Carlos] Mariátegui (1894-1930), que o socialismo do século 21 não poderia ser
cópia em carbono, mas uma criação heroica. Por isso falava de um socialismo
bolivariano, cristão, robinsoniano, indo-americano.
Em que ele se
diferenciava?
A necessidade do protagonismo popular era um
tema recorrente em seus discursos, algo que o distanciava de outras propostas
de socialismo democrático. Estava convencido de que a participação, o
protagonismo em todos os espaços é o que permite ao homem crescer, ganhar
autoconfiança, ou seja, desenvolver-se humanamente.
Isso poderia ter ficado apenas como palavras
se Chávez não tivesse promovido a criação de espaços adequados para que os
processos participativos pudessem ocorrer plenamente. Por isso é tão importante
a sua iniciativa de criar os conselhos comunais (espaços comunitários
autogestionados), os conselhos de trabalhadores, estudantes, camponeses,
fazendo uma verdadeira construção coletiva que deve plasmar-se numa nova forma
de Estado descentralizado, cujas células fundamentais deveriam ser as comunas.
Construir com o povo significava para ele
conquistar corações e mentes para o novo projeto de sociedade. E isso não se
consegue através de pregações, senão com a prática: criando oportunidades para
que o povo vá entendendo o projeto na medida em que vai sendo o seu construtor.
Por isso, advertiu no seu primeiro "Aló" teórico sobre as comunas:
"cuidado com o sectarismo, se existem pessoas que não participam da
política, que não pertencem a nenhum partido, bem, não importa, sejam bem
vindos. Digo mais: se vive por aí alguém da oposição, chamem essa pessoa. Que
venha trabalhar e ser útil. A pátria é de todos. É preciso abrir espaços para
eles e vocês verão que com a prática muita gente vai se transformando...".
É muito
utópico?
Chávez não era um sonhador como alguns
poderiam pensar. Soube que as forças que se opõem à materialização desse
projeto são enormemente poderosas. Recordemos que começou o seu mandato em meio
ao mais absoluto isolamento internacional. Naquela época o neoliberalismo se impunha
como o único modelo. A retaguarda socialista com que haviam contado tentativas
revolucionárias anteriores havia desaparecido. Seu principal adversário, os
EUA, haviam se transformado na primeira potência militar mundial sem nenhum
contrapeso. Mas ser realista não significava cair na visão conservadora da
política concebida como a arte do possível, senão trabalhar para fazer possível
no futuro o que hoje parece impossível. E isso significava trabalhar para
construir uma correlação de forças favorável às mudanças que se pretendia
estabelecer. Em todos os anos de seu governo, ele trabalhou de forma magistral
para atingir esse objetivo, entendendo que para construir força política não
bastam acordos de cúpula, pois o principal é construir força social.
Consciente de que não poderia levar adiante
uma revolução social de forma isolada na correlação de forças que existia
quando assumiu o governo, dedicou parte importante de seus esforços para criar
uma força internacional de apoio ao processo bolivariano que permitisse
recuperar a soberania plena da Venezuela, escapando da dependência unilateral
dos Estados Unidos. Nesse sentido, impulsionou processos de integração
sul-americanos e caribenhos (rechaço da Alca, criação da Alba, Mercosul,
Unasul, Banco do Sul, Telesur, cúpula dos povos etc). Ao mesmo tempo,
impulsionou o fortalecimento da Opep e se aproximou de outros polos de poder
mundial, como Índia, Rússia e China. Estreitou, ao mesmo tempo, os vínculos com
os foros de nações emergentes, como o Grupo dos 15 de cooperação Sul-Sul e o
Grupo dos 77, que reúne mais de 120 nações em desenvolvimento.
Apesar dos
avanços sociais, por que Chávez não conseguiu liberar o país da dependência do
petróleo?
De fato, Chávez não conseguiu liberar o país
totalmente da dependência do petróleo e poderíamos concordar com a afirmação de
que, com uma política econômica mais adequada, tivesse sido possível avançar
mais nesse processo. Chávez tinha clara a necessidade de fazer isso e, em uma
de suas últimas intervenções antes de morrer, insistiu na necessidade de
alcançar esse objetivo. Mas é lógico que a tarefa prioritária no início de seu
governo foi a resolução do problema da pobreza, para saldar a grande dívida
social herdada.
Como a sra.
avalia a gestão de Chávez?
Creio que sua gestão permitiu avançar no
cumprimento dessa tarefa prioritária, algo que todos reconhecem. E o mais
interessante é como o fez. Foi capaz de buscar caminhos inéditos. Para poder
atender aos setores mais desamparados de uma forma rápida e eficiente, teve que
criar instituições que lhe permitissem por em marcha os programas sociais. Teve
que contornar o aparato burocrático estatal herdado e criar instituições fora
desse aparato. Esse é o sentido das diferentes missões sociais que já são
conhecidas.
Por exemplo?
O aparato de saúde herdado era incapaz de
atender aos setores sociais mais desvalidos por duas razões: em primeiro lugar,
porque a maioria dos médicos e enfermeiras não tinham disposição para ir a
lugares longínquos, de difícil acesso. Preferiam trabalhar em seus confortáveis
consultórios do centro da cidade. Em segundo lugar, não estavam preparados para
dar atenção profissional necessária: não eram médicos integrais, mas apenas
especialistas em alguma matéria. Constatando essa realidade, surgiu a ideia de criar
a missão Bairro Adentro, que consistia em instalar consultórios nos morros, nos
bairros populares e nos vilarejos rurais mais afastados. Enquanto se preparavam
as futuras gerações de médicos venezuelanos para assumir essa tarefa, se
solicitou a colaboração de médicos cubanos.
Chávez teve o grande mérito de recuperar o
controle do petróleo para a Venezuela, eliminando a gerencia golpista e
antinacional, o que lhe permitiu poder dispor de uma parte importante dos
excedentes ali gerados para destiná-los às missões sociais, conseguindo
diminuir drasticamente os níveis de pobreza.
Além disso, creio que conseguiu avançar
brilhantemente no tema da soberania nacional e da integração continental,
impulsionando a criação de uma série de iniciativas institucionais que chegaram
para ficar.
Outro aspecto importante de sua gestão foi
haver impulsionado a criação de toda uma estrutura legal para poder transitar
pela via institucional até a construção de uma nova sociedade (constituição
bolivariana e diferentes leis, entre elas muitas buscando consolidar legalmente
a participação popular).
Quais foram as
falhas?
Poderíamos falar de muitos outros êxitos de
sua gestão, mas evidentemente houve também falhas. A principal delas, no meu
entender, é o que foi reconhecido pelo próprio presidente em sua análise
autocrítica após as eleições de outubro passado. Existiam as grandes linhas do
plano de governo, mas faltou aprofundar nos detalhes. [Simón] Bolívar dizia que
as batalhas se ganham ou se perdem pelos detalhes. Chávez repetiu muitas vezes
essas palavras, mas não as pôs em prática. Além disso, faltou monitoramento e
controle. E, apesar da legislação acerca do exercício da controladoria social,
não foram criados os mecanismos adequados para que o povo organizado fosse o
grande controlador da gestão do governo.
Outra falha de sua gestão foi o
hipercentralismo. Quando ele encontrava algum problema em alguma localidade,
sua tendência era sempre pensar que esse poderia se resolver em nível de
governo central. Eu nunca estive de acordo com essa visão e me deu muita
alegria ver que, em suas últimas intervenções, ele estava falando da
importância da descentralização.
Mas, com todas as suas limitações, há um
abismo entre a sua gestão e a dos governos que lhe precederam. A oposição insiste
em enfatizar o que não foi feito e os chavistas respondem mostrando o que foi
feito. Quem ganha com essa confrontação? Creio que a reação da população
perante a morte de Chávez que todos puderam constatar através das imagens
transmitidas mundialmente pela TV dá a uma resposta contundente a essa
pergunta.
Como deve ser
a Venezuela sem Chávez?
Penso que é necessário seguir materializando
passo a passo as suas ideias. Mas agora fazendo sem a impaciência que o caráter
do presidente impunha muitas vezes. Sem que fosse sua intenção, e perante a
necessidade de ver resultados imediatos, Chávez não permitia que os processos
iniciados tivessem tempo de maturação. Estou convencida que os processos
democráticos de participação popular requerem tempo: tempo para discutir
coletivamente, tempo para retificar os erros que necessariamente são cometidos.
Mas, sobretudo, tempo para que as pessoas se desenvolvam e amadureçam.
Chávez deixou para o seu povo um enorme
legado de ideias, de sinais concretos de como fazer as coisas, e, algo muito
importante, suas autocríticas _que têm que ser tomadas em conta para corrigir
os erros que ele detectou com grande honestidade durante a sua gestão.
É forte o
enraizamento do chavismo?
É preciso distinguir claramente entre o
enraizamento de Chávez na população e o do PSUV (o partido criado por Chávez
para levar adiante a revolução). É indiscutível que Chávez conseguiu um enorme
enraizamento. Mas outra coisa é o partido. Este tem um enraizamento muito
menor. Em muitos de seus quadros de direção permanecem traços e estilos de
trabalho do passado que precisam ser superados. É uma boa máquina eleitoral,
mas está muito distante de ser o partido que Chávez anunciou quando tomou a
iniciativa de criá-lo. E muito distante do partido que a revolução bolivariana
precisa. Em vez de acumular funções e decisões, seus dirigentes deveriam ser os
grandes promotores da participação popular. Recordemos que Chávez alertava que
não deveriam cair no desvio que havia ocorrido na União Soviética, onde o
partido anulava a criatividade popular.
Mas as
organizações de massa são fortes e enraizadas?
Posso dizer que durante esses 14 anos de
governo Chávez cresceu enormemente a organização popular houve amadurecimento.
Mas também é preciso reconhecer que, até agora, muitas dessas organizações têm
dependido demasiado do apoio do Estado. Falta maior autonomia. Mas,
ultimamente, tenho visto com muito otimismo como isso está sendo obtido em
muitas organizações, especialmente na construção de comunas e nos setores do
movimento camponês.
Maduro seguirá
os passos de Chávez?
Creio que Nicolás Maduro ou qualquer
dirigente do PSUV que assuma o governo vai ter que seguir as linhas traçadas
por Chávez. Porque só assim poderá contar com o apoio popular necessário para
realizar um governo estável. Creio que ninguém vai se arriscar a perder seu
apoio. Estou convencida de que o grande vigilante desse processo no futuro será
o povo organizado.
Uma das coisas que o futuro substituto de
Chávez não poderá fazer será governar de forma personalista. Creio que a
necessidade de uma direção coletiva é evidente e tenho a impressão de que isso
foi assimilado por grande parte dos dirigentes. Já estão atuando dessa maneira
nesses últimos meses da enfermidade de Chávez.
Penso que nesse terreno a contribuição de
Fidel deve ter sido muito importante. Ele entendeu muito bem que a chave do
êxito de uma revolução nas portas do maior império do mundo era a unidade dos
revolucionários e a unidade de todo o povo. Gosto de recordar que quando Fidel
triunfou e o movimento que ele dirigia contava com o apoio imensamente
majoritário da população, decidiu fazer um gesto extraordinário em prol da
unidade: abandonar a bandeira do Movimento 26 de Julho e adotar a bandeira da
revolução. E durante toda a sua vida Fidel tem sido um zeloso guardião dessa
unidade.
Penso que as grandes linhas estão traçadas
por Chávez e que o grande desafio da nova direção do processo será por em
prática a um ritmo adequado, o que dependerá de muitos fatores, é claro. Nesse
sentido, essa direção terá de ser capaz de explicar ao povo que não se pode
esperar uma solução imediata de todos os problemas. Deverá realizar o que chamo
de uma pedagogia dos limites, ou seja, deverá ser capaz de explicar os
obstáculos que precisam ser derrubados para prosseguir aplicando essas linhas.
As
estatizações devem ser aprofundadas?
Mais do que estatizar ou não estatizar --ação
que dependerá de muitas circunstâncias--, um dos grandes desafios do futuro
governo será tornar eficientes as empresas que hoje estão nas mãos do Estado. E
entender que isso não se resolve apenas com conhecimento técnico, mas com
participação real dos trabalhadores na gestão das empresas. Uma das ações do
novo governo seria facilitar a preparação dos trabalhadores para que possam
assumir responsavelmente essa tarefa.
A sra.
considera possível a hipótese de conspiração na morte de Chávez, como insinuou
o governo?
Não descartaria essa hipótese. A máquina
infernal do país mais livre e democrático --entre aspas-- do mundo se mantém
intacta. Se não tiveram nenhuma restrição moral para matar ou deformar com
napalm milhões de vietnamitas na sua guerra de libertação nacional, se
bombardearam inumeráveis vezes cidades tão importantes para a vida da população
civil, se jogaram pragas em Cuba sem se importar como elas afetariam as novas
gerações, se sabemos que existem laboratórios onde se investiga como produzir
substâncias químicas que causem efeitos mortíferos para a população, por que
não pensar que algo pode estar sendo feito também para eliminar ou tratar de
eliminar as novas lideranças emergentes no mundo?
Quais são suas
impressões pessoais sobre Chávez?
Veja o que escrevi na apresentação de meu
livro entrevista "Hugo Chávez Frías, um Homem, um Povo", onde exponho
as minhas primeiras impressões:
"Estava cheia de apreensões na minha
primeira entrevista. Seria capaz de estar a altura dessa tarefa? Meu
entrevistado compreenderia a crueza de algumas perguntas? Funcionaria bem o
gravador? Bastou conhecê-lo e conversar por alguns minutos para que minhas
preocupações se esvanecessem. Encontrei um homem sensível, simpático,
autocrítico, reflexivo, com uma grande capacidade para escutar com atenção os
comentários feitos. Apaixonado, com uma grande força interior. Me chamou
especialmente atenção sua grande sensibilidade humana e sua genuína vocação
popular. Adora suas filhas e filhos e é muito terno com eles. Não pode viver
sem ter um contato direto e frequente com os setores populares mais humildes,
onde sabe que reside sua maior força. Se sabe adorado pelo seu povo, mas quer
reverter esse amor em organização e desenvolvimento autônomo. É um dirigente
extraordinariamente humano. Todas essas virtudes não negam suas falhas. Ele
mesmo reconhece que tem grandes dificuldades para trabalhar em equipe, perde
facilmente a paciência, fere seus colaboradores, confia excessivamente em
pessoas que não devia confiar, é incapaz de organizar sua agenda de forma
racional, fala mais do que devia falar: diz toda a quando só poderia dizer uma
parte".
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