Por Ligia Bahia
Ligia Bahia: “O pagamento por cada ação de saúde, na versão sem ou com
corrupção, é uma aplicação direta do ensinamento ‘quem parte e reparte e não
fica com a maior parte, ou é tolo ou não tem arte’”.
Esforços para monitorar
serviços de saúde não faltam. Têm câmaras nos hospitais ligadas a monitores no
gabinete presidencial, indicadores de eficiência, auditorias e outros métodos
de controle. Tanta vigilância deveria no mínimo coibir o tráfico de doentes e
medicamentos à luz do dia.
Mas, as fraudes
continuam à solta. Cobranças falsas para o SUS e decisões de suprimir
tratamentos de pacientes com câncer em um serviço privado localizado em Campo
Grande, Mato Grosso do Sul, denunciadas no inicio do mês, não foram detectadas
por radares da saúde e sim pelas organizações do Ministério Público e Polícia
Federal. A acusação é parecida com a da antecipação de mortes de idosos em
Curitiba.
Dessa vez a trama teve
mais personagens e se desenrolou em vários cenários. Começou com a
transferência de pacientes do SUS intermediada por um dono de uma clínica
privada. Lá, os pacientes eram tratados ou não de acordo com a racionalidade
administrativo-lucrativa. Dependendo de quem era o pagador, remédios caros
prescritos eram substituídas por placebos ou se cobrava pelo uso de
medicamentos não administrados. Diante da ameaça da investigação, o médico,
proprietário, recorreu ao Governador, deixando subentendido que teria poder
para pressioná-lo, seu advogado declarou que comprovará que as delações são
injustificadas e a promotora do Ministério Público sublinhou a obrigação do
poder público de atender a população.
Ambos os episódios, o do
CTI de Curitiba e o de tratamento de neoplasias em Campo Grande, parecem ter
sido desencadeados por alguns profissionais de saúde impulsionados pela
ganância. No entanto, as vias, os atalhos e os jeitos de adulterar ações de
saúde precisam ser bem compreendidos para evitar soluções baseadas apenas na
introdução de mais controles, que nem sempre são eficazes para deter a
banalização de atos de má conduta médica e corrupção.
No Brasil, predomina o
pagamento por procedimento, modalidade de remuneração que estimula a decomposição
de ações assistenciais e o interesse na realização ou cobrança de exames e
tratamentos caros. Países que adotaram o sistema de remuneração per capita ou
prospectivo incentivam uma abordagem mais integrada das necessidades de saúde.
A diferença é que aqui o
pagamento é realizado para cada remédio prescrito, equipamento utilizado, de
forma que esse parcelamento condensa e gera articulações entre os produtores e
distribuidores de insumos, hospitais, clinicas e médicos. Além disso, o valor
pago pelo atendimento de pacientes do SUS é, em média, menor do que o
correspondente a casos idênticos de clientes de planos e seguros de saúde.
Portanto, procedimentos melhor remunerados, que permitem a cobrança direta e
indireta de medicamentos, e a divisão do tratamento em sessões e os pacientes
de planos e seguros, especialmente aqueles com coberturas mais abrangentes,
tendem a ser mais atraentes.
Ainda que não exista
corrupção, o pagamento por produção de procedimentos descaracteriza a
finalidade das atividades de saúde porque a variação dos valores de remuneração
tem efeitos imediatos sobre a oferta e demanda. Como os problemas de saúde não
podem esperar preços baixarem, quem atua na saúde pode desempenhar um duplo
papel: o assistencial propriamente dito e o de vendedor ou intermediador do uso
de insumos e medicamentos. Nem sempre as permutas são permeadas pela corrupção.
O que choca e confunde é que o uso de um serviço de saúde é trocado pura e
simplesmente por um valor ajustado, entre outras circunstâncias, ao risco de
vida.
Atualmente, cerca de cem
mil brasileiros são renais crônicos (cujos rins deixaram de funcionar) e
dependem de máquinas que realizam a filtragem do sangue. O SUS paga quase todos
esses tratamentos, incluindo medicamentos. Em 2012, as despesas do Ministério
da Saúde com pacientes renais crônicos atingiram R$ 2 bilhões. Cada paciente
realiza três sessões por semana e o valor de cada uma é de aproximadamente R$
200,00. Mais de 90% das clínicas de hemodiálise são privadas.
Os serviços de nefrologia
de hospitais universitários e de ensino, foram desativados e, cederam espaço a
clinicas privadas, lideradas pelos mesmos médicos que organizaram os serviços
públicos. Atualmente, esses estabelecimentos conveniados com o SUS, mediante
articulações com fornecedores, portadores de doenças renais e parlamentares,
influenciam a definição de preços, quantidade, qualidade do atendimento.
Nem as clínicas de
hemodiálise, nem seus usuários estão inteiramente satisfeitos. Os primeiros
exigem respostas do governo às mudanças cambiais, valores de pagamento próximos
ao de custo, critérios de elegibilidade de novos pacientes, regras para o
descarte e reaproveitamento de membranas dialíticas e renovação das máquinas.
Os pacientes,
necessariamente reféns dos processos de ajustes de preços não sabem se os
aumentos trarão melhor qualidade, demoram a ter acesso ao tratamento porque as
“portas de entrada” ainda são as emergências e não a atenção básica (a maioria
dos renais crônicos são hipertensos e diabéticos), as “janelas” para o uso de
outros serviços, inclusive terapia intensiva, estão fechadas e as “portas de
saída” os transplantes, permanecem distantes e estreitas.
O pagamento por cada
ação de saúde, na versão sem ou com corrupção, é uma aplicação direta do
ensinamento “quem parte e reparte e não fica com a maior parte, ou é tolo ou
não tem arte”.
Desde os anos 1970, a
compra de atos médicos é criticada por especialistas em saúde pública. Quem
telefonava para Carlos Gentile de Mello, médico que inspirou a aprovação do SUS
pela Constituição de 1988, ouvia a seguinte mensagem: o pagamento por
procedimento é um fator incontrolável de corrupção.
Até hoje, o sistema
público de qualidade não foi implementado. Batalhas voltadas exclusivamente ao
monitoramento de indicadores de produtividade agravam o problema ao habilitar
credenciais falsificadas de conservadores que se proclamam modernizantes. Os
alertas vermelhos indicam objetivamente a necessidade de democratização das
decisões e investimentos na rede pública para permitir mudanças na essência
atrasada e ineficiente da fragmentação de seres humanos e mercantilização da
saúde.
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