Por Lilia Diniz
A redução da maioridade penal de 18 para 16 anos volta
à pauta sempre que casos envolvendo menores de idade ganham repercussão na
mídia. O assunto é polêmico e desperta reações acaloradas entre defensores e
opositores. Nas últimas semanas, crimes cometidos por jovens chocaram o país.
Em São Paulo, o estudante Victor Hugo Deppman, de 19 anos, foi morto durante um
assalto por um rapaz de 17 anos que completaria 18 em uma semana. As câmeras de
segurança do prédio onde Hugo morava filmaram o momento em que, mesmo após
entregar o celular, o estudante foi atingido por um tiro na cabeça. Caso seja
condenado o menor ficará detido, no máximo, por três anos.
Dias depois, também em São Paulo, a dentista Cinthya de
Souza foi queimada viva. Entre os criminosos que atearam fogo à vítima está um
menor de idade. Presa em seu consultório, a dentista entregou o cartão do banco
e a senha de acesso à conta, mas o bando só conseguiu sacar R$ 30 e voltou para
se vingar. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o
número de apreensões de menores aumentou 23% nos três primeiros meses de 2013.
Uma pesquisa do Datafolha divulgada em 17/4 revelou que 93% dos paulistanos
concordam com a diminuição da maioridade penal.
O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, encaminhou
ao Congresso Nacional uma proposta de alteração do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) com penas mais severas para menores que cometerem crimes
graves ou reincidentes. O secretário de Segurança Pública de São Paulo defendeu
abertamente que a sociedade debata a redução da maioridade penal. Já o ministro
da Justiça, José Eduardo Cardozo, é contra a reforma da legislação para jovens
infratores e advertiu que o projeto enviado à Câmara é inconstitucional. O
Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (30/4) pela TV Brasil
examinou o debate em torno deste tema, que precisa entrar na agenda da
sociedade.
O programa contou com a presença do advogado e vereador
Ari Friedenbach (PPS-SP), pai da jovem Liana, morta em 2003 com o seu namorado,
Felipe Caffé. Liana foi sequestrada e estuprada durante cinco dias por um grupo
de quatro homens comandado por um jovem de 16 anos. No Rio de Janeiro,
participaram a antropóloga Alba Zaluar e a jornalista Sylvia Moretzsohn. Alba
Zaluar estuda violência urbana e criminalidade há mais de 30 anos. Doutora em
Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP), Zaluar é professora da
Unicamp. Sylvia Moretzsohn é professora de Jornalismo do Departamento de Comunicação
Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde também atua no programa
de pós-graduação em Justiça Administrativa.
Lei vs. realidade
Em editorial, antes do debate no estúdio, Alberto Dines
criticou a postura da imprensa diante da discussão sobre a redução da
maioridade penal: “No Brasil não se debate: berra-se, se xinga ou o pior,
coloca-se uma pedra ou pá de cal em cima das questões cruciais. Na realidade,
continuamos nos comportando como uma teocracia que não consegue libertar-se dos
dogmas e tabus. Queremos fórmulas mágicas, imediatas, casuístas, imaginando que
uma leizinha aqui e uma emendazinha acolá resolverão qualquer problema por mais
cabeludo que seja” [ver íntegra abaixo].
A reportagem exibida antes da discussão ao vivo
entrevistou Marisa Deppman, mãe de Victor Hugo. Para ela, a punição máxima de
três anos para o assassino de seu filho é muito branda: “Foi feita uma pesquisa
pelo Congresso Nacional. De cada 10 pessoas entrevistadas, nove são a favor da
redução da maioridade penal. Quer dizer, 90% da nossa população. É uma vergonha
o que está acontecendo. Esse rapaz... esse rapaz não, esse animal que executou
o meu filho, vai pegar três anos [de reclusão].Aí ele se engaja lá numa
comunidade religiosa qualquer que tem dentro da Fundação Casa, ele vai estudar,
vai fazer alguma atividade que possibilite a redução da pena dele. Se ele
cumprir um ano é muito”, lamentou.
Para Marisa Deppman, que é advogada, o ECA foi
elaborado da forma correta e é referência internacional, mas só funciona no
papel: “O ECA foi feito realmente para o menor abandonado, o menor que sofre
uma violência doméstica, não para o menor infrator. Menor infrator não tem que
estar abarcado pelo ECA porque eles usam essa brecha que tem no ECA para
cometer os crimes”. A mãe de Victor Hugo Deppman ressaltou que quando os crimes
são praticados em grupo, os maiores de idade muitas vezes acabam jogando a
culpa para os menores de 18 anos porque sabem que estes serão punidos com um
tempo menor de cadeia.
O programa entrevistou outra vítima de violência
cometida por menor de idade, a jornalista Lúcia Pastor, que recentemente
publicou um depoimento na Folha de S. Paulo. Estuprada aos 19 anos, nos anos
1970, ela não acredita que a redução da maioridade penal irá diminuir a
criminalidade. “Ao que tudo indica, pela experiência que se tem dos outros
países, não resolve nada. Não é um número cabalístico, passar para 16, oito ou
quatro, que vai fazer diferença. O que faz a diferença é você ter todo um
processo penal que funcione, com reeducação, política de reinserção social, com
toda uma série de elementos que têm que ser discutidos e implementados e que
não são agradáveis, normalmente, à opinião pública, que não quer ver presos com
direitos humanos sendo defendidos”, disse a jornalista.
Castigo ou recompensa?
Especializado em Direito Penal, o advogado Paulo
Ribeiro ressaltou que quando ocorre um crime de especial gravidade praticado
por um menor de idade, setores da sociedade tentam alterar a legislação. “Isso
tudo leva a crer que o melhor não é fazer uma mudança de afogadilho, não é
fazer uma mudança pensando nessa questão que se chama de retribuição. Ou seja,
se a pena criminal tem uma finalidade, e existem várias, a primeira delas seria
essa tal retribuição: o mal pelo mal causado. Entretanto, tanto estudo houve na
humanidade, tanto se pensou nas finalidades da pena, que seriam a
ressocialização de quem praticou o crime, a prevenção no que tange à prática de
futuros delitos, [que] isso certamente não se realizaria com a mudança da maioridade
penal”, disse o advogado. Para Paulo Ribeiro, a redução da maioridade penal é
uma resposta simplista, simbólica e ineficaz.
O jornalista Ricardo Boechat ressaltou que o projeto de
lei enviado à Câmara dos Deputados atende a um anseio legítimo da sociedade
baseado em situações pontuais: “Não é todo dia, a todo instante – e os números
mostram isso – que nós temos menores protagonizando crimes que chocam a opinião
pública. Alguns desses crimes são feitos por alguns menores, lamentavelmente,
numa frequência que a própria sociedade entende que precisa encontrar um
basta”. Para Boechat, a alteração na legislação não resolveria o problema da
violência cometida por menores. “Em um país com a realidade social que nós
temos e toleramos, eu não vejo como uma lei de redução de maioridade penal
possa dar a tranquilidade que a sociedade legitimamente está ansiando quando
ela se coloca uma discussão como esta”, disse o jornalista.
Na avaliação da psiquiatra forense Kátia Meckler, o
jovem de hoje recebe um fluxo maior de informações e, por isso, pode ter
capacidade de perceber o que é errado mais cedo do que no passado. “É
importante saber se a pessoa tem o livre arbítrio necessário, se ela sabe fazer
a distinção entre o que é certo e o que é errado. E aí a gente acaba vendo, por
exemplo, países que têm a maioridade penal muito baixa. Às vezes é dez anos. É
muito importante ver o que está sendo aferido para se determinar a
responsabilidade. Do ponto de vista cognitivo, a ideia é que o jovem de 16 anos
tem capacidade, sim, de votar, e também tem a capacidade de fazer a distinção
entre uma coisa lícita e uma coisa ilícita”, afirmou a psiquiatra.
Uma questão antiga
No debate ao vivo, Dines relembrou que há cinquenta
anos, em Santa Tereza, um bairro pacato no Rio de Janeiro, o filho do
jornalista Odylo Costa, filho foi brutalmente assassinado por um menor de idade
durante um assalto. O caso ganhou repercussão, o pai perdoou o bandido e
assumiu a tarefa de tentar reorganizar o sistema que recolhia os menores
infratores. Dines sublinhou que cinco décadas depois do esforço do jornalista,
a situação é a mesma por omissão das autoridades e falta de debate público
sobre o tema.
Para Ari Friedenbach, a redução da maioridade penal
para 16 anos é equivocada porque vai criminalizar qualquer ato de jovens a
partir desta idade. “Um jovem que eventualmente roube um refrigerante, uma
bicicleta, vai responder criminalmente sobre o seu ato e vai entrar no sistema
carcerário falido e inoperante, [que] não recupera [os menores]. Na verdade,
são masmorras e não presídios o que nós temos no Brasil”, disse o advogado.
Além disso, jovens de 13 a 15 anos que cometem crimes bárbaros continuariam
impunes.
Para ele, a medida mais eficaz seria responsabilizar
apenas os menores que cometerem crimes hediondos, independente da idade. O
infrator passaria pela avaliação de psicólogos e juízes. Após a condenação,
seria encaminhado a instituições especializadas em atendimento a menores Só
passaria ao sistema penitenciário comum se precisasse cumprir parte da pena
após atingir 18 anos. “Precisamos melhorar as prisões, construir prisões, mas
não é por isso que a gente não vai punir os criminosos”, disse o vereador.
A consciência sobre matar ou morrer forma-se bem antes
dos 16 anos, de acordo com Ari Friedenbach. “O jovem de 16 anos sabe muito bem
que se ele matou alguém essa pessoa não vai levantar meia hora depois”, disse o
vereador. Para ele, a situação seria diferente se as diversas leis sobre os
menores fossem cumpridas. “O ECA prevê que os jovens sejam separados [dentro
dos centros de reclusão] por periculosidade, compleição física, tipo de crime.
Então, essa coisa de dizer ‘não vamos misturar que eles ficam mais perigosos’
não funciona porque o legislador já tomou esse cuidado quando fez a lei”,
explicou Friedenbach.
A violência cotidiana
A questão da maioridade penal não deve ficar restrita a
discussões entre cientistas sociais, na opinião de Alba Zaluar. O tema está
ligado a como o país está educando e socializando crianças e jovens. A
antropóloga ressaltou que, na adolescência, uma série de mudanças hormonais
causa alterações no comportamento. Em algumas sociedades os jovens aprendem a
conquistar a aceitação e o respeito de seus pares pela gentileza e pela
compaixão. No entanto, no Brasil, os jovens – especialmente os mais vulneráveis
– estão sendo socializados em ambientes em que a violência é banalizada. É
preciso oferecer aos jovens a oportunidade para que eles aprendam novas
maneiras de serem respeitados e admirados porque é justamente o que buscam na
adolescência como forma de passagem para o mundo adulto.
É uma incongruência, na opinião de Alba Zaluar, o fato
de um jovem de 16 anos poder votar e, por outro lado, não ser responsável
criminalmente sobre seus atos antes dos 18. “Surgem coisas estapafúrdias. Se o
cara tem 17 anos e 10 meses ele vai para uma instituição e alguns meses depois
ele estará solto. E, se o jovem tem 18 anos e um dia, será julgado como um
adulto. Isso revela que nós temos uma forma de nos relacionarmos com a lei que
é muito rígida.” A antropóloga explicou que o período de amadurecimento dos
jovens varia de acordo com a classe social. A puberdade atualmente tem início
aos 10 anos em algumas classes sociais mais baixas, segundo ela. A antropóloga
advertiu que se a maioridade for reduzida para 16 anos, os grupos de crime
organizado que se valem de menores para serem deixados como únicos responsáveis
pelos crimes vão passar a recrutar jovens de 15 anos ou menos.
Sylvia Moretzsohn ponderou que a sociedade age sob o
impacto de um sentimento de revolta quando um crime envolvendo menores
infratores ganha repercussão, mas, estatisticamente, os dados não são significativos.
“Quem está pensando em algum planejamento, alguma proposta de alteração da
legislação, qualquer política pública que se queira ter voltada para a
juventude, não [deve] se deixar levar por esses casos, que são gravíssimos e
evidentemente não podem deixar de ser punidos, mas não podem ser tratados como
se fossem padrão. Antes de mais nada, temos que pensar que a prisão não é
solução”, alertou a professora.
De forma equivocada, o jovem está sendo socializado na
prisão e depois retorna para a sociedade, onde volta a cometer crimes. Esta
conjuntura gera um círculo vicioso em que a única solução, geralmente, é a
reincidência. “Eu não duvido nada que a partir do momento em que nós tivermos
um planejamento de que todo mundo pode ser preso por tais ou quais crimes,
daqui a pouco vai haver uma campanha para que haja pena de morte efetivamente
porque [as pessoas vão pensar:] ‘afinal de contas nós é que sustentamos essas
pessoas com o dinheiro público. Nós, os bons cidadãos que pagamos impostos não
temos que ficar sustentando esse monte de marginais ou monstros’”, disse Sylvia
Moretzsohn.
Questões incômodas
Alberto Dines no editorial do Observatório da Imprensa
Prepare-se: nesta edição vamos examinar duas questões
muito incômodas, penosas. A imediata, concreta, jornalística, é a questão da
maioridade penal imposta pelo trágico autoengano coletivo de nos imaginarmos
uma sociedade cordial.
A questão de fundo é talvez mais importante porque diz
respeito ao papel da imprensa: no Brasil não se debate: berra-se, se xinga ou o
pior, coloca-se uma pedra ou pá de cal em cima das questões cruciais. Na
realidade, continuamos nos comportando como uma teocracia que não consegue
libertar-se dos dogmas e tabus.
Queremos fórmulas mágicas, imediatas, casuístas,
imaginando que uma leizinha aqui e uma emendazinha acolá resolverão qualquer
problema por mais cabeludo que seja.
A questão da maioridade penal tornou-se gritante, já
não pode ser escamoteada pela beatífica hipocrisia de “proteção à infância e à
adolescência”. Mas a maioridade penal não pode ser desligada da conjuntura
social onde se combinam um brutal desprezo pela vida, um sistema educacional
falido e uma incontrolável corrupção que subverte todos os valores.
As grandes conquistas políticas dos últimos três mil
anos foram alcançadas através do debate. E esta é uma questão eminentemente
política porque diz respeito à isonomia, à igualdade de direitos e deveres.
Dentro do debate estão embutidas as soluções. Abortar o confronto de ideias é
um “facilitário’ que só serve a caudilhos e aiatolás.
A imprensa brasileira está diante de um desafio,
verdadeiro vestibular: se não consumar este debate sobre a maioridade penal
pode desistir do papel de guardiã do interesse público.
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