Por Alessandra Corrêa
Nova 'Bíblia da
psiquiatria' amplia lista de transtornos e gera polêmica. Luto que durar mais
de duas semanas poderá ser considerado depressão.
A quinta edição do
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou DSM-5 (Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, em tradução livre), conhecido
como a "Bíblia da psiquiatria", será lançada neste fim de semana, nos
EUA, cercada de muita polêmica.
Há meses, especialistas
e leigos vêm discutindo como as mudanças previstas na nova edição manual,
elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric
Association, ou APA, na sigla em inglês), poderão impactar o diagnóstico de
doenças mentais, em um momento em que, segundo estudo da Universidade de
Harvard, quase metade dos americanos adultos em algum momento da vida sofrem de
algum transtorno mental.
Segundo seus críticos, o
novo manual - que será lançado durante o encontro anual da APA, de 18 a 22 de
maio, em San Francisco, na Califórnia - amplia ainda mais o número de doenças
mentais, além de aumentar as chances de alguém ser diagnosticado com os
transtornos já existentes, reduzindo o número de sintomas necessários para que
um paciente se encaixe em determinado diagnóstico.
Com isso, cresceria o
número de pessoas tratadas com medicamentos para transtornos mentais - e,
consequentemente, o mercado para a indústria farmacêutica.
Uma das principais
críticas é a de que o DSM-5 estaria transformando em doenças comportamentos até
agora considerados comuns, como o sofrimento após a perda de alguém próximo (a
partir de agora, o luto que durar mais de duas semanas será considerado sintoma
de depressão), colocando em discussão a fronteira entre o que é considerado
"normal" e o que pode ser definido como doença mental.
"As fronteiras da
psiquiatria continuam a se expandir; a esfera do normal está encolhendo",
disse o psiquiatra Allen Frances, que comandou a comissão responsável pela
quarta edição do DSM, em uma carta ao jornal The New York Times.
"Como presidente da
Força-Tarefa do DSM-IV, eu devo assumir responsabilidade parcial por essa
inflação de diagnósticos. Decisões que pareciam fazer sentido foram exploradas
por empresas farmacêuticas em campanhas de marketing agressivas e enganosas.
Elas venderam a ideia de que problemas da vida cotidiana são na verdade doenças
mentais, causadas por desequilíbrios químicos e curadas com uma pílula",
diz Frances, que é professor emérito da Universidade de Duke, na Carolina do
Norte, e um dos maiores críticos do DSM-5.
Influência
Publicado desde 1952
pela APA, que é considerada a organização psiquiátrica mais influente do mundo,
o DSM é usado por médicos de todo o planeta, inclusive do Brasil, além de
servir como base para a classificação de doenças mentais incluídas pela OMS
(Organização Mundial da Saúde) na Classificação Estatística Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde.
Com tamanho impacto no
diagnóstico e tratamento de doenças mentais no mundo todo, o DSM sempre foi
alvo de polêmicas a cada nova edição. A última, de 1994, foi revisada em 2000.
"As edições
anteriores foram provavelmente ainda piores que o DSM-5 vai ser", disse à
BBC Brasil a psicóloga Paula Caplan, da Universidade de Harvard, que durante
dois anos participou da comissão responsável pela elaboração da edição
anterior.
Caplan diz ter
abandonado a comissão "por questões éticas e profissionais" e por ter
testemunhado o que classifica de "distorções" em pesquisas. Ela
aborda o tema no livro They Say You are Crazy: How the World's Most Powerful
Psychiatrists Decide Who's Normal ("Eles dizem que você é louco: Como os
psiquiatras mais poderosos do mundo decidem quem é normal", em tradução
livre).
"Há pelo menos 20
anos, tem se tratado como doença mental quase todo tipo de comportamento ou
sentimento humano", diz Caplan.
Alternativa
Desta vez, porém, as
críticas vieram até da maior organização de pesquisa em saúde mental do mundo,
o National Institute of Mental Health (Instituto Nacional de Saúde Mental, ou
NIMH, na sigla em inglês), ligado ao governo americano.
Na semana passada, o
diretor do NIMH, Thomas Insel, anunciou que o instituto está "reorientando
suas pesquisas" e se distanciando das categorias do DSM.
"Há pelo menos 20
anos, tem se tratado como doença mental quase todo tipo de comportamento ou
sentimento humano." (Paula Caplan, psicóloga da Universidade de Harvard)
"A fraqueza (do
DSM) é sua falta de fundamentação", escreveu Insel em seu blog. "Seus
diagnósticos são baseados no consenso sobre grupos de sintomas clínicos, não em
qualquer avaliação objetiva em laboratório."
"Os pacientes com
doenças mentais merecem algo melhor", disse Insel, ao mencionar o Projeto
de Pesquisa em Domínio de Critérios (Research Domain Criteria, ou RDoC, na
sigla em inglês), em que o NIMH pretende desenvolver um sistema de classificação
de doenças mentais mais preciso, que inclua genética, ciência cognitiva "e
outros níveis de informação".
Em resposta às críticas
de Insel, o presidente do grupo que elabora o DSM-5, David Kupfer, professor de
psiquiatria na Universidade de Pittsburgh, disse que esforços como o do RDoC
são "vitais para o contínuo progresso da nossa compreensão coletiva dos
transtornos mentais", mas ressaltou que "não podem nos servir aqui e
agora e não podem substituir o DSM-5".
"O novo manual
(DSM-5) representa o mais sólido sistema atualmente disponível para classificar
doenças (mentais). Reflete o progresso que fizemos em várias áreas
importantes", disse Kupfer.
Mesmo críticos como
Frances ou Insel reconhecem que, apesar dos problemas, o DSM ainda é a melhor
alternativa disponível no momento.
Para que recebam
reembolso das seguradoras de saúde por tratamentos, os pacientes precisam que
as doenças das quais sofrem sejam diagnosticadas oficialmente. O mesmo vale
para alguns programas e benefícios governamentais nos EUA, o que faz com que
muitos defendam a ampliação do número de diagnósticos.
"O impacto do DSM é
muito amplo", disse à BBC Brasil o psicoterapeuta Gary Greenberg, autor do
livro The Book of Woe: The DSM and the Unmaking of Psychiatry ("O livro do
Infortúnio: O DSM e o desfazer da psiquiatria", em tradução livre).
"As pessoas não deveriam se preocupar
especificamente com o DSM-5, as versões anteriores já fizeram seu estrago. O
que o DSM-5 está fazendo é chamar a atenção para os problemas atuais da
psiquiatria, mas isso deve preocupar mais os psiquiatras do que os
pacientes", disse.
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