Por Venício A. de Lima
“É necessário
explicitar, quantas vezes forem necessárias, os critérios técnicos de mídia da
SECOM. Se a publicidade de governo tem como objetivo primordial fazer chegar
sua mensagem ao maior número possível de brasileiros e de brasileiras, a
audiência de cada veículo tem que ser o balizador de negociação e de
distribuição de investimentos. A programação de recursos deve ser proporcional
ao tamanho e ao perfil da audiência de cada veículo” [cf. “Transparência e a
desconcentração na publicidade do governo federal“].
A epígrafe acima foi
escrita pelo servidor público que ocupa o cargo de Secretario Executivo da
Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (SECOM-PR), em
artigo publicado recentemente neste Observatório (16/4/2013), e se refere “às
programações publicitárias do governo federal – administrações direta e
indireta, incluídas as empresas estatais”. [Neste artigo vamos desconsiderar as
empresas estatais que competem no mercado de bens e serviços com as empresas
privadas comerciais.]
Substituídas – na
epígrafe – as palavras “SECOM” e “governo”, ela poderia ter sido assinada por
qualquer diretor de marketing de uma empresa privada, produtora de bens de
consumo em grande escala, por exemplo, “sandálias de dedo”.
Os critérios técnicos de
“negociação e de distribuição de investimentos” oficiais de publicidade são
iguais àqueles utilizados pelas empresas privadas comerciais que atuam no
mercado de bens e serviços? A publicidade institucional de governo e a
publicidade de empresas que buscam lucro no mercado têm os mesmos objetivos e
obedecem aos mesmos critérios?
O que diz a Constituição?
O artigo 1º da
Constituição de 1988 reza que um dos fundamentos da democracia brasileira é o
pluralismo político (inciso V) e, logo em seguida, o artigo 5º garante que é
livre a manifestação do pensamento (inciso IV). Essa garantia é confirmada no
caput do artigo 220, que impede a existência de qualquer restrição à
manifestação do pensamento, à expressão e à informação.
Por outro lado, o inciso
I, do artigo 2º do Decreto nº 6.555/2008 que “dispõe sobre as ações de
comunicação do Poder Executivo Federal” determina que “no desenvolvimento e na
execução das ações de comunicação previstas neste Decreto, serão observadas as
seguintes diretrizes, de acordo com as características de cada ação: afirmação
dos valores e princípios da Constituição”.
Não seria, portanto,
responsabilidade primeira da negociação e distribuição de qualquer investimento
oficial – inclusive, por óbvio, aqueles de publicidade – proteger e garantir o
pluralismo político e a liberdade de expressão (de todos)?
Se passarmos dos
fundamentos políticos para os econômicos, constata-se que o critério técnico “a
programação de recursos deve ser proporcional ao tamanho e ao perfil da
audiência de cada veículo” desconsidera também os princípios gerais da
atividade econômica definidos no “Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira”
da Constituição.
Na verdade,
contrariam-se os incisos IV (livre concorrência), VII (redução das
desigualdades regionais e sociais) e IX (tratamento favorecido para as empresas
de pequeno porte) do artigo 170, e o parágrafo 4º (repressão ao abuso de poder
econômico, com vistas à eliminação da concorrência e aumento arbitrário dos
lucros) do artigo 173.
Como justificar, então,
que os investimentos oficiais de publicidade possam adotar um critério técnico
que conduza à homogeneização do discurso político e sustente o controle
histórico da liberdade de expressão por oligopólios de mídia?
Quantidade x qualidade
Para além das razões
constitucionais, um “planejador de mídia” poderia ainda argumentar que a
utilização exclusiva dos critérios “tamanho e perfil da audiência de cada
veículo”, exclui a programação chamada “qualitativa”.
O exemplo clássico
continua sendo a centenária revista inglesa The Economist que, apesar de ter
circulação relativamente pequena (1,4 milhões de exemplares, 4/5 deles fora do
Reino Unido, sendo que metade só nos Estados Unidos), permanece como um dos veículos
mais influentes junto às elites dominantes de todos (ou quase todos) os países
do Ocidente.
Generalização dos critérios técnicos da SECOM-PR
A lógica dos critérios
técnicos da SECOM-PR está sendo também adotada para a distribuição de recursos
de publicidade oficial por governos estaduais, prefeituras, além do Judiciário
e do Legislativo. Em pelo menos uma unidade da federação, iniciativa parlamentar
pretende alterar esses “critérios técnicos”.
Em junho de 2012, foi
apresentado na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul o Projeto de Lei
159/2012, que institui a Política Estadual de Incentivo às Mídias Locais e
Regionais, de autoria do deputado estadual Aldacir Oliboni (ver íntegra
abaixo). O PL prevê que o estado destine pelo menos 10% dos recursos de
publicidade oficial (1) a periódicos, jornais e revistas impressas, com tiragem
entre 2.000 (dois mil) e 20.000 (vinte mil) exemplares, editados sob a
responsabilidade de empresário individual, micro e pequenas empresas; e (2) a
veículos de radiodifusão local, devidamente habilitados nos termos da
legislação brasileira.
Na Justificativa do PL, o deputado Aldacir Oliboni argumenta:
“A distribuição desconcentrada dos recursos de publicidade oficial, os
quais, historicamente, acabam destinados majoritariamente para grandes
empresas, é uma medida substantiva para o desenvolvimento de uma comunicação
local voltada aos reais interesses dessas comunidades. (...) Possibilitar que
estes pequenos veículos se viabilizem, contribui decisivamente para a
construção de uma comunicação cidadã e para a liberdade de opinião e expressão
de comunidades e segmentos que, na maioria das vezes, não tem oportunidade de veiculá-las
a partir dos grandes meios de comunicação. (...) Esse fomento servirá também
para maior isenção no fluxo de informações fortalecendo a própria democracia,
visto que possibilitará a desconcentração das notícias e versões noticiosas
divulgadas, as quais, nos dias de hoje, estão centralizadas nos grandes
conglomerados de comunicação existentes no Estado e no País”
Da mesma forma, a
Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da Comunicação (Altercom)
tem reivindicado que 30% dos recursos publicitários oficiais sejam destinados
às pequenas empresas de mídia.
Em artigo publicado
neste Observatório (“Por que o governo deve apoiar a mídia alternativa“],
defendi esta posição citando, inclusive, o precedente de estímulos já
existentes para a agricultura familiar (Lei nº 11.947/2009) e para a atividade
audiovisual (Lei 11.437/2009).
Mídia e democracia
Apesar do Decreto nº
6.555/2008 [“dispõe sobre as ações de comunicação do Poder Executivo Federal”]
e de sua regulamentação pela Instrução Normativa SECOM-PR nº 2/2009
[“disciplina as ações de publicidade dos órgãos e entidades integrantes do
Poder Executivo Federal”] existirem desde o governo do presidente Lula – e
apesar da negativa do atual Secretario Executivo da SECOM-PR – as pequenas empresas
de comunicação questionam a interpretação dos critérios técnicos para
distribuição dos recursos oficiais de publicidade que vem sendo praticada nos
últimos dois anos (ver “Secom concentra verbas nos grandes veículos“).
De qualquer maneira, nem
o Decreto nem a Norma trazem (nem poderiam trazer) nenhuma restrição à
distribuição dos investimentos para a chamada mídia alternativa (empresas de
audiência qualificada e que não podem concorrer, em igualdade de condições –
porque iguais não são – com portais como o UOL ou com conglomerados
empresariais como as Organizações Globo).
Aliás, a convergência de
mídias provocada pela digitalização tem levado governos de outras democracias a
buscar formas de financiar especificamente a mídia digital. É o que ocorre, por
exemplo, na França. Após dois meses de negociações, o governo de François
Hollande chegou a um acordo, no início de fevereiro, para que o Google
estabeleça um fundo de 60 milhões de euros para ajudar na transição para o
digital. O fundo vai “impulsionar a inovação na área de mídia digital”. Os
projetos que forem submetidos a financiamento serão avaliados segundo critérios
de inovação e viabilidade de negócio e o fundo será gerido por uma
administração composta por representantes do Google, da imprensa francesa e
membros independentes (ver aqui).
Entre nós, trata-se da
observância (ou não) de fundamentos e princípios constitucionais expressos nas
ideias liberais de pluralidade e diversidade. Se fossem cumpridos, o critério
técnico da SECOM-PR deveria ser “a máxima dispersão da propriedade” (Edwin
Baker) e a garantia de que mais vozes fossem ouvidas e participem ativamente do
debate público.
Repito o escrito em
outra ocasião. Tem razão a Altercom quando afirma que há justiça em tratar os
desiguais de forma desigual e há de se aplicar, nas comunicações, práticas que
já vêm sendo adotadas com sucesso em outros setores.
Considerada a
centralidade política da mídia privada comercial e o fato de que o Estado
brasileiro constitui-se em um de seus principais financiadores (se não, o
principal), o que está em jogo é a própria democracia na qual vivemos.
Não seria essa uma razão
suficiente para a SECOM-PR interpretar constitucionalmente os seus critérios
técnicos?
Projeto
de Lei nº 159 /2012
Institui a Política Estadual de Incentivo às
Mídias Locais e Regionais no Estado do Rio Grande do Sul e dá outras
providências.
Art. 1º – Fica instituída a Política Estadual
de Incentivo às Mídias Locais Regionais no Estado do Rio Grande do Sul, pela
qual, observados os preceitos legais sobre a matéria, os Poderes do Estado
poderão destinar percentual não inferior a 10% (dez por cento) da sua receita
anual de publicidade, prevista no Orçamento para a divulgação de obras,
anúncios, editais, programas, serviços e campanhas em gerais, aos veículos
mencionados nesta Lei.
Art. 2º – Para os efeitos desta Lei,
considera-se Mídia Regional e Local os seguintes veículos:
I – periódicos, jornais e revistas impressas,
com tiragem entre 2.000 (dois mil) e 20.000 (vinte mil) exemplares editados sob
responsabilidade de empresário individual, micro e pequenas empresas;
II – veículos de radiodifusão local,
devidamente habilitados em conformidade com a legislação brasileira;
§ 1º – As mídias apontadas devem ter
reconhecimento regional e local, caracterizando-se por serem prioritariamente
dirigidas às regiões do Estado, ou a locais ou segmentos específicos da
sociedade gaúcha.
§ 2º – A critério dos Poderes do Estado, poderá
ser exigido que a tiragem a que se refere o item I seja atestado por instituto
de pesquisa de notória reputação.
Art. 3º – Para efeito de habilitação aos
recursos públicos, as mídias regionais interessadas deverão observar os
seguintes critérios:
I – ter, no mínimo, dois anos de funcionamento
sem interrupção de suas atividades;
II – ter em seu quadro de pessoal jornalista
responsável;
III – não manter vínculos que a subordinem ao
comando de outras empresas jornalísticas e de radiodifusão, escolas, igrejas,
partidos políticos, sindicatos, associações de classe, associações
representativas de setores industriais ou de serviços;
IV – não possuir proprietário, sócio ou gerente
que exerça estas mesmas funções em outra mídia beneficiária;
V – não possuir proprietário, sócio ou gerente,
ou parentes até o segundo grau destes, que ocupem cargos públicos eletivos ou
de confiança nos âmbitos Municipal, Estadual ou Federal;
VI – veicular conteúdo eminentemente editorial,
sendo vedado o benefício a mídias destinadas exclusivamente a conteúdos
publicitários.
Art. 4º – O Estado poderá regulamentar a
presente Lei.
Art. 5º – Esta Lei entra em vigor na data da
sua publicação.
Sala das Sessões, 28 de junho de 2012.
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