Por CASSIANO ELEK
MACHADO e GRACILIANO ROCHA
Olhem para paris, diz
Teresa Caldeira. Mas não a de Maio de 68: para a antropóloga brasileira
radicada nos EUA, professora da Universidade da Califórnia em Berkeley, a
análise das manifestações que tomaram o país na semana passada deve se pautar
pelos distúrbios que eclodiram nas periferias francesas em 2005, quando cidades
suburbanas na região metropolitana de Paris ("banlieues") explodiram
em uma onda de protestos sociais.
Especialista em
antropologia urbana, Caldeira, 58, pesquisa a cultura da periferia, em especial
a de São Paulo, e diz que se vários cientistas sociais se declararam surpresos,
para ela não há novidade.
"Todos comparam com
Istambul ou com a Primavera Árabe, mas deveriam olhar para o que houve em Paris
há oito anos", diz Caldeira. "Dá muito bem para entender o que está
acontecendo e isso vem sendo articulado há muito tempo", acredita a
antropóloga, autora do livro "Cidade de Muro: Crime, Segregação e
Cidadania" (Editora 34).
Ela lembra que o
Movimento Passe Livre (MPL) existe há muitos anos e afirma que ele
"articula todo o imaginário da produção cultural da periferia".
"A Folha fez uma
foto em 2010 de um grafite feito pelo MPL no Minhocão, em São Paulo, que dizia
'A cidade só existe para quem pode se movimentar por ela'."
Caldeira reproduziu a
imagem em um artigo dela na revista "Public Culture" (Duke University
Press, 2012) e a frase do grafite como uma ideia fundamental do movimento
cultural da periferia. "Rap, literatura marginal, pixação, saraus, todos
se fazem na base e rede e de circulação. E circular por São Paulo é um caos
para quem não tem dinheiro."
Opinião diferente tem o
sociólogo francês Sebastian Roché. Em seu livro "Le Frisson de
l'Émeute", (Seuil, sem tradução no Brasil), ele afirma que as revoltas que
inflamaram a França -cujo estopim foi a morte de dois adolescentes
eletrocutados em uma perseguição policial- foram protagonizadas por jovens que
se consideram vítimas da xenofobia por não terem a pele branca e, na maioria,
filhos de imigrantes e muçulmanos.
"Os jovens muçulmanos,
muito numerosos nas 'banlieues', não se sentem aceitos nem respeitados em suas
crenças. Além disso, essa juventude foi abandonada à própria sorte. Nas
'banlieues', a taxa de desemprego oscila entre 25% e 40% entre jovens com menos
de 25 anos", frisa Roché.
Professor da celebrada
Sciences Po (Instituto de Estudos Políticos), da Universidade de Grenoble e
pesquisador do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Social), Roché diz ter
acompanhado com atenção a onda de protestos no Brasil, e não vê "muitos pontos
de comparação" entre o que aconteceu aqui e lá. Na França, diz ele,
"não foram pobres destruindo o meio de vida de outros pobres".
"A burguesia ou o
governo não foram os alvos. Nenhum espaço do poder foi sitiado ou tomado.
Ninguém se aproximou, por exemplo, do parlamento nem da sede do governo [como
ocorreu no Brasil]. Aqui, os grupos operavam durante a noite, escondiam o rosto
em capuzes e muitas vezes buscavam o confronto com a polícia. Não houve
qualquer manifestação de massa, nenhum líder ou palavra de ordem emergiu."
Teresa Caldeira, que no
ano passado ganhou a prestigiosa bolsa Guggenheim de pesquisa, nos EUA, aponta
outra foto dos movimentos recentes, que ela diz ter visto nas redes sociais,
como icônica do que está acontecendo. Dois rapazes seguravam cartazes: um
dizendo "O Brasil acordou" e outro "A periferia nunca
dormiu".
Também chamaram a
atenção dela as faixas que faziam referências ao trabalho da polícia. "A
PM está fazendo na Paulista o que faz todo dia na periferia", dizia uma
delas. "Há uma tensão de classes latente. E não me surpreende que os
protestos tenham chegado agora na periferia", diz ela, citando como
exemplo as manifestações dos últimos dias em regiões como a estrada do M'Boi
Mirim (na zona sul de São Paulo).
Ela aposta que,
"tal como em Paris, em 2005, veremos agora a explosão da periferia".
Ainda que, segundo ela, a presença de classes A e B tenha tido importante papel
na eclosão dos movimentos, os protestos veiculam uma insatisfação que vem sendo
cozinhada nas periferias. "Uma coisa é de onde vem o caldo e a outra é a
forma que a manifestação adquire. Na forma, parece um pouco com a Primavera
Árabe: a maneira como circularam as informações e a insatisfação com as
instituições políticas tradicionais", diz.
"No conteúdo, é
muito significativo que tenha estourado pelos R$ 0,20. Ninguém aguenta mais os
ônibus da cidade. Conheço muita gente da periferia, devido às pesquisas, que
todos os dias posta algo em mídias sociais contra o transporte público."
Para o francês Roché,
"a melhoria das condições de vida faz com que aqueles que se sentem
excluídos se mobilizem coletivamente para reivindicar, como é o caso do
Brasil". "Na França, a questão é de exclusão social em um período de
estagnação econômica, e a revolta de 2005 não gerou um modelo coletivo de
massas e organizado. Não houve protesto contestador, mas sim apropriações
individuais, como roubos e saques, ou então confrontos e destruição para
exprimir a raiva. Nas 'banlieues', não houve reivindicação explícita."
Ele afirma que, embora
"revoltas possam ensinar muito aos governantes", isso depende de eles
"serem capazes de olhá-las de frente". "Na França, nós não
aprendemos muito. Em novembro de 2005, a França estava a um ano e meio das eleições
presidenciais. O então ministro do Interior [Nicolas Sarkozy, presidente entre
2007-2012] viu naquilo uma oportunidade de reafirmar sua autoridade e
estigmatizar as 'banlieues' e seus habitantes com vistas à eleição de
2007" -que ele terminaria vencendo. "Nenhuma análise política foi
feita pelo Parlamento e menos ainda pelo ministério do Interior, proibido de
refletir sobre sua atuação pelo próprio ministro."
Para o sociólogo, as
revoltas urbanas podem, ainda, exprimir um desejo de participação direta nas
decisões públicas, no caso de países como Brasil e Turquia. "Nesses dois
países, muitos jovens com acesso à educação apresentam reivindicações sobre o
direito à diferença e que sejam levadas em conta suas demandas sociais pelo
poder central desses países."
O estudioso considera
que "há progressos econômicos tanto no Brasil quanto na Turquia, e esses
movimentos de contestação se dão em um contexto bem diferente do que ocorreu na
França, cujo crescimento econômico tem sido mínimo ou nulo nos últimos
anos".
Para o sociólogo "o
que está acontecendo no Brasil se parece mais com o Maio de 68".
"Naquela época a França vivia em pleno Les Trente Glorieuses [como ficaram
conhecidas as três décadas de crescimento e prosperidade no pós-Guerra], e a
juventude, com trabalho ou diplomas, mergulhou numa luta para que seu modo de
vida e aspirações fossem reconhecidos pelo governo", recorda.
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