Por Leonardo Sakamoto
O trabalho escravo
contemporâneo não é um resquício de modos de produção arcaicos que sobreviveram
ao capitalismo, mas sim um instrumento utilizado pelo próprio capital
A cada ano, milhares de
trabalhadores pobres são recrutados para trabalhar em fazendas, carvoarias,
canteiros de obras e oficinas de costura e, posteriormente, submetidos a
condições degradantes de serviço ou impedidos de romper a relação com o
empregador. Não raro, permanecem sem poder se desligar do empregador até que
terminem a tarefa para a qual foram aliciados, sob ameaças que vão de torturas
psicológicas a espancamentos e assassinatos. No Brasil, essa forma de
exploração é chamada de trabalho análogo ao de escravo, escravidão
contemporânea ou nova escravidão, prevista como crime no Código Penal (artigo
149), com pena de dois a oito anos de reclusão.
Sua natureza econômica
difere da escravidão da Antiguidade clássica e daquela que aqui existia durante
a Colônia e o Império, mas o tratamento desumano, a restrição à liberdade e o
processo de “coisificação” são similares. O número de trabalhadores envolvidos
é relativamente pequeno se comparado com a população economicamente ativa,
porém não desprezível: de 1995 – quando o sistema de combate ao trabalho
escravo contemporâneo foi criado pelo governo federal – até hoje, mais de 44
mil pessoas foram resgatadas dessa situação, de acordo com dados do Ministério
do Trabalho e Emprego.
A produção capitalista
necessita de espaços não capitalistas para se desenvolver. Em função de sua
natureza, não admite limitações na aquisição de matéria-prima e na criação de
mercados. Vale lembrar que ao longo de séculos, países e corporações têm ido à
guerra por esse motivo. Em um curto espaço de tempo, de acordo com uma
sinalização de demanda no Extremo Oriente, empreendimentos agropecuários no
interior da Amazônia são capazes de se expandir sobre áreas, na maioria das
vezes, ocupadas por populações que vivem sob outro modo de produção. Em questão
de anos, surgem grandes fazendas de gado, lavouras de soja, algodão e
cana-de-açúcar, além de carvoarias, produzindo matéria-prima e gêneros
alimentícios, onde antes viviam populações indígenas, camponeses, comunidades
quilombolas ou ribeirinhas.
Nessa expansão, podem
coexistir tecnologia de ponta e formas ilegais de trabalho. O que parece
contraditório na verdade expressa um processo fundamental para o
desenvolvimento desses empreendimentos, acelerando sua capitalização e
garantindo a capacidade de concorrência.
A utilização de trabalho
escravo contemporâneo não é resquício de modos de produção arcaicos que
sobreviveram provisoriamente à introdução do capitalismo, mas sim um
instrumento utilizado pelo próprio capital para facilitar a acumulação em seu
processo de expansão. A superexploração do trabalho, da qual a escravidão é sua
forma mais cruel, é deliberadamente utilizada em determinadas regiões e
circunstâncias como parte integrante e instrumento do capital. Sem ela,
empreendimentos mais atrasados em áreas de expansão não teriam a mesma
capacidade de concorrer na economia globalizada.
Há condições sociais que
facilitam a disponibilização de mão de obra para essa pilhagem constante da
força de trabalho. Em verdade, elas são consequências da existência do velho e
bom exército de reserva de mão de obra, que resulta da progressiva redução da
participação relativa do trabalho na composição do capital, mas também do
processo de grilagem e expulsão de posseiros e de outras populações tradicionais
de suas terras na região de fronteira agrícola amazônica – frequente durante o
regime militar nas décadas de 1970 e 1980 e que se mantém ainda hoje – que
serve tanto para aumentar o contingente de mão de obra para o campo e as
cidades, quanto para ampliar os territórios dos empresários.
Isso, estruturalmente,
gera um excedente alijado de meios de produção e emprego, diminuindo o valor de
mercado a ser pago por um serviço. Os trabalhadores são impelidos a aceitar a
oferta de serviço do “gato”, mesmo não recebendo garantias de que as promessas
dadas no momento do recrutamento serão cumpridas. Baseado nesse contexto de
fragilidade social, o empreendedor pode utilizar a mão de obra necessária
pagando o montante que desejar. Que pode ser praticamente nada no caso do
trabalho análogo ao escravo.
As propriedades rurais
mais atrasadas do ponto de vista tecnológico tendem a compensar essa diferença
por meio de uma constante redução da participação do “trabalho” no seu custo
total. Simulam, dessa forma, uma composição orgânica do capital de um
empreendimento mais moderno, em que a diminuição da participação do custo do
trabalho se dá através do desenvolvimento tecnológico. Traduzindo para o
português: há fazendeiros que retiram o couro do trabalhador para poder
concorrer no mercado. Outros se aproveitam dessa alternativa não para gerar
competitividade, mas para capitalizar-se durante um período de tempo (e depois
trocar trabalhadores por colheitadeiras) ou aumentar sua margem de lucro.
Esse processo de
acumulação baseado em formas antigas de produção opera no momento de expansão
do sistema, em que este consome formas exteriores para crescer. Depois, essas
formas são introduzidas no próprio modo de produção, que continua seu avanço.
Essa inserção não é automática, mas sim um processo que varia em tempo e
intensidade, de acordo com o tipo de empreendimento e seu grau de modernização.
Tal processo ocorre em três situações:
a) Há atividades que,
por motivos técnicos – seja porque não é possível sua mecanização, seja porque
a utilização de mão de obra demanda menor investimento inicial, continuam
excessivamente dependentes de trabalho manual.
Um dos casos registrados
de escravidão contemporânea está no desmatamento e limpeza de antigas áreas
abandonadas para a introdução de empreendimentos agropecuários ou
extrativistas. A força de trabalho é utilizada para derrubada de mata nativa,
construção de cercas, plantação de pastos, produção de carvão vegetal, e
catação de raízes para possibilitar o cultivo da soja e do algodão. Dessa
forma, esses empreendimentos são capazes de gerar recursos já no momento de sua
abertura.
Um exemplo são os
pecuaristas proprietários de terras na região de influência do polo siderúrgico
de Carajás, no Pará, que produziam carvão vegetal a partir do desmatamento (na
maior parte das vezes, ilegal), realizado para implantação ou ampliação de
pastagem. O carvão era vendido a usinas siderúrgicas do Maranhão e do Pará para
a produção de ferro-gusa, matéria-prima do aço, exportado principalmente para os
Estados Unidos. E a área ficava limpa para a plantação de pastos. Os recursos
obtidos na venda do carvão eram usados para construir infraestrutura ou comprar
gado. Nessas duas etapas – de carvoejamento e de introdução da pecuária –
foram, não raro, realizadas por trabalho análogo ao escravo. Há um gasto mínimo
com a manutenção da mão de obra, superexplorada, enquanto a economia gerada
pode viabilizar a concorrência ou aumentar o capital constante. Nesse caso, o
ganho com a produção tem sido repassado a algumas usinas que aceitam a
mercadoria mesmo com irregularidades.
b) Outra situação de
escravidão contemporânea é encontrada em empreendimentos já implantados, mas
que estão expandindo sua área, como as propriedades rurais em funcionamento que
crescem em superfície cultivável a partir da derrubada de mata nativa, da limpeza
de antigas áreas abandonadas, de mudanças de ramo de atividade econômica, entre
outros contextos. Nesse caso, o trabalho escravo contemporâneo cumpre a função
de motor de expansão em empreendimentos consolidados.
Empregadores utilizam
tecnologia de ponta em uma área da produção, enquanto depreciam a mão de obra
em outra. O grupo móvel de fiscalização do governo federal, responsável pela
libertação de pessoas, encontrou 54 trabalhadores em condição análoga à de
escravo na fazenda Peruano, em Eldorado dos Carajás, sudeste do Pará, em
dezembro de 2001. Eles trabalhavam em atividades de ampliação da infraestrutura
e do pasto nessa fazenda que produz gado e é considerada modelo no
desenvolvimento de matrizes reprodutoras, inseminação artificial e comercialização
de embriões. O proprietário era um dos maiores criadores da raça nelore do
estado. Esse não é o único caso: há diversos exemplos de fazendas de soja e
algodão que utilizam tecnologia de ponta na produção de grãos e fibras,
enquanto a preparação de solo e a ampliação de área são feitas de forma
arcaica, com baixo investimento.
Em uma operação de
fiscalização de Sinop, no Estado de Mato Grosso, foram libertados 22
trabalhadores que estavam em situação de escravidão na produção de arroz e
soja. A ação foi motivada por denúncias de maus-tratos e cerceamento da
liberdade. Algumas pessoas não eram pagas há meses, recebendo apenas comida e
alojamento – pequenas barracas de lona nas quais se amontoavam, em redes,
famílias inteiras. A água que utilizavam era imprópria e servia ao mesmo tempo
para consumo, banho e lavagem de roupa. Inicialmente, 40 pessoas haviam sido
contratadas para a empreitada, mas como não suportaram as duras condições
impostas, muitos fugiram antes de a fiscalização chegar. O proprietário tentou
convencer os peões a voltarem para a Entre Rios durante a operação de
fiscalização, afirmando que precisava dessa mão de obra para o serviço. Porém,
apesar das alternativas de contratação oferecidas por ele, os trabalhadores se
negaram a retornar – estavam com medo do comportamento violento e das
constantes ameaças de espancamento do gerente da fazenda. Segundo os auditores
do Ministério do Trabalho e Emprego, os empregados também eram constantemente
ameaçados pelos dois “gatos” da fazenda que, assim como o gerente, andavam
armados. De acordo com Valderez Monte, auditora fiscal e coordenadora da
operação, os trabalhadores sempre ouviam o gerente dizer que “maranhense tem
que apanhar mesmo de facão”.
Dois modos de produção
atuam de forma complementar e simultânea. O modo arcaico serve ao moderno para
garantir uma expansão de terras e benfeitorias, sem que seja necessário
capitalizar grandes montantes de mais-valia provenientes da parte moderna,
garantindo que esta mantenha sua competitividade no mercado enquanto cresce.
c) O mesmo vale para
empreendimentos cujo processo de modernização é muito lento ou estagnou-se.
Podem ser incluídos o plantio e a colheita de lavouras como café,
cana-de-açúcar, pimenta-do-reino, frutas, arroz, tomate ou atividades de extração
vegetal.
Assim, encontra-se
trabalho escravo contemporâneo não apenas em atividades em área de expansão
agropecuária, mas também em empreendimentos cuja modernização foi incompleta,
em comparação com o restante do setor. Em outras palavras, o desenvolvimento
capitalista de uma propriedade rural pode ter se estagnado e, sem aumento da
produtividade do trabalho, ela deprecia o capital variável para continuar
operando de forma viável.
Nas regiões de fronteira
agrícola encontra-se a maior incidência de trabalho escravo, mas esse tipo de
exploração não está restrito à Amazônia ou ao Cerrado. Não é de se estranhar
que empreendimentos com modernização incompleta utilizem mão de obra análoga à
de escravo, como nas lavouras de cana-de-açúcar em Campos dos Goitacazes,
Estado do Rio de Janeiro, ou em oficinas de costura e canteiros de obra no
Estado de São Paulo.
Esses dois momentos, o
moderno e o arcaico, se chocam ou se completam devido à sua proximidade física.
Durante uma ação de fiscalização em uma fazenda do Mato Grosso, os auditores
fiscais do trabalho presenciaram aviões pulverizando o campo com agrotóxicos
enquanto os catadores de raízes ainda estavam na área, deixando-os cobertos de
veneno.
Em empreendimentos
pecuaristas, os vaqueiros recebem do proprietário da fazenda e do gerente ou
preposto tratamento melhor que os peões, muitas vezes com contratos de
trabalho. Isso deve-se ao fato de os vaqueiros serem profissionais
especializados e depositários de confiança por parte do proprietário. Em diversas
ocasiões, o grupo móvel de fiscalização encontrou vaqueiros atuando na
vigilância dos trabalhadores recrutados para o trato do pasto, evitando que
fugissem antes do fim do serviço.
A utilização de formas
extremas de exploração da força de trabalho, em que os custos com a manutenção
da mão de obra são insuficientes para a reprodução social ou biológica do
indivíduo, é restrita a uma parcela pequena da população economicamente ativa.
A incidência de trabalho análogo ao escravo tem sido pequena comparada ao universo
de trabalhadores rurais. Com isso, ele não é capaz, diretamente, de reduzir os
preços de produtos em nível nacional e internacional, mas sim os custos
individuais de capitalistas, quando estes vendem commodities, ou seja,
mercadorias com padrão e preço comuns.
Porém, por ser um
instrumento de redução individual de custos, contribui com a viabilização da
implantação de novos empreendimentos e, portanto, facilita a expansão
agropecuária sobre áreas não inseridas no modo de produção. Maior número de áreas
de produção significa aumento da oferta de mercadorias.
A acumulação primitiva,
adotada como instrumento de capitalização, foi usada em larga escala na
Amazônia para a implantação de fazendas durante o período da ditadura militar.
E não foi devido a uma suposta ausência estatal que essa forma de exploração
teve condições de se desenvolver; pelo contrário, é a ação direta de setores
cúmplices ou coniventes do Estado que permite e incentiva esse laissez-faire no
campo. Historicamente, esses empreendimentos têm conseguido recursos por
intermédio dos governos federal, estadual e municipal, garantindo um nível de
capital constante que permite sua atuação no mercado. As placas que mostram o
financiamento da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), do
Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e do Banco da Amazônia (Basa), expostas nas
porteiras das fazendas, provam que o Estado se faz presente na fronteira
agrícola para o capital, através de incentivos fiscais, isenção de impostos,
taxas e subsídios, e de infraestrutura para os produtores rurais, e que há uma
política pública apoiando aquelas práticas. Hoje, há uma política federal de
negar empréstimos a quem foi flagrado com trabalho escravo, mas ainda é muito
pouco considerando o que é oferecido a quem traz o “progresso” à região.
Escravos contemporâneos
e trabalhadores assalariados, elementos antigos e novos, convivem dentro do
capitalismo de forma complementar e para o bem desse sistema.
A distribuição de terra
não é a panaceia para o problema da exploração do trabalho no país, mas
representa, por exemplo, uma importante mudança nessa estrutura e no modelo de
expansão no campo brasileiro. A reforma agrária, ou seja, a socialização, pelo
menos parcial, dos meios de produção no campo significaria um pesado golpe em
um capital que, direta ou indiretamente, se aproveita do exército reserva de
mão de obra disponível para superexplorá-la.
Erradicar o trabalho
escravo contemporâneo requer uma mudança estrutural. Dado a falta de
perspectivas de alteração do panorama visível, é necessário adotar uma postura
pragmática. Há a possibilidade de atenuar o problema, diminuindo a incidência
de trabalho escravo e mesmo de formas não contratuais de trabalho, por meio de
alterações no modo de produção e na sua forma de expansão. Não se trata, aqui,
de fazer uma revolução, mas garantir com que alguns dos nossos empresários que
não gostam de regras sejam obrigados a segui-las, como assim fazem em outros
lugares do mundo. Ou seja, para ter sucesso, tais políticas de combate ao
trabalho escravo devem atingir de forma inequívoca a base econômica dessa
estrutura.
No dia 13 de maio de
1888, com a Lei Áurea, o Estado deixou de reconhecer o direito de propriedade
de uma pessoa sobre outra. Contudo, isso não significou que todas as relações
passariam a ser guiadas por regras de compra e venda da força de trabalho mediante
assalariamento, com remuneração suficiente para a manutenção do trabalhador e
de sua família. O fim da escravidão não representou a melhoria na qualidade de
vida de muitos trabalhadores, rurais e urbanos, uma vez que o desenvolvimento
de um número considerável de empreendimentos continuou a se alimentar de formas
de exploração semelhantes ao período da escravidão como forma de garantir uma
margem de lucro maior ao empreendimento, dar-lhe competitividade para a
concorrência no mercado ou possibilitar a presença de mão de obra em número
suficiente.
Que entoemos, então,
repetidas vezes o mesmo mantra: “onde há lucro com a exploração da dignidade,
que sejam impostos severos prejuízos”. Para evitar que, em datas redondas como
hoje, olhemos para trás com a falsa sensação de missão cumprida.
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