Por Emiliano José
O diretor de redação de
CartaCapital, Mino Carta, durante a noite de autógrafos do livro em SP
Não há possibilidade de
sobrevivência humana sem que haja homens para contar o que acontece, e que
acontece porque é.
A frase é de Hannah
Arendt, recuperada com ênfase por Mino Carta em O Brasil, seu mais recente
livro, e constitui uma espécie de núcleo do que ele entende como jornalista.
Foi com ela, Hannah, que diz ter aprendido o conceito de verdade factual.
Omitida ou encoberta fatalmente pela mentira, a verdade factual soçobra como um
barco furado e nunca mais será recuperada – assegura Mino.
Começo lembrando isso
para falar de O Brasil, cujo protagonista, não sei se exagero, é o jornalismo
brasileiro, que emerge dele sem brilho e sempre pronto a servir aos donos do
poder – não se compreenda necessariamente como os que estejam no governo
porque, a depender de quem esteja no comando da Nação, pode se antepor a ele
com toda crueldade, como ocorre desde que começaram as administrações de Lula e
agora de Dilma.
Digo jornalismo como
protagonista como uma espécie de, chamemos assim, licença poética, se existe
isso num romance. Na verdade, Mino, no território ficcional do livro, constrói
um personagem, Abukir, pobre personagem, medíocre, que passo a passo sobe na carreira
jornalística, não sem, quando jovem, ter tímidas oscilações à esquerda, não
mais que oscilações, e que consegue, à custa de muita bajulação e servilismo,
chegar à chefia de redação de O Globo em São Paulo depois de ter passado pelo
Estadão, e ter demonstrado o quanto era fiel aos patrões. O que, no caso do
jornalismo brasileiro, ao longo da ditadura e depois, tornou-se quase um
padrão, e o livro acertadamente não poupa quase ninguém quanto a isso.
Abukir angustia o
leitor, ao menos a mim. Não sei se Mino leu Nelson Rodrigues, o mais provável
que sim. O protagonista casa-se com Adalgisa, moça sem maiores atributos
físicos ou intelectuais, vai lentamente subindo na carreira, sentindo o
casamento desgastar-se, querendo separar-se e sem ter coragem para tanto, e
depois a surpreende na cama com o filho do zelador, e sofre muito com isso,
mais com a chamada dor de corno do que quaisquer outras. E depois vai casar-se
com Rebeca, colega de redação, dada aos prazeres sexuais e ambições de variada
natureza, e Abukir, pobre coitado, não terá destino diferente, embora aqui a
dor de corno não surja porque os amantes não serão descobertos.
E assim a vida segue
para Abukir que, do seu ângulo de visão, é um premiado. E um premiado porque,
glória das glórias, viria a ser príncipe dos colunistas e comentarista da
televisão, considerada por ele uma das mais importantes do mundo, a Globo. Ali,
ele sabe, depois daquela trajetória tão fiel – ou tão servil, depende do olhar
– todos gostam dele, todos mesmo, inclusive a família Marinho, e por essa
simbiose, ele se sentia como se em casa estivesse.
Não é nada mau ser
reconhecido nas calçadas, nos restaurantes chiques, e ser paparicado,
especialmente por mulheres. Que vida maravilhosa, premiada – Abukir foi ao
paraíso. Publicou livro e naquele momento pensavam nele para concorrer a uma
vaga na Academia Brasileira de Letras. Fica difícil saber em quem Mino se
inspirou, se é que há alguém com tal perfil, alguém que, jornalista, tenha
aspirado a ocupar cadeira na Academia Brasileira de Letras. Recentemente, tive
notícias que o notável escritor baiano Antônio Torres concorreu à Academia, e
foi derrotado. Por um jornalista da Globo. Claro, quaisquer semelhanças com
personagens vivos ou mortos será mera coincidência.
Há muitos outros
personagens construídos por Mino no território ficcional, e alguns deles bem
mais dignos do que Abukir, com perfis de cidadãos, alguns com inspiração
revolucionária que chega a levá-los à morte sob a ditadura, outros com a
dignidade profissional que não os leva à submissão quase caricata do
protagonista. Personagem caricato, mas premiado, como ele se reconhece, e como
já dito. Paulo, que não ocupa o centro do palco, emergirá de O Brasil como
aquele que tem a política sempre na cabeça especialmente porque o inquieta
profundamente a desigualdade monstruosa que assola o Brasil – um cidadão, com
toda a densidade da palavra.
Só que o leitor é
surpreendido por Mino. O Brasil é mais do que um romance e há leitores, este
escriba incluso, que certamente concentrarão mais sua atenção nos entreatos,
quando a palavra é do personagem Mino Carta, captando os significados da
história do Brasil recente, de Getúlio Vargas ao fim do regime autoritário, com
toda sua carga dramática porque revisitando a ditadura e seus horrores, as
redações e suas armadilhas e carreirismos e pobreza intelectual, o jornalismo
brasileiro e sua impressionante cumplicidade com os donos do poder e por
extensão com a própria ditadura. E nisso tudo Mino é um protagonista ativo,
influente, explosivo, dinâmico, cáustico porque irônico, tropeçando e seguindo
adiante, nunca se dobrando e por isso tendo que afrontar a classe dominante e
seus representantes por quem o autor revela um caústico, desdenhoso desprezo.
Não é preciso insistir,
embora eu insista, que Mino é um crítico rigoroso do modo de produção
jornalístico do Brasil. Mino é jornalista desde sempre, desde quase menino,
desde a origem familiar, pai jornalista de nomeada. Percorre uma longa
trajetória profissional. Passa por vários e mais importantes veículos impressos
brasileiros, para além de rápidas incursões pela televisão, sempre em postos
dirigentes. O Brasil é o único país que jornalista chama o patrão de colega –
esta, uma de suas frases prediletas, a diagnosticar o servilismo, a submissão de
tantos dos nossos coleguinhas.
Os barões de nossa mídia
hegemônica aparecem no livro, e de modo especial, nos entreatos, não como
paladinos da liberdade, mas com suas faces reais, com seu ódio e desprezo pelo
povo, com seus espartilhos a segurar carnes flácidas, com sua aversão à
democracia, sua repulsa a quaisquer experiências políticas que se aproximem de
políticas reformistas, progressistas, a lembrar a experiência de Vargas ou a
atual, com Lula e Dilma à frente. Mino disseca como a imprensa brasileira não
só apoiou o golpe como, no decorrer da ditadura, foi absolutamente conivente
com ela, inclusive negociando sua cabeça, como ocorreu no caso de Veja no
início de 1976, para lembrar um dos momentos de servilismo mais explícito dos
barões da mídia.
Este breve comentário,
que não se pretende resenha, talvez devesse buscar algumas idéias-chaves que
perpassam o livro, correndo o risco naturalmente de errar ou de deixar muitas
de lado.
O Brasil é um país de
monstruosa desigualdade social, e Mino, nas páginas de CartaCapital, que hoje
dirige, tem dito que só mais recentemente houve o esforço dos governos Lula e
Dilma de reduzir essa desigualdade.
Essa perversa
característica brasileira é produto dos senhores da Casa-Grande. Mino não se
cansa de dizer, e não apenas em O Brasil, que as marcas de mais de 350 anos de
escravidão estão solidamente enraizadas em nosso País.
A elite brasileira –
poderíamos chamá-la classe dominante –, na
visão de Mino, é uma das mais perversas e cruéis do mundo: feroz e
hipócrita, maligna, implacável no desprezo pela ralé, com uma irredutível sanha
de mando, tanto melhor se obtido no conchavo entre os pares, ardilosa, pronta a
emboscadas, e pronta a ações punitivas entregues a jagunços, e estes podem usar
indumentárias variadas. E esta elite desde sempre e até hoje não teve razões
para temer nada, e sempre se insurge contra governos que queiram refrear, só
isso, refrear alguns de seus privilégios.
Não invento nada, uso
quase somente palavras dele. Essa elite ainda está na varanda, no conforto da
Casa-Grande, serviçais em torno, e é guardiã atenta e feroz de privilégios,
como já dito, e para assegurar a continuidade deles valeu-se de quaisquer
métodos, inclusive o de chamar os militares em seu socorro, como ocorreu em
1964.
A imprensa brasileira é
parte indissolúvel das classes dominantes, e por isso serve a tais classes com
denodo e muitas vezes com açodamento, sem que seja necessário sequer o pedido
de socorro por parte da elite.
Isso está presente em O
Brasil, é raciocínio corrente nas páginas de CartaCapital, está literalmente
formulado no prefácio de Mino ao livro de Cláudio Abramo, A regra do jogo: o
jornalismo e a ética do marceneiro.
Creio que O Brasil é
marcado, penso, como tudo aquilo que Mino escreve, pela formulação gramsciana,
tomada, me parece, de Romain Rolland: pessimismo da inteligência, otimismo da
vontade.
Grasmci com tal
formulação fortalecia a razão, obrigada a analisar com atenção a realidade
circundante, sem, no entanto, deixar de lado o otimismo da vontade, que podia
ser entendido, em Gramsci, como a intervenção fundamental da política.
Mino, por evidência, não
despreza o otimismo da vontade, mas, já que jornalista, dá muito mais ênfase ao
pessimismo da Inteligência, ainda mais quando se sabe ser ele um ser cáustico,
irônico, corrosivo, como já se disse.
Não há, em Mino, nada de
panglossiano. Talvez, junto com Gramsci, o espírito de Mino seja animado por
Norberto Bobbio, que dizia que o prazer de ser otimista era reservado aos
fanáticos, àqueles que desejam a catástrofe, e aos insensatos, àqueles que
acreditam que no fim tudo se arranja.
O pessimismo, assim,
pode ser compreendido com uma atitude não-conformista, ativa, que acredita,
ainda, no milagre da política, da ação humana, à Hannah Arendt, autora
obviamente querida por Mino. O Brasil é um livro que, com sua carga crítica
acentuada, ajuda e muito a compreender nossa história recente, para além da
compreensão específica do jornalismo brasileiro.
Gosto quando Mino afirma
a inexistência do tempo e por isso é mergulhado em reencontros que a suspensão
do tempo possibilita, que se dão no epílogo do livro. Particularmente com
Raymundo Faoro, um de seus inspiradores, sobretudo nas críticas ferinas aos
donos do poder. O diálogo faz o livro crescer ao final. Mino pergunta ao gaúcho
de Vacaria, o grande ex-presidente da OAB (e quanta saudade de um presidente
assim na OAB...), autor de Os donos do poder:
-E se as bombas do
Riocentro tivessem explodido no lugar previsto pelos estrategistas do I
Exército e metade da assistência do show do primeiro de maio tivesse morrido
pisoteada pela outra metade no monstruoso atropelo de pânico?
-Aí a ditadura
verde-amarela ganharia muitos pontos na classificação das mais ferozes.
Mino continua a
perguntar:
-Você repara que a
mídia, a mesma que invocou o golpe de 1964, e chamou o que se seguiu de
revolução, de uns anos para cá condescendeu em mudar a palavra para ditadura,
sempre acompanhava pelo qualificativo militar?
-Reparo, é aquele
esforço de mascarar a verdade, se quiserem adjetivar digam ditadura dos donos
do poder, da classe dominante, do estamento, deu-se apenas que os milicos se
prestassem ao jogo sujo, foi assim...
Gastão Vidigal surge nos
reencontros, está entre os que jamais correm perigos. Robespierre o remeteria à
guilhotina, mas o terror no Brasil, diz Mino, insisto eu, não será o da
revolução, só pode ser do Estado, e foi assim com a ditadura, financiada pelos
senhorezinhos impafiosos, como Vidigal, que financiaram a Operação Bandeirantes
antes, o DOI-CODI depois, e armaram os torturadores com seus apetrechos
entregues pela Idade Média à modernidade para serem acionados, por exemplo, por
força elétrica. Não se diria que Mino seja cruel com essa elite que financiou a
tortura – é verdadeiro, apenas isso ele o é em O Brasil.
Reecontra-se também com
Pietro Maria Bardi, outro de seus inspiradores, este na pintura, e em Mino
coabitam o pintor e o jornalista desde a juventude. Ambos pessimistas na
inteligência e otimistas na ação e dados a grandes indignações, as de Mino mais
freqüentes e mais explosivas. O professor o adverte, mais pessimista que Mino,
“é preciso não se esbaldar em esperanças, e você cometeu amiúde este pecado”.
Na suspensão do tempo,
conversa também, com dom Paulo Evaristo. O cardeal havia levado a Golbery do
Couto e Silva, com quem Mino manteve relações amenas, isentas de ilusões, uma
lista de jovens sumidos na tortura, e assistiu ao general chorar, talvez
lágrimas de impotência – “Geisel era uma fera”, confidencia o cardeal.
Mino vai buscar numa
frase de Beluzzo o elogio a Lula, que ele, a seu modo, sempre acompanhou, e foi
até precursor na revelação ampliada dele ao Brasil: A preocupação de Lula com o
destino do povo é sincera, vem das entranhas. Quando falo revelação ampliada é a
capa e matéria e entrevista de Lula a IstoÉ, de 9 de fevereiro de 1978, e Mino
a dirigia naquele momento, e foi ele próprio a produzir o material
jornalístico, entrevista e tudo.
Mino, na sua longa
jornada, pode orgulhar-se de ter sido sempre fiel aos três princípios a que o
jornalismo deva obedecer: fidelidade canina à verdade factual, exercício
desabrido do espírito crítico e fiscalização destemida do poder onde quer que
ele se manifeste. O romance, com seus entreatos, revelam por inteiro esse
jornalista.
Se me incluísse nos seus
diálogos quando suspende o tempo, essa invenção do homem como ele diz, só diria
que o povo brasileiro, com suas características singulares, sua formação
cultural própria, sua história de 350 anos de escravidão, a história de sua
classe trabalhadora, tem buscado os caminhos para sua autonomia, para afirmar
sua identidade, construir a democracia em meio a tantos percalços, tropeços,
obstáculos, e contudo e apesar de tudo, podemos comemorar, do fim da ditadura,
1985, até os dias de hoje, o maior período democrático de nossa história e
temos já 10 anos de transformações significativas na vida de nossa gente mais
pobre.
Sei, sei mesmo, porque o
leio muito, que Mino tem apoiado o governo Lula e o governo Dilma. A revista
CartaCapital nunca se escondeu quanto a isso. Como também nunca deixou de
criticar o que considera equivocado. E sei que Mino sabe que essa mudança, essa
chegada do PT ao governo dependeu do amadurecimento do nosso povo, não teria
acontecido sem essa nova consciência. O projeto político em curso desde 2003 só
tem sido possível por uma decisão democrática da população, particularmente das
classes mais pobres. Um romance, no entanto, com seus entreatos, não pode
abarcar tudo, menos ainda a saga do nosso povo, suas lutas, suas derrotas
e vitórias, suas esperanças e decepções
que, quem sabe, possam ser refletidas num novo romance que Mino produza. O
Brasil nos ajuda a compreender o Brasil.
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