Pular para o conteúdo principal

O pastor que já foi herói na Globo

Por Rodrigo Vianna
O Pastor Marcos Pereira, da Assembleia de Deus dos Últimos Dias, está sendo acusado de estupros em série. Teria atacado mulheres que viviam em alojamentos mantidos pela Igreja dele, no Rio de Janeiro. Os indícios são graves. A mídia, em especial o jornal conservador “O Globo”, partiu pra cima do pastor. E não apenas por conta do estupro: investiga-se a vida de Pereira, o patrimônio, tudo.
O curioso é que, há cinco ou seis anos, o mesmo pastor era tratado como herói pelas Organizações Globo. A dica veio de um colega jornalista. Acompanhem: em 2008, “O Globo” denunciou um “Tribunal do Tráfico” em favelas do Rio. Jovens infratores eram julgados, condenados e executados pelos traficantes. O repórter acompanhou de perto um desses “julgamentos”. Quem abriu as portas pro jornalista subir o morro? O pastor Marcos Pereira. Mais que isso: o líder evangélico era apresentado como o homem que – na última hora – impedia a ação cruel dos traficantes. Vejam esse trecho da reportagem:
“Capturado de madrugada, o menor foi algemado e barbaramente torturado: tomou choque elétrico, teve garrafas quebradas em seu corpo, foi espancado com pedaços de madeira, sufocado com fita crepe e recebeu uma facada nas costas. Os traficantes estavam decididos a matá-lo, quando o pastor Marcos Pereira intercedeu e começou a sua defesa.”
O repórter Mauro Ventura ganhou o “Prêmio Esso” de jornalismo com essa matéria. E foi até entrevistado no Programa do Jô. Os dois – apresentador e jornalista de “O Globo” – exaltaram o trabalho de Marcos Pereira: “impressionante a coragem desse pastor”; “ele é muito respeitado”; “trabalho fantástico”.
Não passou pela cabeça de ninguém que o pastor tinha feito um tabalho de RP (Relações Públicas) usando a audiência da Globo? Ou passou pela cabeça, sim, mas a Globo estava na fase de “aproximação” com os evangélicos e aí não era o momento de questionar aliados? Há ainda uma terceira hipótese (foi Ali Kamel, da Globo, quem nos ensinou a importância de “testar hipóteses” no jornalismo): Marcos Pereira é um homem de bem, foi acusado de forma vil e injusta, estaríamos diante de um novo caso “Escola Base”… Será?
Seja como for, não acho que devemos condenar – de forma hipócrita e isolada – o repórter Mauro Ventura. Quantos não agiriam da mesma forma que ele? O caso serve pra mostrar como funciona o moderno jornalismo: essa mania de glorificar o repórter que passa por cima de qualquer risco, e se alia a qualquer um, para conseguir a informação. Vale tudo mesmo?
É bom fazer a ressalva: uma coisa é ter um bicheiro ou pastor de conduta duvidosa como fonte (isso eu não considero absurdo, já que muitas vezes é a única forma de acessar um ambiente ou um esquema criminoso); outra coisa é transformar sua fonte em “herói” para assim manter a “parceria”.
Cinco anos depois, assistir a entrevista do repórter ao Jô é mais do que constrangedor. É revelador. O jornalismo dos novos tempos está nu, e o que vemos não é bonito.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O mundo como fábula, como perversidade e como possibilidade: Introdução geral do livro "Por uma outra globalização" de Milton Santos

Por Milton Santos Vivemos num mundo confuso e confusamente percebido. Haveria nisto um paradoxo pedindo uma explicação? De um lado, é abusivamente mencionado o extraordinário progresso das ciências e das técnicas, das quais um dos frutos são os novos materiais artificiais que autorizam a precisão e a intencionalidade. De outro lado, há, também, referência obrigatória à aceleração contemporânea e todas as vertigens que cria, a começar pela própria velocidade. Todos esses, porém, são dados de um mun­do físico fabricado pelo homem, cuja utilização, aliás, permite que o mundo se torne esse mundo confuso e confusamente percebido. Explicações mecanicistas são, todavia, insuficientes. É a maneira como, sobre essa base material, se produz a história humana que é a verdadeira responsável pela criação da torre de babel em que vive a nossa era globalizada. Quando tudo permite imaginar que se tornou possível a criação de um mundo veraz, o que é imposto aos espíritos é um mundo de fabulações, q...

Preços de combustíveis: apenas uma pequena peça da destruição setorial

Por José Sérgio Gabrielli Será que o presidente Bolsonaro resolveu dar uma reviravolta na sua política privatista e voltada para o mercado, intervindo na direção da Petrobras, demitindo seu presidente, muito ligado ao Ministro Guedes e defensor de uma política de mercado para privatização acelerada e preços internacionais instantâneos na companhia? Ninguém sabe, mas que a demissão do Castello Branco não é uma coisa trivial, com certeza não é. A ação de Bolsonaro, na prática, questiona alguns princípios fundamentais da ideologia ultraneoliberal que vinha seguindo, como o respeito à governança das empresas com ações negociadas nas bolsas, a primazia do privado sobre o estatal e o abandono de intervenções governamentais em assuntos diretamente produtivos. Tirar o presidente da Petrobras, por discordar da política de preços, ameaça o programa de privatizações, pois afasta potenciais compradores de refinarias e tem um enorme efeito sobre o comportamento especulativo com as ações da Petrob...

Brasil perde um dos seus mais importantes cientistas sociais

Por Ricardo Cavalcanti-Schiel Faleceu por volta das 21:30 do dia 26 de março de 213, vítima de um acidente de trânsito no Km 92 da Rodovia Bandeirantes, o diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Prof. Dr. John Manuel Monteiro, quando regressava da universidade para sua residência em São Paulo. Historiador e antropólogo, John Monteiro foi um pioneiro na construção do campo temático da história indígena no Brasil, não apenas produzindo uma obra analítica densa e relevante, como também criando e estimulando a abertura de espaços institucionais e de interlocução acadêmica sobre o tema. Não seria exagerado dizer que foi em larga medida por conta do seu esforço dedicado que esse campo de estudos foi um dos que mais cresceu no âmbitos das ciências humanas no país desde a publicação do seu já clássico “Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo” (1994) até o momento. Tendo tido toda sua formação acadêmica nos Estados Unidos (graduado pelo Col...