Pular para o conteúdo principal

Sobre a neutralidade midiática

Por Alexandre Haubrich
Um dos artifícios mais importantes para a manutenção da hegemonia de uma classe sobre outra é a ideia de neutralidade. Daí a importância de construir esse debate em todas as esferas, e deixar sempre claro: não há ser humano neutro, não há atitude neutra. O homem é um ser político, vive em sociedade e essa sociedade se organiza a partir de determinados parâmetros determinados pelo conjunto de seres que a compõem. Alguns influenciam mais, outros menos, mas todas as atitudes tomadas ou não tomadas são componentes dessa construção. Por isso, de forma consciente ou não, estamos a todo instante, a cada escolha, contribuindo para a transformação ou para a conservação. Com a mídia não é diferente.
A escolha de uma manchete ou mesmo de um ângulo para uma fotografia – e esse é o exemplo mais comum – já são escolhas e, portanto, não-neutras. Como influenciam a sociedade e sua forma de ver a si própria, e, portanto, influenciam sua organização, são também escolhas políticas.
No caso dos veículos de comunicação, a afirmação de neutralidade traz vantagens políticas e econômicas diretas. Políticas porque a mídia dominante atua pela manutenção da situação social atual, e defender a ideia de neutralidade é necessariamente defender essa manutenção. O não-posicionamento é, por definição, deixar as coisas como estão. Econômicas porque, afirmando-se como verdadeiramente é – suporte das elites, inclusive sendo financiada por elas – afirmaria seu caráter de classe e sua defesa de 1% da população: os outros 99% a abandonariam.
Digo que mídia possui caráter de classe e isso não acontece por acaso. Os conglomerados de comunicação que controlam a informação no Brasil são financiados pelo alto empresariado nacional e internacional – o poder econômico. Além disso, alguns são filhos da Ditadura Militar, outros engordaram com ela e com os governos neoliberais que a sucederam – o poder político. Não por acaso, portanto, seu discurso é pela manutenção, e não por acaso por trás da máscara da imparcialidade um olhar atento e consciente da função política de cada olhar pode identificar em boa parte dos textos, das manchetes, dos títulos e das fotos a defesa dos interesses das elites.
Já explicava Perseu Abramo, em seu célebre artigo Padrões de manipulação na grande imprensa, que a manipulação não pode ser feita a todo instante, de vez em quando é preciso deixar o discurso respirar ares de realidade. Essa conduta impede que se perca a credibilidade e, assim, o consumidor e o poder político. Mas isso não quer dizer neutralidade, imparcialidade, ou sequer honestidade discursiva. Quer dizer apenas que há ali uma visão mercadológica e política estratégica. Essas “migalhas” são distribuídas pelo capitalismo, enquanto sistema, como forma de evitar o acirramento de contradições. O mesmo acontece com a mídia. Uma ponte precisa balançar um pouco para manter-se em pé. Se estiver rígida demais, cai. Não pode, porém, deixar de manter sua solidez. Balança, mas isso não faz dela algo menos sólido. O balançar é estratégico, apenas isso.
A mídia contra-hegemônica, por sua vez, deve reconhecer seu caráter de classe e lutar para desconstruir o discurso da neutralidade, instrumento ideológico fundamental das elites determinadas a anestesiar o povo, esconder dele a situação de confronto que se impõe a todo momento. Ora, contra-hegemonia é a possibilidade de uma nova hegemonia, e no caso da sociedade atual o que temos como possibilidade de nova hegemonia é apenas a hegemonia popular ascendendo para substituir a hegemonia do capital e de seus representantes.
Por isso uma mídia contra-hegemônica deve estar necessariamente ao lado das lutas populares e empenhada na desconstrução da alienação – ou seja, do afastamento da realidade. Dentro dos enfrentamentos que se estabelecem em uma sociedade de classes, o papel da mídia contra-hegemônica é justamente o enfrentamento discursivo, e, nesse sentido, anular a falsa neutralidade do adversário é um primeiro passo fundamental.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O mundo como fábula, como perversidade e como possibilidade: Introdução geral do livro "Por uma outra globalização" de Milton Santos

Por Milton Santos Vivemos num mundo confuso e confusamente percebido. Haveria nisto um paradoxo pedindo uma explicação? De um lado, é abusivamente mencionado o extraordinário progresso das ciências e das técnicas, das quais um dos frutos são os novos materiais artificiais que autorizam a precisão e a intencionalidade. De outro lado, há, também, referência obrigatória à aceleração contemporânea e todas as vertigens que cria, a começar pela própria velocidade. Todos esses, porém, são dados de um mun­do físico fabricado pelo homem, cuja utilização, aliás, permite que o mundo se torne esse mundo confuso e confusamente percebido. Explicações mecanicistas são, todavia, insuficientes. É a maneira como, sobre essa base material, se produz a história humana que é a verdadeira responsável pela criação da torre de babel em que vive a nossa era globalizada. Quando tudo permite imaginar que se tornou possível a criação de um mundo veraz, o que é imposto aos espíritos é um mundo de fabulações, q...

Preços de combustíveis: apenas uma pequena peça da destruição setorial

Por José Sérgio Gabrielli Será que o presidente Bolsonaro resolveu dar uma reviravolta na sua política privatista e voltada para o mercado, intervindo na direção da Petrobras, demitindo seu presidente, muito ligado ao Ministro Guedes e defensor de uma política de mercado para privatização acelerada e preços internacionais instantâneos na companhia? Ninguém sabe, mas que a demissão do Castello Branco não é uma coisa trivial, com certeza não é. A ação de Bolsonaro, na prática, questiona alguns princípios fundamentais da ideologia ultraneoliberal que vinha seguindo, como o respeito à governança das empresas com ações negociadas nas bolsas, a primazia do privado sobre o estatal e o abandono de intervenções governamentais em assuntos diretamente produtivos. Tirar o presidente da Petrobras, por discordar da política de preços, ameaça o programa de privatizações, pois afasta potenciais compradores de refinarias e tem um enorme efeito sobre o comportamento especulativo com as ações da Petrob...

Brasil perde um dos seus mais importantes cientistas sociais

Por Ricardo Cavalcanti-Schiel Faleceu por volta das 21:30 do dia 26 de março de 213, vítima de um acidente de trânsito no Km 92 da Rodovia Bandeirantes, o diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Prof. Dr. John Manuel Monteiro, quando regressava da universidade para sua residência em São Paulo. Historiador e antropólogo, John Monteiro foi um pioneiro na construção do campo temático da história indígena no Brasil, não apenas produzindo uma obra analítica densa e relevante, como também criando e estimulando a abertura de espaços institucionais e de interlocução acadêmica sobre o tema. Não seria exagerado dizer que foi em larga medida por conta do seu esforço dedicado que esse campo de estudos foi um dos que mais cresceu no âmbitos das ciências humanas no país desde a publicação do seu já clássico “Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo” (1994) até o momento. Tendo tido toda sua formação acadêmica nos Estados Unidos (graduado pelo Col...