Pular para o conteúdo principal

Krugman: austeridade, a solução para uma minoria rica

Por NYT

Na medida em que temos a política do 1%, pelo 1%, para o 1%, não vamos ver apenas novas justificativas para as mesmas velhas políticas?
Ajustes promovidos pelos governos alimentam a insatisfação da população, como se vê na Espanha.
Debates econômicos raramente terminam em nocaute técnico. Porém, o grande debate político dos últimos anos entre keynesianos, que defendem a manutenção e até mesmo o aumento dos gastos públicos numa depressão, e "austerianos", que exigem cortes de gastos imediatos, chega perto disso – pelo menos no mundo das ideias.
No presente momento, a posição "austeriana" implodiu; não apenas suas previsões sobre o mundo real fracassaram redondamente como também a pesquisa acadêmica invocada para sustentar essa posição acabou por se revelar cheia de erros, omissões e estatísticas duvidosas.
No entanto, duas grandes questões permanecem. Para começo de conversa, como foi que a doutrina da austeridade se tornou tão influente? Em segundo lugar, a política vai mudar agora que as cruciais alegações "austerianas" tornaram-se inspiração para os cômicos de fim de noite?
Quanto à primeira questão: o predomínio de "austerianos" em círculos influentes deve perturbar quem gosta de acreditar que a política se baseia em evidências reais ou, pelo menos, é fortemente influenciada por elas. Afinal, os dois estudos principais que fornecem a suposta justificativa intelectual para a austeridade – o de Alberto Alesina e Silvia Ardagna sobre "austeridade expansionista" e o de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff sobre o perigoso "limite" da dívida em 90% do Produto Interno Bruto – enfrentaram críticas pesadas assim que saíram.
E os estudos não suportam o escrutínio. No final de 2010, o Fundo Monetário Internacional (FMI) tinha retrabalhado Alesina-Ardagna com melhores dados e reverteu seus resultados, enquanto muitos economistas levantaram questões fundamentais sobre Reinhart-Rogoff muito antes de nós ficarmos sabendo sobre o famoso erro do Excel. Enquanto isso, os eventos do mundo real – estagnação na Irlanda, o país garoto-propaganda original da austeridade, a queda das taxas de juros nos Estados Unidos, que deveriam enfrentar uma crise fiscal iminente – rapidamente transformaram em absurdo as previsões "austerianas".
No entanto, a austeridade manteve e chegou mesmo a reforçar seu controle sobre a opinião da elite. Por quê?
Parte da resposta certamente encontra-se no desejo generalizado de ver a economia como um jogo moral, de torná-la um conto de excessos e suas consequências. Segundo essa trama, nós vivemos além das nossas possibilidades e agora estamos pagando o preço inevitável. Os economistas podem explicar "ad nauseam" que isso é errado, que a razão pela qual temos desemprego em massa não se deve ao fato de termos gastado muito no passado e agora gastarmos pouco, e que este problema pode e deve ser resolvido. Não importa; muitas pessoas têm o sentimento visceral de que nós pecamos e devemos buscar a redenção por meio do sofrimento e nem o argumento econômico nem a observação de que as pessoas que sofrem agora não são as mesmas que pecaram durante os anos da bolha adiantam muita cisa.
Contudo, não se trata apenas de uma questão de emoção contra a lógica. Não dá para compreender a influência da doutrina de austeridade sem falar em classe e desigualdade.
O que, afinal, as pessoas querem da política econômica? A resposta, ao que parece, depende de a quem a pergunta é feita – ponto documentado em recente trabalho de pesquisa dos cientistas políticos Benjamin Page, Larry Bartels e Jason Seawright. O estudo compara as preferências políticas dos norte-americanos comuns com as dos muito ricos, e os resultados são reveladores.
Assim, o -americano médio é um pouco preocupado com os déficits orçamentários, o que não é nenhuma surpresa, dado o constante bombardeio de histórias assustadoras sobre déficit na mídia, mas os ricos, na grande maioria, encaram os déficits como o problema mais importante que enfrentamos. E como o déficit orçamentário dos Estados Unidos deve ser reduzido? Os ricaços favorecem cortes nos gastos federais em saúde e previdência social – ou seja, "direitos"; já o público em geral quer ver um aumento nos investimentos nesses programas.
Dá para entender: a agenda de austeridade lembra bastante a simples expressão de preferências da classe alta, encoberta por uma fachada de rigor acadêmico. O que o um por cento dos mais ricos deseja se torna o que a ciência econômica diz que devemos fazer.
Será que uma depressão contínua realmente atende aos interesses dos ricos? Isso é duvidoso, já que uma economia em expansão é geralmente boa para quase todos. O que é verdade, porém, é que os anos desde que nos voltamos para a austeridade foram deploráveis para os trabalhadores, mas não de todo ruins para os ricos, beneficiados pela alta dos lucros e dos preços das ações, ainda que o desemprego de longo prazo se agrave. O 1% pode não desejar de verdade uma economia fraca, mas está se saindo bem o suficiente para satisfazer seus preconceitos.
E isso faz pensar quanta diferença o colapso intelectual da posição "austeriana" vai realmente fazer. Na medida em que temos a política do 1%, pelo 1%, para o 1%, não vamos ver apenas novas justificativas para as mesmas velhas políticas?
Tomara que não. Eu gostaria de acreditar que as ideias e as provas têm importância, ainda que pouca. Caso contrário, o que estou fazendo com a minha vida? Mas eu penso que nós apenas vamos ver o quanto o cinismo é justificado.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O mundo como fábula, como perversidade e como possibilidade: Introdução geral do livro "Por uma outra globalização" de Milton Santos

Por Milton Santos Vivemos num mundo confuso e confusamente percebido. Haveria nisto um paradoxo pedindo uma explicação? De um lado, é abusivamente mencionado o extraordinário progresso das ciências e das técnicas, das quais um dos frutos são os novos materiais artificiais que autorizam a precisão e a intencionalidade. De outro lado, há, também, referência obrigatória à aceleração contemporânea e todas as vertigens que cria, a começar pela própria velocidade. Todos esses, porém, são dados de um mun­do físico fabricado pelo homem, cuja utilização, aliás, permite que o mundo se torne esse mundo confuso e confusamente percebido. Explicações mecanicistas são, todavia, insuficientes. É a maneira como, sobre essa base material, se produz a história humana que é a verdadeira responsável pela criação da torre de babel em que vive a nossa era globalizada. Quando tudo permite imaginar que se tornou possível a criação de um mundo veraz, o que é imposto aos espíritos é um mundo de fabulações, q...

Preços de combustíveis: apenas uma pequena peça da destruição setorial

Por José Sérgio Gabrielli Será que o presidente Bolsonaro resolveu dar uma reviravolta na sua política privatista e voltada para o mercado, intervindo na direção da Petrobras, demitindo seu presidente, muito ligado ao Ministro Guedes e defensor de uma política de mercado para privatização acelerada e preços internacionais instantâneos na companhia? Ninguém sabe, mas que a demissão do Castello Branco não é uma coisa trivial, com certeza não é. A ação de Bolsonaro, na prática, questiona alguns princípios fundamentais da ideologia ultraneoliberal que vinha seguindo, como o respeito à governança das empresas com ações negociadas nas bolsas, a primazia do privado sobre o estatal e o abandono de intervenções governamentais em assuntos diretamente produtivos. Tirar o presidente da Petrobras, por discordar da política de preços, ameaça o programa de privatizações, pois afasta potenciais compradores de refinarias e tem um enorme efeito sobre o comportamento especulativo com as ações da Petrob...

Brasil perde um dos seus mais importantes cientistas sociais

Por Ricardo Cavalcanti-Schiel Faleceu por volta das 21:30 do dia 26 de março de 213, vítima de um acidente de trânsito no Km 92 da Rodovia Bandeirantes, o diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Prof. Dr. John Manuel Monteiro, quando regressava da universidade para sua residência em São Paulo. Historiador e antropólogo, John Monteiro foi um pioneiro na construção do campo temático da história indígena no Brasil, não apenas produzindo uma obra analítica densa e relevante, como também criando e estimulando a abertura de espaços institucionais e de interlocução acadêmica sobre o tema. Não seria exagerado dizer que foi em larga medida por conta do seu esforço dedicado que esse campo de estudos foi um dos que mais cresceu no âmbitos das ciências humanas no país desde a publicação do seu já clássico “Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo” (1994) até o momento. Tendo tido toda sua formação acadêmica nos Estados Unidos (graduado pelo Col...