Por Luciano Wexell Severo
Os próximos anos podem
ser definitivos para o processo de integração regional. Passada uma década de
governos progressistas, é crucial que se consolidem as propostas de
transformação.
A escuridão da década de noventa
A história econômica das
últimas décadas do século XX na América Latina pode ser resumida em duas
palavras: dívida e crise. Os países da região contraíram imensas dívidas
externas na década de setenta. Na década de oitenta, para tentar pagá-las,
passaram por um tremendo processo de malabarismo macroeconômico. Mesmo assim,
só aumentaram os compromissos financeiros com os credores internacionais e a
drenagem de recursos para fora. Na década de noventa, como uma exigência da
renegociação das dívidas, foram impostas as chamadas políticas do “Consenso de
Washington”, que abriu as portas da região para as importações, o capital
especulativo e a política de privatização e desnacionalização.
Foram tempos de
hegemonia absoluta do deus Mercado. A liberalização do comércio, o livre fluxo
de capitais, as altas taxas de juros e as taxas de câmbio reais valorizadas
foram fatais. Foi como colocar um cigarro aceso na boca de um sapo. Apenas
entra fumaça. Uma hora o sapo arrebenta. No caso das economias da região, o
problema era um pouco diferente e a explosão veio através de contas externas.
Havia mais dinheiro saindo do que entrando. O capital especulativo chegou
atraído pela elevada remuneração dos papéis das dívidas. Foi incentivado o
desmantelamento da produção e da estrutura de emprego por meio do processo de
venda/doação das empresas estatais e da submissão do capital privado nacional
ao estrangeiro. As importações foram resultado claro da taxa de câmbio real
valorizada e da destruição do aparato industrial interno. As remessas de lucros
ao exterior foram uma consequência óbvia da presença dominante do capital
estrangeiro em setores estratégicos da economia.
Ao longo da década de
noventa, veio a conta: as crises financeiras e os déficits na balança de
pagamentos. Em nome da derrubada da inflação e da “modernização” das economias
construídas durante o período considerado negativamente como “populista” e
“desenvolvimentista”, os governos neoliberais promoveram o crescente acúmulo de
déficits. Como resultado, muitas economias da região quebraram. Foram os casos
da Venezuela de Rafael Caldera, da Bolívia de Gonzalo Sánchez de Lozada e do
México de Carlos Salinas de Gortari, todos em 1994, e do Paraguai de Juan
Carlos Wasmosy em 1995. Fernando Henrique Cardoso quebrou o Brasil três vezes
entre 1994 e 1999; Jamil Mahuad, que elevou o dólar a moeda oficial, quebrou o
Equador em 1999; e Andrés Pastrana, o mesmo que assinou o Plano Colômbia com
Bill Clinton, também quebrou seu país em 1999. Na Argentina, Menem Carlitos,
Domingo Cavalo (Sunday Horse) e Fernando de la Rua geraram a profunda crise
entre 1999 e 2002. Demorou pouco para Jorge Batlle explodir a economia do
Uruguai em 2002.
Os novos governos da década de 2000
Há uma vasta literatura
que associa os desastres econômicos da década de noventa com a chegada dos
governos progressistas da década de 2000. Estes últimos representaram uma luz
frente à escuridão do “pensamento único” que vinha do Norte. Os novos governos
sintetizaram o desejo popular de resgatar a própria dignidade. Daquelas
revoltas populares contra os pacotes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e
seus representantes internos emergiram propostas alternativas e contra
hegemônicas. Cada país passou a adotar medidas parecidas relacionadas com a
maior intervenção do Estado, com o desenvolvimento, com o pagamento da dívida
social e com a proposta bicentenária da integração regional. É sempre bom
lembrar que sem entender o caos econômico, político e social gerado pelas
políticas dos anos noventa não podemos compreender os atuais governos, suas
propostas e os seus tremendos desafios.
Hoje mais do que nunca,
tomando em conta os crônicos problemas de restrição externa que historicamente
afetam as balanças de pagamentos dos países sul-americanos, é necessário que as
recentes iniciativas de desenvolvimento econômico e de integração regional deem
a devida importância para as fontes de financiamento próprias e as linhas de
cooperação macroeconômica fora do âmbito neoliberal.
Não há dúvida de que, na
última década na América do Sul, houve uma mudança de estratégia para a
integração. Os países deixaram a defensiva e partiram para a ofensiva. Desde a
ascensão de Chávez, Lula e Kirchner, por exemplo, foi formalizado o acordo
entre o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e a Comunidade Andina de Nações (CAN),
gerando o futuro embrião da Comunidade Sul-Americana de Nações (CSN), criada em
2004. Ao mesmo tempo, Venezuela e Cuba criaram a Alternativa Bolivariana para
as Américas (ALBA), como um contraponto à Área de Livre Comércio das Américas
(ALCA). A proposta concebida por Chávez e Fidel foi baseada em critérios como
soberania, solidariedade, reciprocidade e complementaridade. Pouco a pouco, o
bloco se expandiu, formalizando-se em 2009 a entrada de Equador, São Vicente e
Granadinas e Antígua e Barbuda como membros plenos, ao lado de Bolívia,
Nicarágua, Dominica, Honduras e os dois países pioneiros.
Como parte dessa virada
para dentro, em 2005, na IV Cúpula das Américas, em Mar del Plata, foi
derrotado projeto americano da ALCA. Com dificuldade, mas foi derrotado. É bom
lembrar que a rejeição daquela proposta de anexação não era um consenso. A
declaração final do encontro explícita duas posições muito diferentes. Enquanto
alguns países levantaram a possibilidade de continuar as discussões sobre a
ALCA, as intervenções de Chávez, Lula, Tabaré Vásquez e Kirchner barraram essa
ideia. A posição altiva dos líderes sul-americanos foi expressa da seguinte
forma no documento: “Ainda há não condições necessárias para um acordo de livre
comércio equilibrado e justo, com acesso efetivo dos mercados, livres de
subsídios e práticas de comércio distorcidas e que tome em conta as
necessidades e as sensibilidades de todos os sócios, assim como as diferenças
nos níveis de desenvolvimento e no tamanho das economias”.
Naqueles anos de aumento
dos preços internacionais das commodities, de intenso crescimento econômico
global e de melhores condições financeiras, surgiram várias iniciativas comuns.
Em 2007, a CSN passou a se chamar União das Nações Sul-Americanas (UNASUL).
Esta organização, composta pelos 12 países da América do Sul, assumiu o papel
de promover a integração em diversas áreas, seja comercial, de infraestrutura,
financeira, educacional, de saúde ou de ciência e tecnologia.
Neste contexto, dentro
da estrutura da UNASUL, em 2010, formalizou-se a criação do Conselho
Sul-Americano de Economia e Finanças (CSEF). Entre os objetivos deste conselho
estão o “uso de moedas locais e regionais nas transações comerciais
intra-regionais”, trabalhar com “sistemas de pagamentos multilaterais e de
crédito”, criar um “mecanismo regional de garantias, para facilitar o acesso a
diferentes formas de financiamento’, aprofundar a “coordenação dos Bancos
Centrais em relação à gestão das reservas internacionais”, considerar a adoção
de “mecanismos de coordenação de recursos financeiros... para atender as
demandas de projetos de desenvolvimento e integração”, impulsionar um “mercado
sul-americano financeiro e de capitais”, desenvolver “mecanismos de
monitoramento conjunto para os fluxos de capitais... em caso de crises de
balança de pagamentos” e promover “mecanismos de coordenação de políticas
macroeconômicas”.
A Nova Arquitetura Financeira Regional
Desta maneira, dentro do
CSEF, ganhou força a proposta de Nova Arquitetura Financeira Regional (NAFR),
que de largada já resultou em uma forte aproximação dos Bancos Centrais da
região. A partir dessas reuniões, foram resgatadas antigas ideias, como
constituir um Banco do Sul e um Fundo Monetário do Sul, como impulsionar o
comércio intra-regional com moedas locais e formar um mercado regional de
títulos públicos. Vale comentar que muitas destas iniciativas e medidas foram
apresentadas pelos governos do Equador e da Venezuela. Este último país, por
exemplo, usou seus elevados saldos comerciais, obtidos com as exportações de
petróleo, para adquirir títulos da dívida pública argentina e equatoriana.
Neste momento de
aceleração das mudanças, é importante que as ações promovidas pela NAFR sejam
conhecidas e estudadas, até mesmo como uma forma de melhorá-las e
potencializá-las. Como resultado dos seus primeiros passos já houve um visível
progresso inicial. Agora parece essencial que as discussões e os estudos
caminhem especialmente em três direções:
1) A criação de
instituições de crédito de longo prazo (entender as funções do Banco do Sul e o
atual papel assumido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
do Brasil, BNDES). A importância de contar com fontes próprias de financiamento
justifica-se, entre outros pontos, pelo fato de possuir autonomia de reação nos
momentos de restrição de liquidez internacional. Além disso, os países se
libertam das exigências e contrapartidas neoliberais impostas pelas
instituições de financiamento tradicionais;
2) A manutenção e
promoção de acordos de swap de moedas (como o Convênio de Créditos Recíprocos
-CCR da Associação Latino-Americana de Integração -ALADI, o Sistema de Moedas
Locais -SML do Mercosul e o Sistema Único de Compensação Regional de Pagamentos
-SUCRE dos países da ALBA). Estes instrumentos permitem a mútua compensação dos
pagamentos de importações, podendo reduzir a necessidade da utilização de
dólares nas transações internacionais e aliviar os problemas de restrição
externa, e
3) O fortalecimento de
um mecanismo provedor de divisas (como o Fundo Latino-Americano de Reserva
-FLAR, que seria fortalecido com a entrada da Argentina e do Brasil). Note-se
que no final de 2011 os dois países levantaram a possibilidade de integrar o fundo,
mas ainda não o fizeram até meados de 2013.
Ao mesmo tempo em que o
CSEF promove a criação de novos instrumentos, reinterpreta de forma construtiva
as possíveis funções dos mecanismos já existentes, como a Corporação Andina de
Fomento -CAF, o Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata
-FONPLATA e o Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul FOCEM. O Banco
Interamericano de Desenvolvimento -BID, controlado pelos Estados Unidos, é
outra instituição que há décadas desempenha um papel de liderança na região.
Finalmente, comentamos
algo sobre as políticas macroeconômicas. Não se trata, naturalmente, de
defender a adoção das mesmas iniciativas em todos os países, mas de analisar a
possibilidade de adotar medidas convergentes. Em nosso entendimento, alguns dos
pontos mais relevantes seriam os seguintes: 1) assumir uma postura centrada no
desenvolvimento econômico, à industrialização e à integração regional; 2)
adotar políticas monetárias que estimulem o crescimento econômico antes que a
alta remuneração de capitais especulativos, que drenam recursos da área
produtiva e sobrevalorizam as moedas locais; 3) priorizar a adoção de metas de
crescimento e de emprego antes que as metas de inflação e de superávit fiscal;
4) pagar a dívida social com a maioria da população, historicamente excluída;
5) estabelecer algum nível de controle de câmbio, de capitais e de remessas de
lucros ao exterior, como forma de diminuir a exposição financeira dos países.
Deve estar bem claro que o suposto “financiamento” via Investimento Direto
Externo (IDE) aprofunda ainda mais a dependência e a restrição externa; 6)
priorizar as instituições de financiamento regionais, de comércio compensado e
a utilização de moedas locais, com a consequente redução da dependência com relação
às agências multilaterais e às moedas internacionalmente conversíveis.
Os próximos anos podem
ser definitivos para o processo de integração regional. Passada uma década de
governos progressistas, é crucial que se consolidem essas propostas de transformação.
Para isso, a questão do financiamento é central. Neste momento, estão dadas as
condições para avançar no caminho da integração financeira. Estão as condições
econômicas (elevadas reservas internacionais) e as condições políticas (o bom
grau de confluência entre os projetos das maiores economias da região).
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