Por Eliane Brum
E pelo aumento do nosso
rigor ao exigir o cumprimento da lei de governantes que querem aumentar o rigor
da lei (e também dos que não querem).
Eu acredito na
indignação. É dela e do espanto que vêm a vontade de construir um mundo que
faça mais sentido, um em que se possa viver sem matar ou morrer. Por isso,
diante de um assassinato consumado em São Paulo por um adolescente a três dias
de completar 18 anos, minha proposta é de nos indignarmos bastante. Não para
aumentar o rigor da lei para adolescentes, mas para aumentar nosso rigor ao
exigir que a lei seja cumprida pelos governantes que querem aumentar o rigor da
lei. Se eu acreditasse por um segundo que aumentar os anos de internação ou
reduzir a maioridade penal diminuiria a violência, estaria fazendo campanha
neste momento. Mas a realidade mostra que a violência alcança essa proporção
porque o Estado falha – e a sociedade se indigna pouco. Ou só se indigna aos
espasmos, quando um crime acontece. Se vivemos com essa violência é porque
convivemos com pouco espanto e ainda menos indignação com a violência
sistemática e cotidiana cometida contra crianças e adolescentes, no
descumprimento da Constituição em seus princípios mais básicos. Se tivessem
voz, os adolescentes que queremos encarcerar com ainda mais rigor e por mais
tempo exigiriam – de nós, como sociedade, e daqueles que nos governam pelo voto
– maioridade moral.
Se é de crime que se
trata, vamos falar de crime. E para isso vale a pena citar um documento da
Fundação Abrinq bastante completo, que reúne os estudos mais recentes sobre o
tema. Mais de 8.600 crianças e adolescentes foram assassinados no Brasil em
2010, segundo o Mapa da Violência. Vou repetir: mais de 8.600. Esse número
coloca o Brasil na quarta posição entre os 99 países com as maiores taxas de
homicídio de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos. Em 2012, mais de 120 mil
crianças e adolescentes foram vítimas de maus tratos e agressões segundo o
relatório dos atendimentos no Disque 100. Deste total de casos, 68% sofreram
negligência, 49,20% violência psicológica, 46,70% violência física, 29,20%
violência sexual e 8,60% exploração do trabalho infantil. Menos de 3% dos
suspeitos de terem cometido violência contra crianças e adolescentes tinham
entre 12 e 18 anos incompletos, conforme levantamento feito entre janeiro e
agosto de 2011. Quem comete violência contra crianças e adolescentes são os
adultos.
Será que o assassinato
de mais de 8.600 crianças e adolescentes e os maus tratos de mais de 120 mil
não valem a nossa indignação?
Diante desse massacre
persistente e cotidiano, talvez se pudesse esperar um alto índice de violência
por parte de crianças e adolescentes. E a sensação da maioria da população,
talvez os mesmos que clamam por redução da maioridade penal, é que há muitos
adolescentes assassinos entre nós. É como se aquele que matou Victor Hugo
Deppman na noite de 9 de abril fosse legião. Não é. Do total de adolescentes em
conflito com a lei em 2011 no Brasil, 8,4% cometeram homicídios. A maioria dos
delitos é roubo, seguido por tráfico. Quase metade do total de adolescentes
infratores realizaram o primeiro ato infracional entre os 15 e os 17 anos,
conforme uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). E, adivinhe: a
maioria abandonou a escola (ou foi abandonado por ela) aos 14 anos, entre a
quinta e a sexta séries. E quase 90% não completou o ensino fundamental.
Será que não há algo
para pensar aí, uma relação explícita? Não são a escola – como lugar concreto e
simbólico – e a educação – como garantia de acesso ao conhecimento, a um desejo
que vá além do consumo e também a formas não violentas de se relacionar com o
outro – os principais espaços de dignidade, desenvolvimento e inclusão na
infância e na adolescência?
É demagogia fazer
relação entre educação e violência, como querem alguns? Mas será que é aí que
está a demagogia? É sério mesmo que a maioria da população de São Paulo
acredita que tenha mais efeito reduzir a maioridade penal em vez de pressionar
o Estado – em todos os níveis – a cumprir com sua obrigação constitucional de
garantir educação de qualidade?
Não encontro argumentos
que me convençam de que a redução da maioridade penal vá reduzir a violência. E
encontro muitos argumentos que me convencem de que a violência está relacionada
ao que acontece com a escola no Brasil. A começar pelo recado que se dá a
crianças e adolescentes quando os professores são pagos com um salário
indigno. Aqueles que escolhem (e eles
são cada vez menos) uma das profissões mais importantes e estratégicas para o
país se tornam, de imediato, desvalorizados ensinando (ou não ensinando) outros
desvalorizados. Será que essa violência – brutal de várias maneiras – não tem
nenhuma relação com a outra que tanto nos indigna?
Teríamos mais esperança
de mudança real se, diante de um crime bárbaro, praticado por um adolescente a
três dias de completar 18 anos, o povo fosse às ruas exigir que crianças e
jovens sejam educados – em vez de bradar que sejam enjaulados mais cedo ou com
mais rigor nas prisões que tão bem conhecemos. Vale a pena pensar, e com
bastante atenção: a quem isso serve?
É uma mentira dizer que
os adolescentes não são responsabilizados pelos atos que cometem. O tão atacado
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê a responsabilização, sim. Inclusive
com privação de liberdade, algo tremendo nessa faixa etária. Mas, de novo, o
Estado não cumpre a lei. Numa pesquisa realizada pelo CNJ, apenas em 5% de
quase 15 mil processos de adolescentes infratores havia informações sobre o
Plano Individual de Atendimento (PIA), que permitiria que a medida
socioeducativa funcionasse como possibilidade de mudança e
desenvolvimento.
Alguém pensa em se
indignar contra isso?
Se você se alinha
àqueles que querem que os adolescentes sejam encarcerados, torturados e
sexualmente violados para pagar pelos seus crimes, pode se alegrar. É o que
acontece na prática numa parcela significativa das instituições que deveriam
dar exemplo de cumprimento da lei e oferecer as condições para que esses
adolescentes mudassem o curso da sua história, como mostrou uma reportagem do
Fantástico feita por Marcelo Canellas, Wálter Nunes e Luiz Quilião. Segundo a
pesquisa do CNJ já citada, em 34 instituições brasileiras, pelo menos um
adolescente foi abusado sexualmente nos últimos 12 meses, em 19 há registros de
mortes de jovens sob a tutela do Estado, e 28% dos entrevistados disseram ter
sofrido agressões físicas dos funcionários. Sem contar que, em 11 estados, as
instituições operam acima da sua capacidade.
Será que a perpetuação
da violência juvenil decorre da falta de rigor da lei ou do fato de que parte
das instituições de adolescentes funciona na prática como um campo de
concentração? Antes de tentar mudar a lei, não seria mais racional cumpri-la?
É o que o bom senso
parece apontar. Mas é previsível que, num ano pré-eleitoral e com 93% dos
paulistanos a favor da redução da maioridade penal, segundo pesquisa do
Datafolha, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) prefira enviar ao Congresso um
projeto para alterar o ECA, passando o período máximo de internação dos atuais
3 anos para 8 anos em casos de crimes hediondos. Uma medida tida como enérgica
e rápida, num momento em que o Estado de São Paulo sofre com o que o próprio
vice-governador, Afif Domingos (PSD), definiu como “epidemia de insegurança” –
situação que não tem colaborado para aumentar a popularidade do atual
governo.
Vale a pena registrar
ainda que o número de crimes contra a pessoa cometidos por adolescentes
diminuiu – e não aumentou, como alguns querem fazer parecer. Segundo dados da
Secretaria Nacional de Direitos Humanos, entre 2002 e 2011 os casos de
homicídio apresentaram uma redução de 14,9% para 8,4%; os de latrocínio (roubo
seguido de morte), de 5,5% para 1,9%; e os de estupro, de 3,3% para 1%. Vale a
pena também dar a dimensão real do problema: da população total dos
adolescentes brasileiros, apenas 0,09% cumprem medidas socioeducativas como
infratores. Vou repetir: 0,09%. E a maioria deles cometeram crimes contra o
patrimônio.
É claro que, se alguém
acredita que os crimes cometidos pelos adolescentes não têm nenhuma relação com
as condições concretas em que vivem esses adolescentes, assim como nenhuma
relação com as condições concretas em que cumprem as medidas socioeducativas,
faz sentido acreditar que se trata apenas de “vocação para o mal”. Entre os
muitos problemas desse raciocínio que parece afetar o senso comum está o fato
de que a maioria dos adolescentes infratores é formada por pretos, pardos e
pobres. (São também os que mais morrem e sofrem todo o tipo de violência no
Brasil.) Essa espécie de “marca da maldade” teria então cor e estrato social?
Nesse caso, em vez de melhorar a educação e as condições concretas de vida, a única
medida preventiva possível para quem defende tal crença seria enjaular ao
nascer – ou nem deixar nascer. Alguém se lembra de ter visto esse tipo de tese
em algum momento histórico? Percebe para onde isso leva?
Há que ter muito cuidado
com o que se deseja – e com o que se defende. Assim como muito cuidado em não
permitir que manipulem nossa indignação e nossa aspiração por um mundo em que
se possa viver sem matar ou morrer.
Se eu estivesse no lugar
dos pais de Victor Hugo Deppman, talvez, neste momento de dor impossível, eu
defendesse o aumento do número de anos de internação, assim como a redução da
maioridade penal. Não há como alcançar a dor de perder um filho – e de perdê-lo
com tal brutalidade. Diante de um crime bárbaro, qualquer crime bárbaro e não
apenas o que motivou o atual debate, os parentes da vítima podem até desejar
vingança. É uma prerrogativa do indivíduo, daqueles que sofrem o martírio e
estão sob impacto dele. Mas o Estado não tem essa prerrogativa.
O indivíduo pode desejar
vingança em seu íntimo, o Estado não pode ser vingativo em seus atos. Do Estado
se espera que leve adiante o processo civilizatório, as conquistas de direitos
humanos tão duramente conquistadas. E, como sociedade, nossa maturidade se
mostra pelo conteúdo que damos à nossa indignação. É nas horas críticas que
mostramos se estamos ou não à altura da nossa época – e de nossas melhores
aspirações.
De minha parte, sempre
me surpreendi não com a violência cometida por adolescentes – mas que não seja
maior do que é, dado o nível de violência em que vive uma parcela da juventude
brasileira, a parcela que morre bem mais do que mata. E só testemunhei a
sociedade brasileira olhar de verdade – olhar para ver essa realidade – uma
única vez: quando o Brasil assistiu, em horário nobre do domingo, ao
documentário Falcão - Meninos do tráfico. É um bom momento para revê-lo.
Sabe por que a violência
praticada por adolescentes não é maior do que é? Por causa de seus pais – e
especialmente de suas mães. A maioria delas trabalha dura e honestamente,
muitas como empregadas domésticas, cuidando da casa e dos filhos das outras.
Contra tudo e contra todos, numa luta solitária e sem apoio, elas se viram do
avesso para garantir um futuro para seus filhos. O extraordinário é que, apesar
de sua enorme solidão, sem amparo e com falta de tudo, a maioria consegue.
Àquelas que fracassam cabe a dor que não tem nome, a mesma dor impossível que
vive a mãe de Victor Hugo Deppman: enterrar um filho.
Em 2006, espantada com
uma geração de brasileiros, a maioria negros e pobres, cuja expectativa de vida
era 20 anos, andei pelo país atrás dessas mulheres. Elas respiravam, mas não
sei se estavam vivas. Lembro especialmente uma, a lavadeira Enilda, de
Fortaleza. Quando o primeiro filho foi assassinado pela polícia, ela estava com
as prestações do caixão atrasada. O pai do menino tinha ganhado um dinheiro
fazendo pão e, em meio à enormidade da sua dor, eles correram para regularizar
o pagamento. Quando conversei com ela, Enilda pagava as prestações do caixão do
segundo filho. O garoto ainda estava vivo, mas em absoluta impotência, essa mãe
tinha certeza de que o filho morreria em breve. Diante da minha perplexidade,
Enilda me explicou que se precavia porque testemunhava muitas mães nas
redondezas pedindo esmola para enterrar os filhos – e ela não queria essa
humilhação. Enilda dizia: “Meu filho vai morrer honestamente”.
Nunca alcancei essa dor,
que era não apenas de enterrar um filho, mas também de comprar caixão para
filho vivo, o único ato de potência de uma mulher que perdera tudo. Enilda
vivia numa situação de precariedade quase absoluta, tentando trancar nas peças
apertadas da casa os filhos que restavam, num calor infernal, para que não
fossem às ruas e se viciassem em crack. É claro que perdia todas as suas
batalhas. A certeza de ser honesta era, para ela, toda a sanidade possível.
(leia aqui).
O que podemos dizer a
mulheres como Enilda? Que agora podem ficar tranquilas porque o país voltou a
discutir a redução da maioridade penal e o aumento do período de internação?
Que é por falta de cadeia logo cedo que seus filhos vendiam e consumiam drogas,
roubavam e foram assassinados? Que, ao saber que podem ir presos aos 16 em vez
dos 18 anos, seus filhos ainda vivos aceitarão as péssimas condições de vida e
levarão uma existência em que não trafiquem, roubem nem sejam mortos? Que é
disso que se trata? Quando o primeiro filho de Enilda foi executado, ele tinha
20 anos – e já tinha passado por instituições para adolescentes e pela prisão.
Antes de tornar-se
algoz, a maioria das crianças e adolescentes que infringiram a lei foi vítima.
E ninguém responde por isso.
Não há educação sem
responsabilização. É por compreender isso que o ECA prevê medidas
socioeducativas. Mas, quando a solução apresentada é aumentar o rigor da lei –
e/ou reduzir a maioridade penal –, pretende-se dar a impressão à sociedade que
os adolescentes não são responsabilizados ao cometer um crime. Essa, me parece,
é a falsa questão, que só empurra o problema para a frente. A questão, de fato,
é que nem o Estado, nem a sociedade, se responsabilizam o suficiente pela nova
geração de brasileiros.
Educa-se também pelo
exemplo. Neste caso, governantes e parlamentares poderiam demonstrar que têm
maioridade moral cumprindo e fazendo cumprir a lei cujo rigor (alguns) querem
aumentar.
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