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Morre Videla, o último bandido da oligarquia argentina

Por Oscar Guisoni, especial para Carta Maior
Nasceu entre baionetas e armas e morreu só, em uma cela, ao amanhecer, como costumam morrer algumas ratazanas. O ex-ditador argentino Jorge Rafael Videla chegou ao mundo em 2 de agosto de 1925 em uma pequena cidade da província de Buenos Aires. Seu pai era militar e seu avô havia sido governador na província de São Luis, no final do século XIX, em um período onde era amo e senhor da Argentina outro assassino, Julio Argentino Roca, o homem que conduziu a campanha militar que exterminou os indígenas na Patagônia e que instaurou o projeto oligárquico e liberal reivindicado pelos ricos produtores agropecuários do porto de Buenos Aires para impor seu projeto de república bananeira.
Foi assim como seu destino esteve ligado desde o início à casta militar a que pertencia. Uma casta que, durante o século XX, se erigiu em guardiã da ordem conservadora, interrompendo pela força os processos democráticos populares desde 1930, sempre sob as ordens dessa oligarquia portenha que se acreditava dona do país, que havia se aliado com a Inglaterra no século XIX e que, partir de 1955, se aliaria com os Estados Unidos.
E como as armas sempre estão acompanhadas pela cruz, o futuro assassino dos pampas se transformou desde jovem em um católico devoto. Ele se casou com uma senhora de pomposo sobrenome anglo-saxão, filha de um embaixador, com quem teve sete filhos, e em poucos anos ascendeu como estrela fulgurante entre a dura hierarquia das baionetas. Em 1960 – enquanto a Argentina mergulhava em um dos períodos políticos mais instáveis, com o peronismo proscrito desde 1955 e os militares interrompendo a vida civil do país de forma contínua -, dirigiu a Academia Militar, até que o então ditador Alejandro Agustín Lanusse o nomeou diretor do Colégio Militar da Nação, uma das instituições aristocráticas nas quais se formavam os futuros generais que depois conduziam os golpes de estado.
Em 1973, o ex-presidente Juan Domingo Perón consegue que se movimento político possa participar nas eleições depois de 18 anos de proibição e regressa ao país em meio a uma agitada situação política, com os militares em retirada em um punhado de movimentos guerrilheiros surgidos nos anos sessenta que ameaçavam encerrar também pelas armas a luta de poder no país. São os tempos da Guerra Fria e em todo o continente as castas militares e seus aliados econômicos se preparam para executar o que logo se conheceria como Plano Condor, uma repressão sistemática e generalizada coordenada pelos Estados Unidos para acabar para sempre com a insurgência armada e qualquer possibilidade de estabelecer alianças e sistemas econômicos diferentes na América Latina em relação aos então vigentes. Nesse ano, Videla se transformou o chefe do Estado Maior do Exército, promovido pelos seus próprios pares.
Em 1974, o envelhecido Juan Domingo Perón morre e assume o governo sua mulher, a direitista María Estela Martínez de Perón, “Isabelita”, que abre o caminho para a formação de grupos de ultradireita como a Triple A, que, à sombra do Estado, começam a executar dirigentes de esquerda, deputados, intelectuais, abrindo as portas ao terrorismo de estado. Em 1975, “Isabelita” o nomeia comandante em chefe do Exército, o lugar a partir do qual executará no ano seguinte o último golpe de estado na história contemporânea argentina.
Desde o começo, ditadura inaugurada por Videla em 1976 teve muito claro seus objetivos: “reorganizar” o país através de um “processo” sangrento (o governo se autodenominou “Processo de reorganização nacional”), capaz de extirpar pela raiz toda possibilidade de instaurar outro projeto econômico que não o apoiado pelas elites portenhas proprietárias das ricas terras expropriadas a força dos povos indígenas, um século antes.
O novo ditador assumiu com gosto sua função de exterminador, tal como havia feito um século atrás Juan Lavalle, o primeiro militar argentino que colocou à disposição dos latifundiários as armas do exército para dirimir pela força os diferentes projetos de país em disputa que tinham surgido da Revolução de Maio e da independência da Espanha, em 1816. Ele se sentia tão cômodo em sua nova função que até se permitiu conceber um novo método para assassinar inimigos políticos: a desaparição forçada de pessoas. Dessa maneira, explicou, se poupavam o aborrecimento de ter que fuzilar os seus opositores. Para isso, os militares sob seu comando criaram uma rede de campos de concentração clandestinos nos quais os prisioneiros eram torturados primeiro e depois lançados ao mar ou em uma fossa comum, impedindo que seus familiares encontrassem seus corpos. Para completar o horror, as Forças Armadas se apropriavam não só das propriedades dos presos desaparecidos, como também de seus filhos, que eram distribuídos entre militares e empresários amigos.
O regime que inaugurou e que dirigiu até 1980, afundou na própria infâmia depois da derrota na Guerra das Malvinas, em 1982. Em 1983, junto com o retorno da democracia, chegam também os primeiros ares de justiça e, em 1984, começa o mítico processo judicial das Juntas Militares que culmina com a condenação à prisão perpétua de Videla e seus capangas. Em 1991, o peronista Carlos Menem os indulta, como parte de seu projeto político neoliberal que implica ter as Forças Armadas contentes enquanto os setores oligárquicos continuam desfrutando do modelo econômico instaurado em 1976.
Em 2003, assume a presidência Néstor Kirchner, um peronista mais próximo da esquerda, que anula os indultos e abre a porta para a continuidade dos julgamentos. Videla volta á prisão e é envolvido em um punhado de julgamentos, dos quais sai condenado. O mais simbólico ocorre em 2010, quando é apontado como um dos principais responsáveis pelo roubo de bebês, um dos crimes mais repugnantes da ditadura.
Passou seus últimos anos na cadeia, já que seu excelente estado de saúde não permitiu que gozasse dos benefícios da prisão domiciliar, usufruído por alguns de seus cúmplices. Da sua solidão e ostracismo até se permitiu questionar o atual governo por ter permitido que se retomassem os julgamentos, mas nunca quis pedir perdão nem se mostrou arrependido de seus crimes. Ao cair da noite da quinta-feira, sentiu-se mal e comunicou o fato a seus carcereiros. Na madrugada de 17 de maio morreu como havia nascido, entre armas, na solidão e no ostracismo, tal como devia morrer: na prisão, condenado por seus crimes contra a humanidade. Agora só lhe restará o consolo dos obituários que seguramente muitos sobrenomes ilustres publicarão no jornal La Nación, sintoma de que a oligarquia argentina chora o último de seus bandidos.

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