Por Gregory Duff Morton*
Duas semanas antes da
série de manifestações que pipocaram pelo país, as ruas estavam cheias de
outras 900.000 pessoas também ansiosas, pessoas que também expressavam seus
medos e desejos e assim questionavam o rumo do país. Muitas delas não tinham
Facebook e não eram jovens; elas vinham da parcela mais pobre da população
brasileira. Elas foram para as ruas motivadas por um boato sobre o fim do
programa Bolsa Famíllia, e assim decidiram buscar logo o benefício mensal. Seu
ato coletivo foi reconhecido não como gesto político, e sim como mero tumulto.
Porém, esses, não menos do que aqueles, falavam dos limites e barreiras do
momento atual.
Em junho de 2013, o
mundo ouviu as surpreendentes vozes de um movimento inesperado. Milhares de
pessoas entraram nas principais avenidas do Brasil para revelar os limites e
barreiras do modelo de desenvolvimento hoje vigente. Os protagonistas mais
visíveis desse momento eram estudantes e jovens interligados pelo Facebook, e o
movimento que eles construíram foi imediatamente recebido como um gesto
político.
Duas semanas antes, as
ruas estavam cheias de outras 900.000 pessoas também ansiosas, pessoas que
também expressavam seus medos e desejos e assim questionavam o rumo do país.
Muitas delas não tinham Facebook e não eram jovens; elas vinham da parcela mais
pobre da população brasileira. Elas foram para as ruas motivadas por um boato
sobre o fim do programa Bolsa Famíllia, e assim decidiram buscar logo o
benefício mensal. Seu ato coletivo foi reconhecido não como gesto político, e
sim como mero tumulto. Porém, esses, não menos do que aqueles, falavam dos
limites e barreiras do momento atual. Eles queriam dizer alguma coisa.
E quando eu tento
escutar aquilo que eles estavam falando, me lembro de minha conversa com Jaira.
“Não é algo…” Jaira me
falou essa frase e parou. Por um momento, no ar seco do sertão baiano, houve
silêncio. Finalmente ela achou a palavra certa e completou: “...confiável.”
Não é algo confiável. Era
2012, e Jaira estava tentado me explicar as realidades do Bolsa Família. Sou
estudante de antropologia, estrangeiro. Quando comecei a morar no povoado rural
onde Jaira também mora, as mulheres do lugar queriam ensinar-me alguma coisa.
Elas queriam indicar, antes mesmo de o fato acontecer, quem seria o verdadeiro
culpado do boato sobre o Bolsa Família em maio de 2013. O culpado não seria um
político nem um gerente de banco.
Seria outra coisa.
Seria a estrutura de um
programa social que, todos os dias, com mil pequenas humilhações, comunica
simbolicamente para seus beneficiários: Bolsa Família não é algo confiável.
Você não pode contar com esse dinheiro.
É importante dizer, em
um primeiro momento, que o Bolsa Família transformou a vida de Jaira. Na zona
rural, percebe-se fisicamente a diferença entre os jovens que nasceram antes do
Bolsa Família e os que nasceram depois.
A melhora na nutrição
(entre tantos outros fatores) é nítida. Minha pesquisa demonstrou que o
dinheiro, na grande maioria das vezes, é usado para gastos com comida, roupas,
e alojamento. Ou seja, esse recurso tem um papel fundamental no progresso de
13,8 milhões de famílias, o que representa um êxito humano de relevância
mundial. O programa brasileiro é a maior programa de transferência condicionada
de renda no mundo, e o mundo está de olho; foi o Bolsa Família, justamente, que
me trouxe até Brasil para fazer pesquisa.
Mas para podermos valorizar
esse sucesso, precisamos reconhecê-lo como um sucesso ainda incompleto. Seus
limites tornaram-se evidentes no dia 18 de maio, quando correu um boato segundo
o qual o programa seria cancelado. Cerca de 900 mil beneficiários em 13 estados
se apressaram para chegar até os pontos de pagamento, provocando tumultos,
pânico, esgotamento de dinheiro nos caixas e, pouco tempo depois, uma polêmica
partidária sobre a origem do problema. Segundo informações da Caixa Econômica
Federal, no 17 de maio, o banco pulou o calendário normal, no qual o pagamento
é feito de forma escalonada, e liberou o recurso mensal de todos os
beneficiários no país ao mesmo tempo.
Eis o paradoxo. Como é
que um aumento na disponibilidade do dinheiro, um pagamento antecipado, podia
transformar-se em um poderoso boato sobre o cancelamento do programa?
A resposta a essa
pergunta revela uma realidade bem importante sobre o Bolsa Família. Foram
milhares de pessoas que passaram o boato de vizinho para vizinho, em quintais e
roças, por meio de ligações de orelhão e conversas de igreja, e essas pessoas,
mesmo comunicando uma informação incorreta, davam voz a uma verdade. Elas
demonstravam o que Antônio Gramsci chamava de “bom senso,” ou seja, a
capacidade das massas para expressar uma verdade social em uma forma não
ortodoxa. E a verdade é essa: Bolsa Família é um programa social, e não um
direito.
Essa verdade pode ser
ouvida no que me disseram quatro vizinhas de Jaira, em quatro conversas
distintas, no ano de 2012:
“Bolsa Família não é uma
coisa segura que-- hoje você tem, amanhã-- já não sabe mais se você tem.”
“O dia que cortar, vai
ser geral […] Esse dinheiro não é para toda a vida.”
“Acho que tem que estar
preparado, que não é uma coisa que vai ser pra sempre [...] e você nem sabe se você vai ficar recebendo a
vida toda […] o governo corta.”
“Receber até o dia que
eles querem […] que ninguém sabe se é
para toda a vida.”
A instabilidade do Bolsa
Família é um fato vivido por essas benificiárias rurais. Elas a percebem logo
no cadastramento. O acesso ao benefício não é garantido, mesmo para quem se
encaixa nos critérios do programa, e as vizinhas de Jaira costumam esperar
muito para receber o primeiro pagamento— três meses pelo menos e, em algumas
famílias que conheço, até quatro anos.
(Nas frias palavras do
site do MDS, “o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
seleciona, de forma automatizada, as famílias que serão incluídas no PBF. No
entanto, o cadastramento não implica a entrada imediata das famílias no
Programa e o recebimento do benefício.”)
No povoado onde mora
Jaira, quando comecei minha pesquisa no final de 2011, quase todo mundo já
havia feito várias viagens à prefeitura para solicitar o Bolsa Família, mas
20,5% dos domicílios qualificados não recebia nada.
Mesmo o fato de receber
o dinheiro não traz segurança. Muitas das vizinhas de Jaira já tiveram o
recurso bloqueado, geralmente por causa de transtornos burocráticos e às vezes
sem explicação, durante três ou quatro ou até onze meses.
Esses bloqueios
provocavam crises na alimentação das crianças, mas, em um lugar onde a passagem
de ônibus para chegar até a prefeitura custa o equivalente ao que um
trabalhador ganha em um dia de trabalho no campo, foi difícil resolvê-los.
Quando os beneficiários conseguiam desbloquear o Bolsa Família, não recebiam
pagamento atrasado.
Os beneficiários
entendem claramente o recado que mandam os gestores do programa. Mireya Súarez
e Marlene Libardoni, em sua pesquisa sobre o Bolsa Família, ouviram esse recado
de um gestor municipal:
“A gente não sabe até
quando vai durar, que é um programa que teve início e que pode ter fim.
Portanto, as famílias têm que se preparar para se desligar disso.”
Esses gestores,
entretanto, só comunicam uma incerteza que tem sua origem na estrutura política
do Bolsa Família. As listas de espera, os bloqueios, a falta de segurança sobre
o futuro: tudo vem da raiz do programa.
Tudo isso acontece
porque o Bolsa Família não é um direito — é um programa social. A decisão de
estruturar o Bolsa Família como programa opcional do governo – ou seja, como
intervenção pontual e impermanente – foi uma determinação política.
O Senador Suplicy
defendeu uma visão alternativa, na qual o Bolsa Família seria o primeiro passo
na criação de uma renda básica universal, mas seus esforços infatigáveis
tiveram como único resultado uma lei de valor simbólico e hoje ignorada.
O Bolsa Família, na sua
condição de programa social, quebrou com a trajetória do Estado de Bem-estar
brasileiro, uma trajetória marcada pelo aumento paulatino da parcela da
população que gozava do direito a uma transferência de renda: os direitos
trabalhistas da época de Vargas, a expansão de aposentadorias para lavradores
rurais em 1963, e, como fruto da redemocratização, a criação em 1993 do
Benefício de Prestação Continuada para pessoas idosas ou com deficiências.
Não foi por acaso que a
Lei Orgânica de Assistência Social falava, em 1993, na “garantia dos direitos
sociais,” quando, dez anos mais tarde, o decreto criando o Bolsa Família visou
“estimular a emancipação sustentada das famílias que vivem em situação de
pobreza e extrema pobreza.”
Entre “garantir” e
“estimular,” entre 1993 e 2004, vive-se toda uma transformação no Estado.
Flexibilidade, investimento, e auto- empreendedorismo viram as palavras-chaves,
e a estrutura do Bolsa Família demonstra o quanto nem Lula nem Dilma
conseguiram romper com esse fundamento neoliberal. No mundo da permanente
impermanência, a função do governo é atingir metas, e não garantir direitos.
Nos olhos de quem recebe
o Bolsa Família, se o dinheiro não é um direito, o que é? Segundo as palavras
de um vizinho de Jaira, é “um grande privilégio.” Ou seja, o benefício é uma
dádiva com a qual não se pode contar.
É claro que não são
todos os beneficiários enxergam o programa assim. Mas a lógica do “privilégio”
vem sendo reforçado com as ondas sucessivas de aumentos inseguros e às vezes
transitórias. Enquanto eu morava no povoado, ouvimos falar do Bolsa Verde, do
Brasil Carinhoso, do Bolsa Nutriz e Bolsa Gestante, e do Bolsa Estiagem, só
alguns dos quais chegaram e só para algumas pessoas, geralmente sem explicação
e sempre sem garantia.
Entende-se, portanto,
por que alguns beneficiários interpretaram a chegada antecipada do dinheiro, no
dia 17 de maio, como um “presente de Dilma” para o Dia das Mães. Entende-se
também, em um movimento mais complexo, o raciocínio que levou os beneficiários
a concluir que esse presente sinalava também o fim do programa.
Podemos lembrar aqui os
pensamentos do antropólogo Marcel Mauss, grande teórico do fenômeno da
dádiva. A dádiva, para Mauss, é um
fenômeno aparentemente voluntário, mutável, e nunca sujeito a uma contabilidade
exata. Nas variadas culturas humanas, a dádiva nunca pertence totalmente ao seu
receptor; uma parte sempre procura voltar ao doador. O ato de doar pede mas não
garante um retorno, e o retorno pede outro dom, prolongando assim o vínculo..
Como perfeitos
maussianos, os beneficiários tentam retribuir o dom do Bolsa Família com o
contra-dom das condicionalidades (freqüência escolar e vacinas), mas, frente
aos bloqueios burocráticos e à incerteza sobre o futuro do programa, o
contra-dom não consegue regularizar totalmente o fluxo do dinheiro. Essa dádiva
é instável.
O próprio Mauss
considerava que os benefícios sociais eram dádivas, e, escrevendo no ano 1925,
ele já destacou a insuficiência de benefícios instáveis que o Estado não
garante. Pelo visto, muitos beneficiários do Bolsa Família concordam com ele.
Em 2012, já corriam boatos, no sertão baiano, que tratavam do final do Bolsa
Família, como futuro de um programa sem garantia. Parecia claro que uma dádiva
como o Bolsa Família não pudesse ficar de maneira permanente nas mãos dos
pobres.
E em maio de 2013, nos
olhos de muitos beneficiários, parecia que essa profecia estava se tornando
realidade. Quando de repente o valor do dom aumenta, Mauss nos ensina, aumenta
também a incapacidade do receptor para retribui-lo. Por isso, um incremento no
dom implica uma certa agressividade, um lance que rompe com o ritmo de dom e
contra-dom, e que visa impossibilitar o contra-dom e assim terminar o ciclo das
trocas. O gesto de entregar o Bolsa Família antes da hora seria também o gesto
de terminar o processo.
Corria o boato no 18 de
maio, entre as pessoas que se apressavam para sacar seus benefícios, que o
governo precisava de dinheiro para acolher a visita do papa ou a Copa das
Confederações. Janúbia Silva Alves, de 29 anos, explicou a lógica em uma entrevista
condedida à Folha de S. Paulo (19/5):
"Estão avisando na minha comunidade que o governo vai pagar os
próximos três meses até o final do domingo e cancelaria tudo. A minha vizinha,
que já pegou o dinheiro dela, disse que o governo quer economizar dinheiro para
conseguir fazer as festas para o papa.”
Os argumentos sobre o
papa e a Copa exemplificam o bom senso. Um benefício não garantido, um mero
programa social, sempre compete com as prioridades espetaculares do estado
desenvolvimentista. E, como no potlatch da sociedade Kwakiutl, o Bolsa Família
terminaria, disse o boato, com grandes festas marcadas por um dom
extraordinário -- 3 meses de benefício! -- e impossível de retribuir.
Vale a pena pensar, além
do pânico de maio, nos efeitos negativos produzidos pela dinâmica de dádiva
instável que até hoje caracterizou a política do governo para com Bolsa
Família. Simbolicamente e juridicamente, o dinheiro nunca pertence totalmente
ao beneficiário. É um dinheiro que pode sumir a qualquer momento. A “cidadania”
que ele gera será, portanto, uma cidadania também incompleta. Os vizinhos de
Jaira não conseguem fazer grandes decisões – mudança de casa, início de pequeno
negócio, empréstimo a longo prazo – fundamentadas na segurança de que o Bolsa
Família vai permanecer. Pior ainda, o dom instável reforça o aspeto de
dominação na relação beneficiário-Estado, pois a arbitrariedade que acompanha
esse benefício evidencia a incapacidade do sujeito para influir nas decisões
que mais afetam sua vida.
Essa desigualdade vem
complementando outra: a hierarquia entre “trabalho” (atividade masculina,
segundo o estereótipo) e os esforços dentro de casa. Apresentando o Bolsa
Família como investimento pontual no capital humano, como auxílio para
consumos, como dom instável, os arquitetos do programa conseguem separá-lo do
salário, o dinheiro clássico do homem. Tal simbolismo vem escondendo uma visão
alternativa: o Bolsa Família poderia ser visto como o salário para o trabalho
doméstico. Nesse caso, estariam sido valorizados os trabalhos mais negligenciados, porém mais
essenciais para a reprodução da sociedade. O Bolsa Família seria entendido,
assim, como obrigação do Estado, como remuneração que o receptor ganha e, com
justiça, pode exigir. Uma fonte de verdadeira riqueza humana seria reconhecida.
O Bolsa Família mudou o
Brasil, e é hora de mudar o conceito que temos do Bolsa Família. Em 18 e 19 de
maio, uns poucos dias antes do grande movimento dos jovens, milhares de
beneficiários passaram um boato de porta em porta, de janela em janela, e assim
deixaram sua condição de objetos de planejamento social para se tornarem, por
um instante, protagonistas no discurso público. Com vozes eloquentes, eles
revelaram as instabilidades e insuficiências do modelo atual e a urgência de
uma visão melhor.
* Gregory Duff Morton é
lecturer em Antropologia e Serviço Social na University of Chicago, mestre em
Antropologia e mestre em Serviço Social pela University of Chicago, e
doutorando em Antropologia e Serviço Social na mesma universidade.
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