Por José Luís Fiori
A história das relações
internacionais ensina que nunca existiram países com “vocações inapeláveis” nem
povos que tenham nascido com o “destino manifesto” ou “revelado” de mandar,
converter ou civilizar o resto da humanidade.
1. Introdução
Ensina também que todos
os países que projetaram sua influência e poder para fora de suas fronteiras
nacionais e acabaram liderando suas regiões ou o próprio sistema mundial, em
algum momento, também foram sociedades periféricas. Mas foram sociedades que se
colocaram, como objetivo fundamental, a mudança de sua posição dentro da
hierarquia de poder e da distribuição da riqueza internacional. Além disso,
foram sociedades que se mobilizaram e atuaram de forma unificada, para
enfrentar e superar seus momentos de dificuldade e suas situações de
inferioridade, mantendo seu objetivo estratégico por longos períodos de tempo,
independentemente das mudanças internas de governo.
Na primeira década do
século XXI, aconteceu algo semelhante na sociedade brasileira. Depois de um
longo período de alinhamento quase automático do país às “grandes potências
ocidentais”, o Brasil se propôs a aumentar sua autonomia internacional,
elevando a capacidade de defesa de suas posições, em virtude de seu poder
político, econômico e militar. Nesse período, o Brasil contou com a liderança
política de um presidente que transcendeu as dimensões do seu país e projetou
internacionalmente sua imagem e sua influência carismática. Como passou em
outro momento, e em outra clave, com a liderança mundial de Nelson Mandela, que
também foi muito além do poder real da África do Sul. Esses fenômenos são
passageiros, mas, no caso brasileiro, a liderança presidencial permitiu que o
país desse alguns passos importantes na direção de uma nova estratégia
internacional, tomando posições, estabelecendo alianças e criando expectativas
dentro do jogo de poder mundial cuja mudança ou abandono – agora – custará ao
país um preço muito alto, do ponto de vista de sua imagem e de seu futuro
dentro desse jogo de xadrez global. Mesmo assim, nada está assegurado de
antemão e, para seguir em frente, o atual governo brasileiro terá de fazer um
balanço rigoroso dos passos que já foram dados e das dificuldades que se
anunciam para a segunda década do século, incluindo a intensa oposição interna
da imprensa e das elites conservadoras à política seguida desde 2003.
Os principais objetivos
da nova estratégia internacional aparecem definidos no Plano nacional de Defesa
(PnD) e na Estratégia nacional de Defesa (EnD), aprova- dos pelo Congresso
nacional em 2005 e 2008, respectivamente, e na sua versão mais recente, de
2012, em processo de discussão e aprovação parlamentar. Nesses documentos, o
governo brasileiro propõe uma nova política externa que integre plenamente suas
ações diplomáticas, com suas políticas de defesa e desenvolvimento econômico e,
ao mesmo tempo, propõe um conceito novo e revolucionário na história
brasileira: o conceito de “entorno estratégico” do país, a região onde o Brasil
quer irradiar – preferencialmente – sua influência e sua liderança diplomática,
econômica e militar, o que inclui a América do Sul, a África Subsaariana, a Antártida
e a Bacia do Atlântico Sul.
Na América do Sul, o
objetivo brasileiro segue sendo a plena ocupação econômica da Bacia Amazônica,
a integração da Bacia do Prata e a construção de um acesso múltiplo e contínuo
à Bacia Econômica do Pacífico, com a construção de uma sistema integrado de transporte,
comunicação e defesa do território sul-americano, além do aprofundamento da
integração política e econômica do Mercosul. Na África Subsaariana, o Brasil
prioriza sua aproximação diplomática, econômica e militar com África do Sul,
Angola, Nigéria e Namíbia, além de alguns países da Comunidade da Língua
Portuguesa, como Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Nisso, o Brasil dá
ênfase a suas relações bilaterais com a África do Sul, dentro da Comunidade
para o Desenvolvimento da África Austral (da sigla em inglês, SADC) e dentro do
Diálogo índia-Brasil-África do Sul (Ibas), criado em 2004. A Bacia do Atlântico
Sul adquire uma grande importância estratégica, como principal meio de
comunicação, transporte e comércio com a África. Por fim, o Brasil se propõe a
ampliar suas áreas de convergência e ação comum com algumas “potências
emergentes”, como China, índia e Rússia, que é – na verdade – uma “velha
potência” em processo de reconstrução.
Este artigo seleciona
apenas alguns aspectos e iniciativas mais importantes da política externa
brasileira entre 2003 e 2012, com o objetivo fundamental de identificar seus
principais desafios futuros. O artigo parte de um brevíssimo diagnóstico da
conjuntura internacional, para depois discutir as relações do Brasil com a
América do Sul, com o Atlântico Sul, com a África negra e com o grupo dos
Brics. Por último, o artigo inclui quatro notas sobre as condições do projeto
de expansão de poder e liderança internacional do Brasil.
2. Brevíssimo diagnóstico da conjuntura internacional
Como resposta à crise da
década de 1970, os Estados unidos redefiniram sua estratégia geopolítica e
econômica internacional. Isso começou com uma reaproximação diplomática com a
China, que envolveu a derrota/saída do Vietnã e levou à pacificação e ao
redesenho do equilíbrio de poder no Sudeste Asiático. Isso permitiu, ao mesmo
tempo, o cerco e a destruição da URSS, seguidos do fim da Guerra Fria.
Paralelamente, os Estados unidos abandonaram o Sistema de Bretton Woods, que
eles mesmos haviam criado, e promoveram a progressiva desregulação de seu
mercado financeiro, dando início a um longo processo de “redivisão”
internacional do trabalho. Depois, já nas décadas de 1980 e 1990, os grandes
“milagres econômicos” da Guerra Fria perderam centralidade, e a China e o
Sudeste Asiático assumiram a condição de novo dínamo da acumulação capitalista
mundial, ao lado dos EUA, evidentemente.
Depois do fim da Guerra
Fria e até os primeiros anos do século XXI, o mundo viveu uma situação de
aparente unipolaridade. Mas a vitória de 1991 não foi apenas norte-americana,
foi também uma vitória política da Alemanha unificada e da China, e representou
uma perda de posição relativa da França, da Grã-Bretanha e do próprio Japão. O
desaparecimento da URSS e o fortalecimento da China obrigaram a índia a assumir
uma nova postura internacional, e a própria desconstrução da URSS trouxe de
volta ao jogo internacional a velha Rússia, na condição de potência derrotada
que luta para reconquistar seu território e sua antiga “zona de influência”.
Além disso, já no início do novo século, as guerras do Iraque e do Afeganistão,
além das mudanças do norte da África, redefiniram as posições relativas dos
países da ásia Central e do Oriente Médio e colocaram sobre a mesa a
necessidade incontornável de assimilar a nova liderança regional do Irã, da
Turquia e do Egito, além de redefinir a posição de Israel e da Arábia Saudita
dentro do tabuleiro do “Grande Oriente Médio”.
Mesmo depois de sua
contundente vitória na Guerra Fria, os Estados unidos seguiram expandindo seu
poder internacional e construíram uma estrutura de poder militar global, com
cerca de oitocentas bases e mais de meio milhão de soldados fora de seu
território,
além de vários tipos de acordos de defesa mútua com cerca de 140 países, garantindo a supremacia militar dos EUA em todos os oceanos e espaços aéreos do mundo. Paralelamente, o poder da economia e dos mercados financeiros norte-americanos impôs aos “mercados globais” um novo sistema monetário internacional, baseado no dólar e sem nenhum tipo de base metálica, apoiado apenas na “credibilidade” do poder global e da dívida pública dos EUA. Como consequência, nas duas décadas depois do fim da Guerra Fria, os EUA acumularam poder e riqueza numa velocidade sem precedente na sua história e na história do próprio sistema capitalista mundial.
além de vários tipos de acordos de defesa mútua com cerca de 140 países, garantindo a supremacia militar dos EUA em todos os oceanos e espaços aéreos do mundo. Paralelamente, o poder da economia e dos mercados financeiros norte-americanos impôs aos “mercados globais” um novo sistema monetário internacional, baseado no dólar e sem nenhum tipo de base metálica, apoiado apenas na “credibilidade” do poder global e da dívida pública dos EUA. Como consequência, nas duas décadas depois do fim da Guerra Fria, os EUA acumularam poder e riqueza numa velocidade sem precedente na sua história e na história do próprio sistema capitalista mundial.
Mesmo depois da crise
financeira de 2008, não faz sentido falar em “crise final” dos EUA nem muito
menos do capitalismo. Mesmo o “declínio relativo” do poder norte-americano com
relação ao crescimento da importância econômica e política da China, não deve
deslocar os EUA da posição de pivô do sistema mundial durante as próximas
décadas. Tudo indica, pelo contrário, que os Estados unidos se transformaram na
cabeça de um sistema de poder global que está atravessando – no início do
século XXI – dificuldades e incertezas produzidas pela mudança de sua condição
de “potência hegemônica”, até a década de 1970, para a condição de “potência
imperial”, depois de 1991.
O novo estatuto imperial
dos EUA, somado a sua política interna de austeridade fiscal – induzida pela
crise financeira de 2008 – os levaram a adotar uma nova forma de administração
do seu poder global, cada vez mais arbitral e “terceirizada”, por meio da
promoção ativa de divisões e “equilíbrios de poder” regionais, segundo o modelo
clássico da administração imperial da Grã-Bretanha, e só fazendo intervenções
diretas em última instância e de preferência através de países aliados.
De qualquer maneira, é
impossível prever exatamente como será o desenvolvimento desse novo tipo de
“império”, porque não é colonial e terá de conviver com 195 Estados e economias
nacionais, que têm assento nas nações unidas, e são ou se consideram soberanos.
A própria expansão do poder norte-americano seguirá criando e fortalecendo
novas potências emergentes que acabarão competindo entre si e com os próprios
EUA, no longo prazo. Do ponto de vista norte-americano, o essencial é impedir
que alguma potência regional ameace sua posição de árbitro em última instância
ou se proponha a desafiar sua supremacia naval e aérea em qualquer latitude do
sistema mundial.
Com certeza, esse será
um jogo de xadrez extremamente complicado, mas será sem dúvida o jogo da
próxima década: de um lado, os EUA se distanciando e dividindo, e só intervindo
em última instância; do outro, as demais potências regionais tentando escapar
do “cerco norte-americano” e lutando para impedir que os seus vizinhos
conquistem posições hegemônicas dentro de sua própria região. Isso não
acontecerá sem conflito e sem guerras, porque a nova doutrina estratégica dos
EUA deve estimular a corrida armamentista dentro de todas as regiões arbitradas
pelos EUA. Os próprios EUA deverão ser os grandes fornecedores das armas
destinadas a “equilibrar” os vários “jogos geopolíticos” regionais. Não se deve
excluir também a possibilidade de derrotas ou fracassos militares localizados
dos EUA. E tampouco se pode excluir da nova ordem a repetição de crises
financeiras, como a de 2008. Dentro do novo sistema monetário e financeiro internacional
que se globalizou depois de 1991, toda crise financeira in- terna da economia
norte-americana deverá atingir a economia mundial, em maior ou menor grau, pela
corrente sanguínea do “dólar flexível” e das finanças globalizadas. Mas essas
crises não deverão atingir a posição de liderança monetária e financeira dos
EUA, enquanto o governo e os capitais norte-americanos puderem repassar seus
custos para outros países e puderem manter o controle monopólico da inovação
tecnológica, sobretudo no campo militar.
A nova engenharia da
economia mundial – criada pela associação entre as economias norte-americana e
chinesa – contribuiu para transformar a China numa economia nacional com enorme
poder de gravitação sobre a economia mundial. A nova distribuição da riqueza e
do poder econômico já aumentou a intensidade da competição interestatal e
intercapitalista, atingindo a economia europeia e promovendo uma nova “corrida
imperialista” na África. Apesar de tudo, não está no horizonte da próxima
década uma “guerra hegemônica” entre as grandes potências.
Por fim, o Brasil já
ingressou no rol dos estados e das economias nacionais que fazem parte do
“caleidoscópio central” do sistema, onde todos competem com todos e todas as
alianças são possíveis, em função dos objetivos estratégicos de cada país e de
sua proposta de mudança do sistema internacional.
3. O Brasil e a América do Sul
3.1. A história, a geografia e as mudanças recentes
No século XIX, as
guerras e as disputas políticas e territoriais entre os novos Estados
sul-americanos não produziram na região as mesmas consequências sistêmicas –
políticas e econômicas – das guerras de centralização do poder e de formação
dos Estados e das economias nacionais europeias. E mesmo no século XX não se
consolidou no continente sul-americano um sistema integrado e competitivo de
Estados e economias nacionais, como ocorreu na Ásia, após sua descolonização.
Por isso, nunca existiu na América do Sul uma disputa hegemônica entre os seus
próprios Estados e economias nacionais e nenhum dos seus Estados jamais
disputou a hegemonia continental com as grandes potências. De fato, desde sua
independência, o continente sul-americano viveu sob a tutela hegemônica dos
países anglo-saxões: primeiro, da Grã-Bretanha, até o fim do século XIX, e,
depois, dos Estados unidos, durante o século XX. Como consequência, os Estados
sul-americanos nunca ocuparam posição importante nas grandes disputas
geopolíticas do sistema mundial, até o fim da Guerra Fria.
A própria geografia
sul-americana sempre conspirou contra a interiorização da sua atividade
econômica e contra a integração política do continente. O território
sul-americano é recortado por grandes barreiras naturais que obstaculizam sua
comunicação e integração física, como é o caso da Cordilheira dos Andes, da
Floresta Amazônica e da região do Pantanal brasileiro e do Chaco boliviano. Só
na “região do pampa” argentino, uruguaio, paraguaio e brasileiro é que se pode
falar de um território extenso e contínuo com terras extraordinariamente
férteis. As terras da Bacia Amazônica e da maior parte das planícies tropicais
são muito pobres e de baixa fertilidade, e por isso também a população e a
atividade econômica de Venezuela, Guiana, Suriname se concentram a poucos
quilômetros da costa: é muito difícil e custoso qualquer projeto de
interiorização. Da mesma forma, a combinação de montanhas e florestas tropicais
também limita as possibilidades de integração econômica dentro do arco de
países que se estende da Guiana Francesa até a Bolívia. O Peru é um país
rachado ao meio e dividido entre a sua zona costeira, onde se concentra a
atividade extrativa e de exportação, e seu interior andino ou amazônico,
extremamente isolado e atrasado social e economicamente. O Chile, por sua vez,
possui um clima temperado e terras produtivas, mas é um dos países mais
isolados do mundo, o que dificulta sua integração com os demais países do “Cone
Sul”, e o transforma em uma pequena economia aberta e exportadora, voltada
quase obrigatoriamente para os EUA e o Pacífico. Mesmo no caso do Brasil, um
terço do seu território está ocupado por florestas e a topografia do território
induziu uma ocupação econômica e uma urbanização que ainda seguem concentradas
próximas da costa atlântica, apesar do movimento intenso de interiorização das
últimas décadas. A própria integração econômica de suas grandes metrópoles
costeiras ainda é pequena e obstruída por uma cadeia montanhosa quase contínua.
Depois do fim da Guerra
Fria, durante a década de 1990, quase todos os governos sul-americanos aderiram
ao projeto da “globalização liberal” e a suas políticas econômicas,
responsáveis pelas crises cambiais da Argentina, em 1999, e do Brasil, em 1997,
1999 e 2001. O insucesso econômico das políticas neoliberais contribuiu
decisivamente para a “virada à esquerda” dos governos sul-americanos, durante a
primeira década do século XXI. Em poucos anos, quase todos os países da região
elegeram governos de orientação nacionalista, desenvolvimentista ou socialista,
que mudaram o rumo político-ideológico do continente. todos se opuseram às
ideias e políticas neoliberais da década de 1990 e todos apoiaram ativamente o
projeto de integração da América do Sul, opondo-se ao intervencionismo
norte-americano no continente. Esse giro político à esquerda coincidiu com o
ciclo de expansão da economia mundial, que favoreceu o crescimento generalizado
das economias regionais até a crise financeira de 2008.
Hoje já é possível
identificar as principais mudanças que ocorreram na América do Sul, durante a
primeira década do século XXI e, ao que tudo indica, vieram para durar: i) o
aumento do poder e da liderança brasileira dentro da América do Sul; ii) a
mudança do posicionamento regional dos Estados unidos; iii) a invasão econômica
chinesa do continente; e, finalmente, iv) o “vaivém” do processo de integração
e o “cisma do Pacífico”.
3.1.1. O aumento do poder e da liderança brasileira
No fim da primeira
década do século XXI, o Brasil concentrava metade da população sul-americana e
era o principal player dentro do tabuleiro geopolítico e econômico continental,
tendo alcançado, inclusive, uma presença expressiva na América Central e no
Caribe. Do ponto de vista econômico, a diferença entre o Brasil e o resto do
continente aumentou consideravelmente nos últimos anos: em 2001, o Produto
Interno Bruto brasileiro girava em torno de 550 milhões de dólares, a preços
constantes, e era inferior à soma do produto dos demais países sul-americanos,
que girava em torno de 640 milhões de dólares nessa mesma época; dez anos
depois, a relação mudou radical- mente: o Produto Interno Brasileiro (PIB)
brasileiro cresceu e alcançou a cifra aproximada de 2,5 bilhões de dólares em
2011, enquanto o valor do produto bruto do resto da América do Sul era de cerca
de 1,6 bilhão de dólares.
Na América Central e
Caribe, o Brasil aceitou o comando da “missão de paz” das nações unidas no
Haiti, tomou uma posição decidida a favor da reintegração de Cuba na comunidade
americana e defendeu em todos os foros internacionais o fim do bloqueio
norte-americano a Cuba. Ao mesmo tempo, exerceu uma razoável influência
ideológica sobre alguns governos da América Central e tomou uma posição rápida
e dura frente ao golpe de Estado militar em Honduras, em junho de 2009, e à
tensão com os Estados unidos com respeito à coordenação da ajuda ao Haiti, no
terremoto do início de 2010. Apesar de adotar um ativismo diplomático mais
intenso, o Brasil não tem nenhuma possibilidade de competir ou questionar o
poder norte-americano no seu “mar interior caribenho”.
Na América do Sul, o
Brasil demonstrou nos últimos dez anos vontade e decisão de defender seus
interesses e seu próprio projeto de segurança e integração econômica do
continente. Com a expansão do Mercosul, a criação da união de nações Sul-americanas
(Unasul) e do Conselho Sul-Americano de Defesa, o Brasil contribuiu para o
engavetamento do projeto da área de Livre Comércio das Américas (Alca) e
reduziu a importância do tratado Interamericano de Assistência Recíproca e da
Junta Interamericana de Defesa, criados e sustentados pelo patrocínio dos
Estados unidos. Além disso, o Brasil teve uma participação ativa e pacificadora
nos conflitos de fronteira dessa primeira década, entre Equador e Colômbia e
entre Colômbia e Venezuela, e fez uma intervenção discreta, mas eficiente, para
impedir que os conflitos regionais da Bolívia se transformassem em uma guerra
de secessão territorial. Finalmente, em 2012, o Brasil liderou a rápida reação
da Unasul contra o “golpe civil” que derrubou o governo do presidente Fernando
Lugo, do Paraguai, e foi favorável ao afastamento do país do Mercosul até sua
completa redemocratização.
Do ponto de vista da
segurança e da defesa continental, o Brasil assinou – em 2009 – um acordo
estratégico militar com a França que deverá alterar, no longo prazo, o poder
naval do Brasil no Atlântico Sul, pois o país vai adquirir, entre 2021 e 2045,
a capacidade simultânea de construir submarinos convencionais e atômicos e de
produzir seus próprios caças bombardeiros. Essa decisão não caracteriza uma
corrida armamentista entre o Brasil e seus vizinhos do continente, muito menos
com os EUA, mas sinaliza uma mudança da posição internacional brasileira e uma
vontade clara de aumentar sua capacidade político-militar de veto dentro da América
do Sul com relação às posições norte-americanas.
3.1.2. A nova posição dos Estados unidos
Os Estados unidos
mudaram sua posição frente à América do Sul, depois do fracasso das políticas
neoliberais do Consenso de Washington, do abandono do projeto da Alca e da
desastrosa intervenção a favor do golpe militar na Venezuela, em 2003.
Diminuíram sua intervenção política direta no continente, passaram a promover
acordos comerciais bilaterais com alguns países da região, estimularam a
divisão interna do continente com o estímulo à formação de um “bloco liberal”
dos países do Pacífico e, sobretudo, mudaram seu foco militar no continente.
Fizeram parte dessa última inflexão a decisão de reativar a 4a Frota naval, em
2008, responsável pelo controle marítimo das águas que cercam a América Latina
e as negociações de um novo acordo militar com a Colômbia, que dará acesso aos
militares norte-americanos a sete bases aéreas e navais dentro do território
colombiano, na contramão do projeto de criação do Conselho de Defesa
Sul-Americano, liderado pelo Brasil. A reativação da 4a Frota naval, em
particular, explicita a nova doutrina estratégica internacional dos EUA, mais
foca- da no plano militar; isso fica claro na advertência do almirante Gary
Roughead, chefe de Operações navais da Marinha norte-Americana: “ninguém deve
se enganar: porque esta frota estará pronta para qualquer operação, a qualquer
hora e em qualquer lugar, num máximo de 24 a 48 horas”.
3.1.3. A “invasão” econômica chinesa
Como em outras partes do
mundo, também na América do Sul a intervenção econômica da China seguiu uma
trajetória ascendente e acelerada, durante a primeira década do século XXI.
Como consequência, a China se transformou rapidamente no maior parceiro
comercial da maioria dos países da região. Nesse período a China mais que
dobrou sua participação nas importações realizadas pelos países sul-americanos,
e seu o valor bruto cresceu mais de 700%, enquanto as exportações brasileiras
para a América do Sul, nesse mesmo período, cresceram menos de 40%. Mesmo
durante a crise econômica de 2008, a participação brasileira no mercado
argentino recuou de 42% para 31,5%, enquanto a participação chinesa subiu de
21,5% para 30,5%. O mesmo aconteceu na Venezuela, onde a participação chinesa
subiu de 4,4%, em 2008, para 11,5%, nos quatro primeiros meses de 2009. Também
aumentou a parcela de investimentos que a China destina à América Latina, que,
como um todo, recebe 18% dos recursos do país asiático, perdendo apenas para a
Ásia, aonde vai 63% do investimento externo chinês. Em linguagem estruturalista
clássica, pode-se dizer que a China se transformou no novo “centro cíclico
principal” do continente, ao reforçar a “velha vocação” primário-exportadora
das economias sul-americanas. Mas é importante destacar que não existe nenhum
sinal ou perspectiva de que a China queira se envolver no jogo geopolítico
sul-americano.
3.1.4. O “vaivém” da integração e o “cisma do Pacífico”
O projeto de integração
sul-americana nunca foi uma política de Estado, indo e vindo no decorrer do
tempo, na forma de um projeto ou utopia “sazonal”, que se fortalece ou
enfraquece dependendo das flutuações da economia mundial e das mudanças de
governo dentro da própria América do Sul. Durante a primeira década do século
XX, os novos governos do continente – alinhados com uma postura crítica ao
neoliberalismo –, num contexto de crescimento generalizado das economias
regionais entre 2001 e 2008, estimularam e fortaleceram os projetos de
integração da América do Sul, em particular o Mercosul, liderados pelo Brasil e
pela Argentina. Depois da crise de 2008, entretanto, esse cenário mudou: a
América do Sul recuperou-se rapidamente, puxada pelo crescimento da China, mas,
por mais paradoxal que isso possa parecer, o sucesso econômico de curto prazo trouxe
de volta e vem aprofundando as velhas limitações objetivas do projeto de
integração econômica da América do Sul, ou seja: 1) o fato de as economias
sul-americanas seguirem sendo quase todas economias primário-exportadoras e
pouco integradas entre si; 2) a existência de grandes assimetrias e
desigualdades nacionais e sociais dentro de cada país e da região como um todo;
3) a falta de uma infraestrutura continental eficiente; e 4) a falta de
objetivos regionais permanentes, capazes de unificar a visão estratégica do
continente.
Foi nesse contexto de
“reprimarização” da economia sul-americana que surgiu o “cisma do Pacífico”, o
aparecimento de um novo eixo político-diplomático e econômico dentro do
continente, a “Aliança do Pacífico”, com a participação do Chile, do Peru e da
Colômbia, ao lado do México e do Panamá, sob a liderança dos Estados unidos. Os
três países sul-americanos são pequenas economias de exportação com escasso
relacionamento comercial entre si e – talvez por isso mesmo – sempre foram favoráveis
às políticas de abertura de seus mercados externos. A soma do Produto Interno
Bruto dos três países é de cerca de 800 bilhões de dólares, menos de um terço
do PIB brasileiro e menos de um quarto do PIB do Mercosul. é nesse sentido que
se pode dizer que o “cisma do Pacífico” tem mais importância ideológica do que
econômica, porque sua força política decorre inteiramente da sua aliança com os
EUA. Na verdade, os três países sul-americanos associados à “Aliança do
Pacífico” fazem parte do processo de criação da Trans-pacific Economic
Partnership (TPP), que se transformou na peça central da política externa
comercial da administração Obama e de seu projeto de afirmação do poder
econômico e militar norte-americano na região do Pacífico. Além dos cinco países
latinos, fazem parte do projeto norte-americano o Canadá, a Austrália, a Nova
Zelândia, a Malásia, Singapura e Brunei, além da Coreia do Sul e do Japão. Sem
o Japão, o acordo terá menor relevância, mas se as resistências japonesas forem
vencidas esse bloco de livre comércio e proteção dos direitos de propriedade
incluirá 40% do PIB mundial e acrescentará 60 bilhões de dólares às exportações
norte-americanas. Segundo a revista Foreign Affairs, “se as negociações da TPP
prosperarem, os EUA vão se tornar muito mais fortes, econômica e politicamente,
na próxima geração”.
3.2 Balanço e perspectivas
Depois de uma década de
mudanças e forte ativismo político, é possível identificar algumas disjuntivas
no horizonte da América do Sul, e algumas escolhas que seus governos deverão
fazer nos próximos anos.
Do ponto de vista
econômico, e em particular do ponto de vista dos mercados, a tendência
“natural” é que a América do Sul siga sendo uma periferia econômica
exportadora, mesmo se ampliar e diversificar seus parceiros e compradores, e
que seu novo “centro cíclico” seja a China. Para mudar essa tendência é preciso
que haja vontade política e poder de decisão do Estado para levar adiante,
mesmo nos momentos de maior dificuldade, um projeto integracionista que
fortaleça a estrutura produtiva e dos serviços regionais. Nesse caso, haveria
que acelerar o projeto de construção dos grandes eixos de transporte e
comunicação interna, além de tomar decisões conjuntas de política econômica que
apontassem – de forma consistente e continuada – para a construção e
consolidação do mercado interno, com a redução progressiva da de- pendência
macroeconômica em relação às flutuações dos mercados internacionais de
commodities. Nesse ponto, não existe meio-termo: os países inteiramente
dependentes da exportação de produtos primários ou de recursos naturais – mesmo
no caso do petróleo – serão sempre países periféricos, incapazes de comandar
sua própria política econômica e incapazes de comandar sua participação
soberana na economia mundial.
Do ponto de vista da
defesa e segurança do continente, a tendência “natural” dos fatos, uma vez
mais, é que a América do Sul se mantenha sob a proteção militar
norte-americana. Mas não é impossível a construção no médio e longo prazo de
uma capa- cidade estratégica mais autônoma e centrada na própria região. Para
isso, entretanto, os governos sul-americanos teriam de sair de sua atual “zona
de conforto” e tomar a decisão política de construir, mesmo que seja de forma
lenta, um sistema de segurança regional coletivo, em que os países
sul-americanos participariam na condição de aliados estratégicos.
De qualquer maneira, uma
coisa é certa: a possibilidade de sucesso de uma alternativa sul-americana mais
autônoma e soberana dependerá cada vez mais das escolhas do Brasil. no caso do
Brasil também é possível identificar pelo menos duas alternativas fundamentais.
Primeiramente, do ponto de vista econômico o mais fácil é que o Brasil siga o
caminho indicado pelos mercados e pelos grandes investidores financeiros
internacionais.
Nesse caso, o Brasil
poderá se transformar numa economia exportadora de petróleo, alimentos e
commodities, uma espécie de “periferia de luxo” das grandes potências
compradoras do mundo, como foram, no seu devido tempo, a Austrália e o Canadá,
mesmo depois de sua industrialização. Nesse caso, entretanto, o Brasil nunca
poderá se transformar em uma “locomotiva continental” e será sempre um
competidor em relação aos seus vizinhos. Mas o Brasil tem capacidade e
possibilidade de construir um caminho alternativo e novo dentro da América do
Sul, de alguma forma similar ao da economia norte-americana, que tem
autossuficiência energética, que possui excelente dotação de recursos naturais
estratégicos e que soube combinar uma indústria de alto valor agregado com um
setor produtor de alimentos e commodities de alta produtividade.
Do ponto de vista de sua
política de defesa, o Brasil também tem pelo menos duas alternativas: ou se
mantém na condição de sócio preferencial dos Estados uni- dos e garante a
administração colegiada de sua supremacia sul-americana; ou luta para aumentar
sua capacidade de decisão estratégica autônoma, com uma política hábil e
determinada de complementaridade e competitividade crescente com os Estados
Unidos.
Tanto na disjuntiva
econômica quanto na defesa, a opção mais autônoma e soberana aponta para um
caminho muito mais longo e árduo do que o caminho “natural” dos mercados e da
subordinação estratégica aos EUA. Por isso mesmo, a construção desse caminho
alternativo supõe a existência de uma coalizão de poder com capacidade de
sustentar um projeto de expansão econômica e de afirmação geopolítica até a
consolidação de posições irreversíveis, incluindo a construção de uma nova
hegemonia ideológica, dentro do Brasil e da América do Sul.
4. O Brasil e o Atlântico Sul
4.1. A geografia e a geopolítica atlântica
Na primeira década do
século XXI, o Brasil assumiu plenamente o fato de o Atlântico Sul ser uma
reserva e uma fonte importante de recursos econômicos, ser seu principal meio
de transporte e intercâmbio comercial e poder ser um meio de projeção de sua
influência e poder na África. Além das novas reservas de petróleo do pré-sal
brasileiro, também existem reservas na plataforma continental argentina e foram
comprovadas expressivas reservas de petróleo offshore na região do Golfo da
Guiné, sobretudo na Nigéria, em Angola, no Congo, no Gabão e em São tomé e
Príncipe. Ainda na costa ocidental africana, a Namíbia possui grandes reservas
de gás e a África do Sul, de carvão. Também existem na Bacia Atlântica crostas
cobaltíferas, nódulos polimetálicos (contendo níquel, cobalto, cobre e
manganês), sulfetos polimetálicos (contendo ferro, zinco, prata, cobre e ouro),
além de depósitos de diamante, ouro e fósforo, entre outros minerais
relevantes, e já foram identificadas grandes fontes energéticas e minerais na
região da Antártica. Além disso, o Atlântico Sul é uma via de transporte e
comunicação fundamental com a África e um espaço de suma importância para a
defesa e a segurança dos países ribeirinhos, dos dois lados do Atlântico.
A Argentina tem 5 mil
quilômetros de costa e sustenta uma disputa territorial com a Grã-Bretanha, em
torno da soberania das ilhas Malvinas e das ilhas Geórgia e Sandwich do Sul.
Além disso, a Argentina tem uma importante projeção e interesse no território
da Antártida e nas passagens interoceânicas do canal de Beagle e do estreito de
Drake. Do outro lado do Atlântico, a África do Sul ocupa o vértice meridional
do continente africano, e é um país bioceânico, banhado simultaneamente pelo
Oceano Atlântico e pelo Oceano índico, com quase 3 mil quilômetros de costas
marítimas e cerca de 1 milhão de quilômetros quadrados de águas jurisdicionais.
Além disso, ocupa uma posição estratégica, como “rota do cabo” ou ponto de
passagem entre o “ocidente” e o “oriente”, e vice-versa, por onde circula cerca
de 60% do petróleo embarcado no Oriente Médio na direção dos EUA e da Europa, e
é também por onde circula um intenso comércio de commodities, sobretudo na
direção dos países mais industrializa- dos. A África do Sul defende uma
cooperação mais estreita com os demais países ribeirinhos do Atlântico Sul, mas
sua marinha se manteve sob forte influência britânica, entre o fim da Segunda
Guerra Mundial e o fim do apartheid, e hoje é relativamente inexpressiva.
Finalmente, a Nigéria e Angola têm 800 e 1,6 mil quilômetros de costa atlântica,
respectivamente. As reservas de petróleo do Golfo da Guiné estão estimadas em
100 milhões de barris, o que faz da costa e da plataforma atlântica um elemento
central da estratégia defensiva dos dois países. Mas nenhum dos dois dispõe de
capa- cidade naval mínima de defesa autônoma e de participação em operações
estratégicas mais amplas, que envolvam os demais países da Bacia do Atlântico
Sul.
Das grandes potências, a
Grã-Bretanha mantém a posse de um cinturão de ilhas no Atlântico, que lhe
confere uma vantagem estratégica sem igual, como é o caso das ilhas
meso-oceânicas de Tristão da Cunha, Ascensão e Santa helena e das ilhas
peri-antárticas de Shetlands, Geórgia, Gough, Sandwich do Sul, Orcadas do Sul e
Malvinas. Por sua vez, os EUA realizam exercícios periódicos no Atlântico Sul e
também possuem bases navais na ilha de Ascensão (arrendadas dos ingleses), além
de terem dois comandos militares com responsabilidades geográficas na região –
o Comando do Sul, estabelecido em 1963 e o Comando da África (Africom) mais
recente, estabelecido em 2007). Por fim, como já vimos, os EUA reativaram em
2008, a sua 4a Frota para o controle do Atlântico Sul, o que caracteriza uma
situação de grande assimetria de recursos e de poder naval entre as duas
potências anglo-saxônicas e os demais países situados dos dois lados do
Atlântico Sul.
4.2. A posição e as perspectivas do Brasil
O Brasil é o país que
dispõe do litoral mais extenso e da maior plataforma marítima entre os países
ribeirinhos do Atlântico. O interesse estratégico declarado do Brasil no
Atlântico Sul ultrapassa a defesa exclusiva das águas jurisdicionais de seu mar
territorial e das 200 milhas de sua Zona Econômica Exclusiva (ZEE), onde se
encontra a maior parte de suas reservas de petróleo e gás, e estende-se até a
África e o território da Antártida. O comércio marítimo brasileiro se dá
prioritariamente através do Atlântico, que representa 90% do comércio
internacional do país; além disso, cerca de 90% das reservas totais de petróleo
do Brasil e 67% de suas reservas de gás natural estão no mar; e o mesmo
acontece com 82% de sua produção atual de petróleo. O Brasil também possui três
ilhas atlânticas e tem uma importante projeção sobre o território da Antártida.
Entre 1952 e 1977, a
Marinha brasileira esteve sob tutela material e estratégica dos EUA, e só
começou a desenvolver o seu próprio planejamento autônomo a partir da denúncia
do Acordo Militar com os EuA e a formulação de seu “Plano Estratégico da
Marinha”, em 1977. Mesmo hoje, apesar de contar com um poder naval superior ao
de Nigéria, Angola, África do Sul e Argentina, o Brasil ainda tem enorme
vulnerabilidade no Atlântico Sul, por causa das dimensões de sua plataforma
marítima, que chega a ser metade de seu território continental e da grande
concentração de seu comércio, cidades e atividade econômica no litoral
atlântico. A Marinha do Brasil desenvolve há anos várias atividades de
cooperação com os países banhados pelo Atlântico Sul, incluindo Argentina,
Uruguai e África do Sul e tem ampliado sua cooperação com Guiné-Bissau,
Namíbia, Angola e São Tomé e Príncipe. Mas nada disso poderá alterar – ainda
por um bom tempo – a correlação de forças e o controle da Bacia Atlântica, que
seguirá sob o domínio do poder naval anglo-americano.
Nesse ponto não há como
enganar-se: o poder naval brasileiro foi inteiramente dependente da Inglaterra
e dos Estados unidos, pelo menos até a década de 1970, e o Brasil segue sendo
um país vulnerável do ponto de vista da capacidade de defesa da sua costa e de
sua plataforma marítima. Esse panorama só poderá ser modificado no longo prazo,
com a construção da nova frota de submarinos convencionais e nucleares que
deverão ser entregues à Marinha brasileira entre 2021 e 2045. Trata-se de um
limite material objetivo e intransponível no curto prazo, e o cálculo
estratégico do Brasil tem de assumi-lo como um dado de realidade e um elemento
central de sua política de defesa e de projeção de sua influência no Atlântico
Sul e na África Subsaariana. Até porque é muito pouco provável que os países
ribeirinhos, dos dois lados do Atlântico Sul, possam levar à frente ações
conjuntas de tipo afirmativo, por falta de interesses coincidentes e por falta
de poder real de implementação de decisões que envolvam o uso de um poder naval
de que não dispõem.
5. O Brasil e a África
Subsaariana
5.1. A história, a
geografia e as mudanças recentes
A África é o segundo
maior e o mais populoso continente do mundo: tem uma área de 30.221.532
quilômetros quadrados e uma população de cerca de 1 bilhão de habitantes,
aproximadamente 15% da população mundial. Encontra-se cercado pelo Mar
Mediterrâneo, ao norte, pelo Canal de Suez e pelo Mar Vermelho, ao nordeste,
pelo Oceano índico, ao sudeste, e pelo Oceano Atlântico, ao oeste. O continente
inclui a ilha de Madagascar, vários arquipélagos, 9 territórios e 57 estados
independentes. Seu território é dividido geograficamente em cinco grandes
regiões, e é comum ser separado em dois grandes blocos: a África do norte,
predominantemente arábica e islâmica, situada ao sul do Mar Mediterrâneo, e a
África Subsaariana, também chamada África negra, situada ao sul do Deserto do
Saara. Cerca de metade da população africana vive na África negra, que, apesar
de ser considerada o “berço da humanidade”, inclui sociedades extremamente
desiguais, com indicadores socioeconômicos muito negativos. A maior parte da
África vive sob clima tropical, dominante tanto na zona tropical quanto na
região equatorial, com exceção de algumas pequenas áreas de clima ameno,
situadas nos extremos norte e sul do continente.
Os europeus chegaram à
costa africana e iniciaram seu comércio de escravos negros no século XV e XVI,
mas foi só no século XIX que as grandes potências europeias ocuparam e
impuseram sua dominação imperial em todo o território africano, menos a
Etiópia. A Conferência de Berlim, de 1884 a 1885, consagrou a divisão colonial
do território africano entre a Inglaterra, a França, a Alemanha, a Bélgica e a
Itália, além da Espanha e de Portugal, que já ocupavam suas colônias desde
muito antes da conferência. Entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o final da
década de 1970, quase toda as colônias africanas se separaram de suas
metrópoles europeias, dando origem a um sistema de Estados recortado por
fronteiras criadas (na sua maior parte) pelos próprios colonizadores. Durante a
Guerra Fria, a maioria dos países africanos se colocou ao lado das potências ocidentais.
A independência africana, depois da Segunda Guerra Mundial, despertou grandes
expectativas com relação aos seus novos governos de “libertação nacional” e
seus projetos de desenvolvimento, que tiveram sucesso em alguns casos, durante
os primeiros tempos de vida independente. Esse desempenho inicial, entre-
tanto, foi atropelado por sucessivos golpes e regimes militares, e pela crise
econômica mundial da década de 1970, que atingiu todas as economias periféricas
e provocou um prolongado declínio da economia africana, até o início do século
XXI. Mesmo na década de 1990, depois do fim do mundo socialista e da Guerra
Fria, e no auge da globalização financeira, o continente africano ficou
praticamente à margem dos novos fluxos de comércio e de investimento globais.
Depois de 2001,
entretanto, a economia africana ressurgiu, acompanhando o novo ciclo de
expansão da economia mundial, como aconteceu na América do Sul. O crescimento
médio, que era de 2,4% em 1990, passou para 4,5% entre 2000 e 2005, e alcançou as
taxas de 5,3% e 5,5%, em 2007 e 2008. No caso de alguns países produtores de
petróleo e outros minérios estratégicos, essas cifras alcançaram níveis ainda
mais expressivos, como em Angola, Sudão e Mauritânia. A África conta com 25%
das reservas de urânio e mais de 35% do potencial hidrelétrico do mundo, e é
responsável pelo fornecimento de 15% da produção mineral do planeta, incluindo
70% da de dia- mantes e platina, 50% da de cobalto, mais de 30% da de ouro e
cromo e cerca de 20% da de urânio, manganês e fosfato. Os países da África que
circundam o Atlântico Sul possuem significativas reservas provadas de petróleo,
totalizando quase 60 bilhões de barris e 3,5% das reservas mundiais.
Destacando-se: Angola, cujas reservas aumentaram cerca de dez vezes entre 1991
e 2011 (partindo de 1,4 bilhão de barris) e que possui 13,5 bilhões de barris
em reservas provadas de petróleo, com 0,8% das reservas mundiais; e Nigéria,
cujas reservas quase dobraram entre 1991 e 2011 (partindo de 20 bilhões de
barris) e que possui as maiores reservas da região subsaariana, com 37,2
bilhões de barris em reserva, 2,3% do total das reservas globais. A dotação de
recursos explica em parte por que a África Subsaariana se transformou – depois
do ano 2000 – no palco central de uma intensa competição entre os governos e os
grandes capitais públicos e privados das antigas potências colonialistas, ao
lado da China, da índia, da Rússia e também do Brasil, que é o país com a
segunda maior população negra do mundo.
A mudança da economia
africana na primeira década do século XXI – como no resto do mundo – se deveu
ao impacto do crescimento vertiginoso da China e da índia, que consumiam 14%
das exportações africanas no ano 2000 e hoje consomem 27%, assim como a Europa
e os Estados unidos, que são velhos parceiros comerciais do continente
africano. Na direção inversa, as exportações asiáticas para a África vêm
crescendo a uma taxa média de 18% ao ano, seguindo os investimentos diretos
chineses e indianos, sobretudo em energia, mineração e infraestrutura. Nesse
momento, existem mais de mil empresas e cem mil trabalhadores chineses na
África, com uma estratégia conjunta de “desembarque econômico” no continente,
como acontece também, em menor escala, com o governo e os capitais privados
indianos. Nesse sentido, não cabe mais dúvida, devido ao volume e à velocidade
dos acontecimentos: a África é hoje o grande espaço de “acumulação primitiva”
asiática e uma das principais fronteiras de expansão econômica e política da
China e da índia. Mas, ao mesmo tempo, não há o menor sinal de que os Estados
unidos e a união Europeia estejam dispostos a abandonar suas posições
estratégicas, conquistadas e controladas dentro do território econômico
africano.
Depois da frustrada
“intervenção humanitária” dos Estados unidos, na Somália, em 1993, o presidente
Bill Clinton visitou o continente e definiu uma estratégia de “baixo teor” para
a África: democracia e crescimento econômico através da globalização dos seus
mercados nacionais. Mas, depois de 2001 – como aconteceu também na América do
Sul –, os Estados unidos mudaram radicalmente sua política africana, em nome do
combate ao terrorismo e da proteção dos seus interesses energéticos, sobre-
tudo na região do “Chifre da África” e do Golfo da Guiné, que, até 2015, deverá
fornecer 25% das importações norte-americanas de petróleo. Foi quando os
Estados unidos criaram seu novo comando estratégico regional no nordeste
africano e instalaram as primeiras bases de apoio do Africom, criado em 2008,
dando início a uma nova era de intenso engajamento da Marinha norte-americana
na costa oeste da África. O aumento da presença militar norte-americana,
entretanto, não é um fenômeno isolado, porque a união Europeia e a Grã-Bretanha
também têm dedicado atenção crescente à África, e até a Rússia vem
intensificando seus acordos envolvendo venda de armas e alguns projetos
bilionários de suprimento de gás para a Europa, através da Itália e do deserto
do Saara.
5.2. A projeção do Brasil na África
Depois da Segunda Guerra
Mundial e até a década de 1960, a política externa brasi- leira se submeteu à
estratégia norte-americana da Guerra Fria e apoiou o colonialismo europeu na
África. Essa posição só mudou pela primeira vez com a “política externa
independente” (PEI), dos governos de Jânio quadros e João Goulart, entre 1961 e
1964. Logo depois do golpe militar de 1964, entretanto, o governo Castello
Branco voltou a apoiar o colonialismo português e europeu, e essa posição só
veio a ser modificada durante o governo Geisel, que reconheceu a independência
dos governos revolucionários de Guiné-Bissau e de Angola, em 1975, mesmo contra
a oposição dos EUA e de vários países europeus. Nos anos 1990, o governo
brasileiro voltou a dar prioridade, na sua política externa, às relações com os
EUA e com os países desenvolvidos. E, só na primeira década do século XXI, o
Brasil definiu explicitamente a África Subsaariana como parte de seu “entorno
estratégico”, onde pretendia irradiar sua lide- rança e projetar sua influência
política e econômica.
Entre 2003 e 2010, o
presidente Lula visitou 29 países africanos – alguns mais de uma vez –,
totalizando mais visitas ao continente do que a somatória das visitas de todos
os presidentes anteriores. Nessas visitas, foram firmados inúmeros acordos
econômicos e foram criadas diversas organizações empresariais, como no caso do
lançamento da Câmara de Comércio Brasil-Gana, em 2005. O Brasil também
renegociou a dívida de vários países africanos num valor que ultrapassou 1
bilhão de dólares e representou cerca de 75% do total das dívidas renegociadas
pelo governo brasileiro nesse período. Além disso, o Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) e o Banco nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) intensificaram seu apoio e
financiamento às exportações brasileiras para o continente africano; em 2008,
os incentivos concedidos às empresas brasileiras para exportar para a África –
no âmbito do “Programa de Integração com a África” – resultaram no desembolso
de R$ 477 milhões, elevando-se para R$ 649 milhões, em 2009. Nesse período,
várias empresas brasileiras se instalaram em Moçambique, Angola, Guiné,
Mauritânia, Argélia e Líbia, explorando o setor de serviços, extração de
recursos naturais e grandes obras públicas de transporte, barragens e
hidroelétricas. A Petrobras e a Vale do Rio Doce foram as grandes responsáveis
pelos investimentos brasileiros em extração mineral. Os principais projetos da
Vale estão em Moçambique e na Guiné, onde a Vale está construindo uma ferrovia
que atravessa o Malaui, para poder escoar o seu minério. A Petrobras atua em
Angola, Gabão, Líbia, Namíbia e Tanzânia, além e sobretudo na Nigéria, que é
seu principal parceiro e fornecedor do petróleo importado pelo Brasil. A
agricultura também tem sido um campo fértil de colaboração, e a Embrapa tem
fornecido – desde seu escritório de Gana – assistência técnica à indústria de
algodão em Benin, Burkina Faso, Chade e Mali, com algumas empresas brasileiras
que produzem soja, cana-de-açúcar, milho e algodão no continente africano.
Importante também foi a atuação brasileira na área de cooperação técnica
bilateral, com o envio de missões de apoio ao desenvolvimento urbano a países
como Moçambique e namíbia, ou de cooperação na construção ou reconstrução de
infraestrutura e de conjuntos habitacionais, como no caso de Angola, além de
informatização de órgãos governamentais, como aconteceu com o governo de São
Tomé. Além disso, o governo brasileiro intensificou significativamente suas
“ações horizontais” e suas parcerias governamentais no campo da educação, do
saneamento básico, da nutrição e da saúde, sobretudo através da Fundação
Oswaldo Cruz e do seu Ministério de Saúde. O Brasil também aumentou suas ações
e parcerias estratégicas no campo da defesa com alguns países subsaarianos,
contribuindo para o levantamento da plataforma continental da Namíbia e de
Angola. Depois da Oceania, o continente africano é o que menos gasta em
armamentos, em todo o mundo – 1,7% do seu orçamento – e a África do Sul, que é
o país que ocupa a posição geoestratégica mais importante na África
Subsaariana, possui uma força militar menor do que a da Argentina. Assim mesmo,
há um grande espaço para cooperação na área da defesa entre o Brasil e a África
negra, através dos organismos internacionais ou mesmo através de ações conjuntas
voltadas para o ordenamento e a exploração dos recursos do Atlântico Sul. A
Marinha do Brasil ajudou a criar a Marinha da Namíbia e, entre 2003 e 2010, o
Brasil assinou Acordos de Cooperação no Domínio da Defesa com África do Sul,
Angola, Moçambique, namíbia, Guiné Equatorial, Nigéria, Senegal e Cabo Verde.
Empresas brasileiras da área da defesa, como a Embraer e a Emgepron, têm tido
uma atuação significativa na África, tanto no campo comercial quanto na difusão
de conhecimento tecnológico e na realização de projetos conjuntos, como no caso
do desenvolvimento – com a África do Sul – de um novo míssil ar-ar (Projeto
A-Darter), de um avião cargueiro e de veículos aéreos não tripulados. Na última
década, o governo brasileiro também fortaleceu laços com os países da
Comunidade de Língua Portuguesa, que se tornou um instrumento de concertação e
influência diplomática do Brasil, e também avançou na consolidação do seu
diálogo com a índia e a África do Sul, dentro do Ibas, criado em 2004 para
promover a cooperação e o intercâmbio Sul-Sul.
5.3. Balanço e perspectivas
A África Subsaariana
apresenta níveis altos de pobreza e carência no campo da alimentação, saúde,
educação etc. Em geral, são economias subdesenvolvidas com baixa capacidade
endógena de dinamização econômica. Além disso, existem enormes disparidades e
assimetrias sociais dentro dos países e entre os países da África negra, como
os países petroleiros que se destacaram tanto pelo crescimento acelerado do seu
PIB na última década quanto da desigualdade na distribuição de renda. Nesse
contexto, as “ações horizontais” da diplomacia brasileira se mantiveram quase
sempre num nível de cooperação bastante elementar de solidariedade e
sobrevivência, desenvolvendo-se de forma muito lenta e com resultados observáveis
limitados. Ao mesmo tempo, o continente africano possui uma grande variedade de
recursos naturais, tem enorme carência de infraestrutura de transportes e
comunicação e apresenta escasso nível de industrialização. Nesse sentido,
pode-se dizer que o futuro oferece boas oportunidades econômicas para o Brasil
no campo dos investimentos em infraestrutura (transportes, energia e
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