Por Eugênio Bucci
Tudo caminha “nos
conformes” para a aprovação, agora no início de junho, da Proposta de Emenda
Constitucional (PEC) que restabelece a obrigatoriedade do diploma de jornalista
para quem queira trabalhar na imprensa. Depois de uma semana particularmente
movimentada, em que políticos e magistrados falaram em “crise” entre o Poder
Legislativo e o Poder Judiciário – o vice-presidente da República, Michel
Temer, preferiu chamar o episódio de “pequeno incidente”, dando-o por encerrado
–, eis aqui uma iniciativa parlamentar nada amistosa. Por meio dela, deputados
e senadores não apenas contestam, mas trabalham abertamente para sepultar uma
decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF).
Perto dessa PEC, os
fatores que geraram o mal-estar na semana que passou – como o projeto que, se
aprovado, deveria levar a República a simplesmente fechar o Supremo, nas
palavras do ministro Gilmar Mendes – são café pequeno. Aliás, não foi custoso
deixá-los para trás, depois que as cúpulas dos dois Poderes confraternizaram
para acertar seus ponteiros. Com a PEC restauradora do diploma obrigatório para
o exercício do jornalismo a conversa é mais séria e ficará mais séria ainda.
Contrariando o julgamento proferido legitimamente pela Corte Suprema, a PEC do
diploma, como já se tornou conhecida nos corredores do Congresso Nacional, uma
vez aprovada, vai produzir um novo e mais constrangedor impasse entre os dois
Poderes.
Recapitulemos a
história. No dia 17 de junho de 2009, por ampla margem (8 votos contra 1), os
ministros do STF derrubaram a exigência do diploma de curso superior de
Comunicação Social com habilitação em jornalismo para a prática da profissão. A
decisão atendia, então, ao Recurso Extraordinário 511.961, movido pelo
Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo (Sertesp) e
pelo Ministério Público Federal (MPF). Gilmar Mendes, designado relator do
caso, entendeu que o Decreto-Lei 972/69, editado durante a ditadura militar, o
tal que impôs o diploma obrigatório, afrontava a Constituição federal. Naquela
sesão, o único voto contrário ao relator veio do ministro Marco Aurélio Mello.
Placar esmagador
Para que o leitor
acompanhe melhor o raciocínio dos ministros do Supremo na ocasião, podemos
resumir aqui o argumento que prevaleceu. Sua lógica é cristalina: nenhum
obstáculo de ordem legal deve impedir o cidadão de criar publicações
jornalísticas ou de se manifestar publicamente em qualquer veículo. Se um grupo
de pescadores ou de moradores de rua pretende criar seu próprio jornal, na
internet ou em papel, tanto faz, não deveria precisar contratar um “jornalista
responsável” para isso. Qualquer pessoa deve ser livre para criar seu próprio
órgão de imprensa. A liberdade, enfim, não deve ser limitada por um “filtro
legal” – e a exigência do diploma, aos olhos do Supremo, é um filtro, um
obstáculo, uma barreira incompatível com o sentido profundo da Constituição
federal. A obrigatoriedade, instituída em 1969, tinha um objetivo tão claro quanto
autoritário: controlar de perto, por meio dos registros no Ministério do
Trabalho, todos os que estivessem empregados em jornais. Só servia à ditadura.
Agora, na democracia, não tem sentido. Exatamente por isso, não há
obrigatoriedade do diploma de jornalista em nenhuma outra democracia. Isso só
ocorreu no Brasil. Além disso, a obrigatoriedade do diploma cria um desnível
entre os portadores desse diploma e os demais cidadãos: os primeiros teriam
mais “liberdade” de atuar na imprensa do que os outros cidadãos – o que resulta
num privilégio francamente inconstitucional.
Após a decisão daquele
17 de junho de 2009, portanto, a Nação deveria compreender que a questão estava
encerrada. Transitada em julgado. Foi então que a Federação Nacional dos
Jornalistas (Fenaj), movida pelo interesse – que, de resto, é legítimo – de proteger
o emprego de seus associados (diplomados), vislumbrou um atalho para desfazer o
julgado. A estratégia foi mais ou menos a seguinte: ora, se o Supremo diz que a
exigência estabelecida pelo decreto de 1969 é inconstitucional, basta escrever
a mesma exigência na Constituição – aí, a coisa fica devidamente
constitucional. Isto posto, naquele mesmo ano de 2009 a PEC do diploma entrou
em tramitação. E vai muito bem. Em agosto do ano passado foi aprovada no Senado
com um placar esmagador: 60 votos contra apenas 4.
Queda de braço
Há quem se empolgue. Há
quem acredite, candidamente, que ela vem para derrotar as intenções
escorchantes dos patrões malvados que apoiaram a ditadura. O engano é imenso: a
pior imprensa que o Brasil já teve, a mais submissa, a mais covarde, a mais
mentirosa, aquela que sorriu para a censura e se sujeitou a publicar que
brasileiros assassinados em sessões de tortura tinham morrido em tiroteios
sempre se deu muito bem com a exigência do diploma. Outro equívoco, igualmente
imenso, é supor que os jornais de hoje, que estão aí lutando para merecer o
tempo e o dinheiro de seus leitores, têm planos de contratar analfabetos para
redigir editoriais.
Nenhum desses argumentos
para em pé. A única razão real para a defesa da PEC do diploma é a proteção
corporativista dos sindicatos de jornalistas – que, aliás, já não congregam os
profissionais de imprensa. Um levantamento realizado Programa de Pós-Graduação
em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (em convênio
com a Fenaj), que acaba de ser publicado, mostra que, dos jornalistas
brasileiros, apenas 25,2% (entre os quais este articulista) são filiados a
sindicatos.
Sem nenhuma sustentação
de interesse público, a aprovação da PEC do diploma é prejudicial para a
qualidade da imprensa e para a normalidade institucional. Mais cedo ou mais
tarde, o Supremo será chamado a julgar a constitucionalidade da nova emenda.
Vem aí outra queda de braço entre magistrados e parlamentares.
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