Por Sheila Jacob
O juiz Rubens Casara, da
43ª Vara Criminal do Estado do Rio de Janeiro, investe na aproximação entre a
sociedade civil e o poder Judiciário. Ele faz parte da Associação de Juízes
pela Democracia (AJD), instituição que tem como objetivo “dar voz a quem
normalmente não tem espaço nas decisões da Justiça, pois esta está vinculada a
uma tradição e uma prática conservadoras”, explica em entrevista ao Brasil de
Fato.
Em maio, ele organizou o
evento “Resistência Democrática: Diálogos entre Política e Justiça”, com o
objetivo de aproximar militantes sociais a atores jurídicos que possuem uma
visão progressista.
Casara acredita que só
será possível democratizar o Judiciário se houver a regulação da mídia no
Brasil. Segundo ele, muitas das decisões da Justiça são tomadas para agradar a
opinião pública, “que muitas das vezes é a opinião publicada pela chamada
grande mídia”. Na opinião dele, um exemplo a ser seguido é a Lei de Medios da
Argentina, aprovada após um amplo processo de mobilização social.
Brasil de Fato – O senhor organizou recentemente o seminário
“Resistência Democrática: diálogos entre política e justiça”. Qual o objetivo?
Rubens Casara – O evento
foi feito para mostrar que existe um pensamento contramajoritário dentro do
poder Judiciário, um pensamento que se identifica com as tradicionais bandeiras
da esquerda e com o respeito aos direitos fundamentais. O objetivo, em resumo,
foi unir esses atores jurídicos mais comprometidos com a sociedade e os
militantes de movimentos sociais que lutam por melhorias na vida do povo.
Esta foi a primeira edição. Por que realizá-la hoje?
Acredito que o momento
que estamos vivendo é bem complicado, um tempo de “fascismo societal”, como diz
o jurista e sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. A defesa dos
direitos humanos e as ideias mais progressistas têm perdido espaço, e isso é algo
que me assusta bastante. Pessoas que antes tinham vergonha de assumir certas
posturas autoritárias hoje o fazem com muita naturalidade. Um exemplo é a
transformação do Capitão Nascimento, personagem do Tropa de Elite, em herói
nacional. O ídolo é o policial que, embora honesto, é um torturador, um
criminoso.
Como o senhor avalia o Judiciário em relação à sociedade?
O Judiciário é um
reflexo das contradições da sociedade. A sociedade é autoritária e, portanto, o
poder Judiciário é autoritário. A maioria acredita – e é levada a acreditar –
no uso da força para resolver os mais variados problemas sociais. A população
que sofre a violência policial muitas vezes aceita e naturaliza essa violência,
como, por exemplo, o “toque de recolher” que existe em diversas comunidades. No
Brasil, as pessoas se acostumaram com autoritarismo, talvez porque a história
do nosso país não é marcada por fortes rupturas históricas; sempre que o povo
em movimento começava a se mobilizar e criar condições efetivas para transformações,
surgiam soluções impostas de cima para baixo, e isso repercute no poder
judiciário.
Ainda hoje?
Este é um momento de
crise do Judiciário, que se encontra em uma encruzilhada. Garapon [jusfilósofo
francês] aponta que o Judiciário está entre sua origem aristocrática,
comprometida com a manutenção das coisas do jeito que estão, e o que se
convencionou chamar de “tentação populista”, que também é perigosa, pois é uma
tendência de agradar a “opinião pública”, que muitas vezes não passa da opinião
publicada pelos meios de comunicação de massa, em especial os da chamada
“grande mídia”. Não raramente, os juízes julgam para agradar a essa grande
mídia. Isso é extremamente complicado, pois o poder Judiciário por defi nição
tem que ser contramajoritário, isto é, tem que julgar contra maiorias e até
mesmo contra a unanimidade se isso for necessário para defender os direitos
fundamentais. Se a sociedade é autoritária, machista ou racista, o Judiciário
tem o dever de se afastar dessas concepções opressoras, pois elas desrespeitam
os direitos fundamentais e violam o projeto constitucional de vida digna para
todos.
O debate sobre a redução da maioridade penal é uma dessas questões que
a mídia toma a dianteira?
Exatamente. Dentro do
poder Judiciário muita gente defende a redução da maioridade penal, isso em
contrariedade a todas as pesquisas sérias já feitas sobre o tema. Os dados
produzidos no Brasil apontam que é altíssimo o índice de reincidência no
sistema prisional, ou seja, muitos que ficaram presos acabam retornando ao
cárcere por cometerem novos crimes. Já no sistema socioeducativo, a prática de
novos atos infracionais após a imposição de medidas socioeducativas é muito
inferior. Ou seja, a opinião veiculada e naturalizada pela classe média
brasileira contraria todos os dados concretos sobre o assunto. Muita gente
defende a ideia da redução da idade penal, mas o faz a partir das lições do
William Bonner ou de outros “especialistas”.
E por que é tão difícil combater o conservadorismo do poder Judiciário?
Existem várias razões.
Um problema é o seguinte: os juízes que atuavam no período da ditadura
civil-militar continuaram a atuar após a redemocratização. Muitos desses
juízes, que fechavam os olhos para a tortura e a violação aos direitos humanos,
tornaram-se desembargadores, e novos juízes, para ter facilidades na carreira,
acabavam reproduzindo as opiniões e decisões daqueles velhos juízes. O
professor Raúl Zaffaroni, da Suprema Corte Argentina, diz exatamente isso: que
a maneira mais fácil de se fazer carreira é reproduzir a opinião de quem já
está dentro da instituição. É o que ele chama de “comodismo crônico”. Isso faz
com que o Judiciário continue sendo conservador. Ou seja: novos juízes, que
poderiam representar elementos de ruptura com esse sistema, reproduzem o
autoritarismo que encontram dentro do Poder Judiciário.
É interessante citar a
ditadura, pois os crimes daquele tempo continuam ocorrendo...
A ditadura produziu um
fenômeno interessante: a “democratização da tortura”. A tortura sempre existiu
no Brasil, mas antes era voltada exclusivamente para o pobre, para o capoeira
ou o negro fujão. Na época da ditadura militar, essa violência foi democratizada
para a parcela da classe média que se opôs ao regime, o que deu visibilidade
para a tortura. O que mais choca é que, quando ocorre a abertura política, a
tortura volta a ser direcionada ao seu público preferencial, ressurgindo também
o silêncio em torno do tema. A tortura é naturalizada sempre que é usada contra
o pobre, contra aquele que não interessa à sociedade de consumo. Da mesma
maneira, o tiro que atinge um menino da favela ou da periferia tem repercussão
diferente do tiro dado na Zona Sul.
E essa diferenciação também está presente nas decisões judiciais?
Infelizmente sim. Por
exemplo, isso ocorre na desqualificação do espaço público historicamente
destinado às camadas populares. Já vi colegas emitirem mandados de busca e
apreensão coletiva que autorizam a polícia a entrar, inclusive com o uso de
força, em qualquer casa de uma favela, mesmo que nada exista de concreto contra
os moradores da grande maioria dessas residências. Nunca vi um mandado desse
tipo ser cumprido na Avenida Vieira Souto.
O conservadorismo da “grande mídia” contribui para o conservadorismo do
poder Judiciário?
Não raro se julga para
agradar a cham ada “grande mídia”, ou seja, para agradar interesses econômicos,
sociais e de classe muito bem definidos. Só se pode falar em uma reforma
efetiva do Judiciário se houver também o controle social dos meios de
comunicação de massa, por causa dessa interferência direta de um no outro.
Sobre o tema, há também muitos mitos; muitas vezes a garantia da liberdade de
imprensa é distorcida para justificar crimes praticados através dos meios de
comunicação de massa. Qualquer pessoa que tenha estudado minimamente o processo
de mobilização social na Argentina que resultou na Lei de Medios, por exemplo,
sabe que o controle dos meios de comunicação proposto nada tem de censura. No
Brasil, hoje, em qualquer horário do dia, tem gente defendendo tortura e
violações aos direitos fundamentais na televisão, e isso é inadmissível. Os
meios de comunicação de massa produzem subjetividades e cultura. Se você quer
uma cultura comprometida com a democracia, não há como defender a legitimidade
de programas que incentivam o ódio, a violação de direitos e a eliminação das
diferenças.
E muitas vezes essas
formas de controle e participação são divulgadas como censura...
A concentração da mídia
é absurda no Brasil. São poucas famílias controlando muitos meios e produzindo
muitas subjetividades. As grandes corporações de mídia têm as falas
autorizadas: escolhem determinados “especialistas” para falar aquilo que querem
que seja dito. Por mais que as novas mídias tenham disputado um pouco de
espaço, ainda há um poder absurdo e sem controle nas mãos de poucos. Os meios
alternativos são o espaço para se produzir um discurso contra-hegemônico.
Existem blogs criteriosos, sérios, e também outros com posturas questionáveis.
Mas já é positivo o simples fato de existirem espaços que divulguem essa
pluralidade de ideias. O Marcelo Semer, ex-presidente da Associação de Juízes
pela Democracia (AJD), foi um dos primeiros juízes a ter um blog (Sem Juízo) e
a corajosamente se lançar nessa batalha por corações e mentes. Ele era um dos
meus candidatos a ministro do Supremo Tribunal Federal, pois possui uma visão
progressista no campo do direito e é extremamente comprometido com as lutas
populares.
Como o senhor avalia a indicação do novo ministro do STF?
O [professor Luis
Roberto] Barroso é um bom nome, excelente intelectual e acadêmico, mas não sei
se é o homem ideal para incorporar a resistência necessária às posturas
opressoras que estão em toda a sociedade, inclusive no próprio Supremo. Não sei
até que ponto ele será capaz de resistir às pressões da grande mídia, por
exemplo. Circula o boato de que a presidenta Dilma se convenceu de que o
ministro ideal deve ser um técnico e não deve se manifestar, do ponto de vista
político, sobre variados assuntos de interesse da sociedade. Para mim, isso é
um tremendo equívoco, pois em nome da melhor técnica se produziram as maiores
barbaridades da história do Poder Judiciário.
Um exemplo?
A decisão que não
impediu a deportação da Olga Benário. Foi um caso em que o recurso à técnica
foi utilizado para permitir a barbárie. Para mim, o ideal é que a sociedade
conheça e que se levem em conta as posições políticas de quem vai ser indicado
ao STF.
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