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Por que nós, socialistas, temos que ser contra a redução da maioridade penal?

Por Givanildo Manoel
“Ivan Karamazov diz que, acima de tudo o mais, a morte de uma criança lhe dá ganas de devolver ao universo o seu bilhete de entrada. Mas ele não o faz. Ele continua a lutar e a amar; ele continua a continuar.” Marshall Berman.
Em 1993, apenas três anos após a aprovação do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) -, foi apresentada uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) com o sugestivo número 171, que propunha a redução da idade para responsabilidade penal. Depois dessa, em quase todos os anos (1995,96,97,99,2000,01,02,03,04,05,07,08,09,11,12) foram apresentados  PECs e PLs (Projetos de Lei) com igual ou pior teor. Foram aproximadamente 30 propostas em 23 anos de ECA.
Infelizmente, os sucessivos debates em torno da redução da idade para a responsabilidade penal nunca apontaram no sentido de aprimorar a lei, mas no sentido de desqualificá-la.  Cabe, então, questionar por que um estatuto da importância do ECA já sofria tantos ataques 3 anos após a sua aprovação, pois esse questionamento é fundamental para que a esquerda combativa possa fazer a defesa dos princípios do ECA. E para isso precisamos compreender que princípios são esses.
Até a aprovação do ECA, a infanto-adolescência filha da classe trabalhadora era tratada como caso de polícia ou de justiça. Havia uma diferenciação clara do modo como a Justiça tratava os filhos e filhas da burguesia e os filhos da classe trabalhadora.
Os filhos da burguesia, já conceitualmente, eram reconhecidos como crianças e adolescentes e em qualquer problema legal que tivessem eram atendidos pela Vara da Família. Já os filhos da classe trabalhadora eram controlados pelo Juizado de Menores, que pela sua respectiva concepção de quem eram os seus atendidos, convencionou chamar os filhos dos trabalhadores de “di menor”, categorizando a infância e adolescência em duas: os filhos da burguesia e os filhos dos trabalhadores.
Estes últimos, além de perseguidos, não eram alcançados pelas políticas públicas, que era exclusividade dos filhos da burguesia. Os filhos dos trabalhadores eram compulsoriamente criminalizados, institucionalizados e tinham os seus passos controlados permanentemente pela polícia e os auxiliares dos Juízes de Menores, os famosos Comissários de Menores, que controlavam a vida dos petizes “desajustados” do sistema.
Com a aprovação do ECA foi rompida essa categorização de infâncias e passou-se a tratar universalmente crianças até 12 anos de idade e adolescente até 18 anos incompletos.
É importante que prestemos atenção que os poucos direitos dos filhos da classe trabalhadora foram conquistados com muita luta e lentamente. Um deles, por exemplo, foi em relação a proteção contra a exploração no trabalho , o processo de “industrialização” no Brasil, que se deu principalmente pelo setor têxtil, a mão de obra usualmente utilizada era a das crianças e adolescentes, que comumente começavam a trabalhar entre os 8 e 10 anos e encaravam uma carga horária de 14 a 18 horas por dia. Essa foi uma pauta de reivindicação das greves de 1916 a 1921 e, mesmo assim, nunca foram cumpridas.
Para exemplificar com um caso muito debatido hoje, a PEC do trabalho doméstico, em 2011, constatou-se que existiam 250 mil crianças e adolescentes exploradas pelo trabalho doméstico (dados do IBGE). Aqui não façamos confusão: atividades domésticas com exploração de trabalho doméstico, confusão que a direita adora criar para desqualificar a denuncia dessa exploração. E sabemos que 95% são meninas e cerca de 75% delas são negras. E esse é somente um pequeno recorte da real situação.
Se esse direito de não ter a força de trabalho explorada, que foi uma conquista da classe no começo do século passado, não é respeitado, é de se imaginar que os outros, que só recentemente foram assegurados pelo ECA, em um momento de retrocesso conservador e que tem sido atacados duramente, dificilmente serão efetivados.
Uma questão para refletirmos é que normalmente temos o discurso de que a categoria infância e adolescência é uma categoria burguesa, talhada pela burguesia para inserir esse segmento no mercado consumidor. Essa premissa pode até ser correta, mas por outro lado não se pode esquecer que os direitos da infância estão associados diretamente às conquistas dos direitos das mulheres, já que a conquista dos seus direitos impunha uma nova conjuntura, que colocava em sua agenda políticas publicas como saúde, educação, creche, entre outras, pressionando para que essas tivessem tratamentos adequados, uma vez que o privado passou a ser público, impondo a necessidade de um olhar público e coletivo, diferente do que havia até então.

Esse talvez tenha sido o momento mais importante do reconhecimento da criança e adolescentes, visto que precisavam ser reconhecidos por suas especificidades e ao mesmo tempo respeitados por seu momento de vida.
Os direitos sociais que incluem a infância, em sua maioria, são conquistas recentes, principalmente no período da Constituição e pouco depois, um elemento importante, advinda do reconhecimento da fragilidade no cuidado com as meninas e meninos, uma vitória marcante foi considerá-los prioridade absoluta em todo o processo de organização e estruturação da sociedade.
Claro que nessa decisão havia uma lógica reformista, mas mesmo dentro dessa lógica reformista os principais beneficiários pela universalização da política pública foram os filhos da classe trabalhadora, que passaram a ter acesso aos serviços públicos.
Também é importante compreender que os ataques aos direitos conquistados vieram dentro do bojo da resistência à garantia de serviços públicos para o povo, portanto o ECA e os direitos dos meninos e meninas estavam na contramão daquele momento histórico que apresentava diversas contradições em relação à lei, já que o presidente (Fernando Collor) que sancionou o estatuto era o principal arauto do Estado mínimo e o responsável pela introdução do neoliberalismo no Brasil. Logo, o ECA foi aprovado pelas mãos erradas e se poderia dizer, pelos motivos errados, já que era a única iniciativa voltada a infância e adolescência durante o seu governo e, vale lembrar, nem sua foi, ao contrario, sofria resistência da sua parte, pois havia sido construída pelos movimentos que atuavam com a pauta da defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes.
Collor tomou a iniciativa de sancionar a lei que estava engavetada devido à proximidade da realização da Cúpula Mundial para a Infância (1990), na qual o Brasil iria sofrer duras criticas que fragilizariam ainda mais a sua débil condição interna. Sua decisão, portanto, não foi por convicção, mas sim pela pressão que sofria naquele momento.
Desse modo, o centro do debate não é a redução da idade para a responsabilidade. Essa é a fumaça que a burguesia joga para esconder o debate real, e que, infelizmente, encontra um enorme espaço na sociedade. Infelizmente, hoje os trabalhadores são vítimas da indústria do consenso que a burguesia tem criado se aproveitando do baixo nível de consciência de classe, que não se entende como classe em si e, portanto, que adere à cultura burguesa retribuitiva, cujo objetivo é manter o controle sobre os filhos dos trabalhadores.
Um dos exemplos mais visíveis é um dos crimes mais bárbaros e chocantes que aconteceu no último período: o assassinato do índio Galdino, o líder Pataxó Galdino Jesus dos Santos, como era conhecido, queimado cruelmente enquanto dormia. Passados exatos 16 anos, se fizermos uma pesquisa despretensiosa, veremos que os envolvidos (alguns adolescentes) estão bem, empregados e paira um silêncio sepulcral da mídia. Por que isso? Porque esses jovens eram filhos da burguesia brasiliense.
A justificativa dos juízes sempre são mais adequadas à sua origem social, que os adolescentes burgueses têm famílias estruturadas e os da classe trabalhadora não!
Voltemos, então, para o cerne do debate: a primeira é sobre a farsa do aumento da violência, o total dos crimes graves cometidos pelos adolescentes, nunca chegaram a traço se comparados aos adultos, mas, se assim o é, porque existe toda uma mídia em torno de atos praticados por adolescentes. Desde a década de 90, o jornalista José Arbex, professor da PUC São Paulo, tem denunciado que existe um complô nas redações contra os adolescentes, que indica que qualquer ato que envolva adolescente a pauta tem que aumentar. No jargão do jornalismo, aumentar a pauta é dar mais destaque para essas situações, logo, esse destaque aumenta a sensação de insegurança que é provocada pelos adolescentes.
Segundo ponto importante: o ECA nunca foi implantado no Brasil, legislação que, efetivada, garantiria políticas preventivas que respondessem às necessidades da infanto-adolescência. Ao contrário, a lei, além de não ser implantada, foi sendo mudada para pior, não cumprindo o seu papel. As vítimas reais foram crianças e adolescentes. Por exemplo, o Brasil é o 4º pais do mundo quando o assunto é violência contra as crianças e adolescentes. Entre 1980 e 2010, aumentou em 346% o número de mortes de crianças e adolescentes, segundo o Mapa da Violência 2012.
Terceiro: a farsa da redução da idade para que um adolescente possa ser criminalizado, segundo DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) em 2011, 56% dos encarcerados estavam na faixa de 18 a 29 anos, na prática a redução já está em vigor – e nem precisamos aqui debater qual a classe social e a etnia dessa população carcerária. O Brasil é hoje o 4º país que mais encarcera no mundo. São mais de meio milhão de encarcerados.
O que deseja essa redução? Por que isso não é claramente debatido?
Constatado quem são as vítimas desse processo violento de criminalização de todas as ordens, é necessário discutir aquilo que ninguém discute: qual intencionalidade por trás desse debate?
Por que é importante não efetivar o ECA ou o que ainda resta dele? Por que é importante encarcerar os filhos dos trabalhadores, cada vez mais cedo? Por que as centenas e milhares de mortes dos filhos da classe trabalhadora não provocam tanta comoção para pedir a prisão dos governantes por não garantir as condições de dignidade de vida prevista no ECA?
O Estado burguês nunca assumiu o compromisso com os filhos do povo e sim com os da burguesia. Desse modo, a universalização da política não foi uma convicção e sim uma concessão em momento de ascenso da classe trabalhadora, ou seja, esse não é um projeto da burguesia brasileira e combatê-lo parece-lhe natural. Aqui diria que se a burguesia tivesse uma insígnia, essa seria a de “nenhum direito a mais!”.
Se não pensarmos esse processo de encarceramento dentro da lógica do capital, sua necessidade de exploração e reprodução, também não entenderemos por quê se encarcera em massa. O encarceramento em massa se insere dentro dessa lógica, pois ao ter um enorme contingente de encarcerados é possível explorar a sua mão de obra da forma mais precarizada possível, instituindo assim, um Estado penal como o dos EUA. Por isso, encarcerar jovens é um objetivo, já que se trata do período da vida mais produtivo do indivíduo. Isso sem contar com a não responsabilidade de cumprir os demais direitos sociais do trabalhador (saúde, educação, moradia, etc).
Hoje, nas grandes e médias cidades do Brasil, as periferias estão sitiadas. A imprensa burguesa não faz nenhuma questão de esconder: apresenta em horário nobre a população periférica, em especial a juventude, sendo achacada e morta pelo aparato de segurança pública do Estado. É visível que se trata de uma propaganda da lógica do encarceramento em massa, visto que a imprensa não pauta a necessidade de resolver os problemas relacionados à forma de coerção, contenção e morte da juventude trabalhadora e nem promove minimamente debates com tamanha proporção que a morte de um filho da pequena burguesia provoca.
Esses são alguns dos argumentos que tem que fortalecer nossa convicção socialista de que a redução da idade (que na prática já ocorre) não resolverá os problemas de segurança pública pelos quais passamos, já que qualquer política de segurança exitosa reforçaria as políticas sociais e não recrudesceria a relação com a juventude. Entretanto, como as políticas sociais alcançariam os filhos do povo, essas não são reforçadas e passamos por um processo de desmonte desastroso.
Outro aspecto importante é que esse debate tem sido colocado com muita intensidade pelo PSDB e em especial (não eximindo a responsabilidade do governo federal petista) pelo governador Geraldo Alckmin, não sem sentido, já que o estado de São Paulo é o maior violador dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes e o principal ideólogo dessa política de segurança que massifica e recrudesce a relação com a juventude. Não nos esqueçamos de que há 6 meses, na posse de quase 200 delegados de polícia, Alckmin afirmou em discurso que o principal objetivo daqueles recém-empossados deveria ser o recrudescimento contra a juventude. Não esqueçamos, ainda, que Geraldo Alckmin foi o introdutor da política de tolerância zero, que levou à explosão do sistema penitenciário e possibilitou a criação de diversos grupos criminosos, inclusive no próprio aparato de segurança do Estado.
A reflexão que temos que fazer é porquê não se respeita o mínimo que está previsto na lei, nem mesmo o mínimo de políticas básicas (saúde, educação, assistência, moradia, cultura, esporte e lazer) e se introduz tão terrível mudança na vida dos meninos e meninas filhos dos trabalhadores e trabalhadoras?
Não vou discutir as mudanças que foram introduzidas na lei (ECA), pois precisaria de espaço igual ou maior que esse para essas reflexões, que foram ruins, que rebaixaram a interpretação e a sua força inicial, mas reduzir a idade seria a autorização para agravar ainda mais a já agravada e incerta vida dessa juventude.
Nenhum socialista pode ter dúvida de que lado deverá estar nesse debate, porque somos depositários desse legado humanista que a classe tem se confrontado para defender, e sonha que um dia venha a ser o projeto vencedor. Esse projeto, que inclui um olhar diferenciado sobre os meninos e meninas, criará todas as condições para que ela possa ser atendida, cuidada e olhada em todas as suas necessidades, e a entenderemos  naquilo que ela é e não o que não é. Essa sociedade não permitirá que nós, os adultos, nos confrontemos com a infanto-adolescência ou muito menos nos omitamos das nossas responsabilidades para com os nossos filhos e filhas, que serão os herdeiros e perpetuadores desse legado de liberdade, igualdade e generosidade.
Nós não podemos ter dúvida de colocar em todas as lutas em que estamos inseridos, principalmente nas lutas por direitos sociais, a luta Contra a Redução da Idade Penal dos filhos da Classe Trabalhadora. Não podemos esperar que a burguesia assuma esse papel. Essa tarefa nos pertence, na medida em que serão nossos filhos e filhas que pagarão o preço das consequências do que tem sido provocado pelo capitalismo.
Nós, Socialistas, gritamos! Não à Redução da Idade para a Responsabilidade Penal! Sim à saúde, moradia, educação, cultura, lazer e assistência social

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