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Grã Bretanha: Chamamento a criar um partido de esquerda

Do The Guardian
The Spirit of ´45 (O espírito de 45), o novo filme de Ken Loach é um documentário, baseado em imagens de arquivo, que relata o nascimento do Estado de bem-estar social no Reino Unido no fim da guerra, sob o mandato do governo laborista de Clement Attlee. Aquele período esteve marcado por uma onda de nacionalizações sem precedentes – e sem equivalência nos países ocidentais – assim como pela criação do NHS, (o sistema público de saúde), entre outras coisas.
A estreia do filme, no mês passado, nas telas britânicas, forneceu a ocasião para uma verdadeira sucessão de reuniões públicas: muito rapidamente as discussões se centraram no balanço do Estado de bem-estar social, nos ataques atuais que tentam desmantelá-lo, na deriva direitista do Partido Laborista. E na necessidade de um novo partido…
É esta uma preocupação que num primeiro momento foi desenvolvida por Ken Loach em várias entrevistas, entre elas a concedida à página Open Democracy:
“Se os sindicatos dizem que vamos fazer o que fizemos há um século, que vamos fundar um partido para representar os interesses do mundo do trabalho e que só apoiaremos os candidatos que defendam uma política de esquerda, então poderemos retomar nossa marcha para a frente. Mas temos necessidade de um novo partido e de um novo movimento (…). Nas últimas eleições internas à direção do Partido Laborista, não havia sequer um candidato que representasse a esquerda desse partido. E é que esse partido sofreu os expurgos realizadas por Blair e seu setor. Os sindicatos devem cortar os laços (com ele) e recomeçar com todos os que se situam na esquerda, com aqueles que se envolvem em campanhas militantes, em defesa do NHS, a favor da moradia, dos serviços sociais. Com toda essa gente…”
Este “chamamento” informal, repetido em numerosas páginas web – entre elas a de Socialist Resistence, a organização britânica da Quarta Internacional – converteu-se rapidamente num verdadeiro chamamento, numa petição que já recolheu mais de 7.000 assinaturas. Este fenômeno desembocou na criação duma rede – LeftUnity – dotada de grupos de base que debatem sobre a criação de um novo partido.
A questão dum novo partido não está, por outra parte, limitada às discussões dos círculos da esquerda revolucionária, entre os quais o chamamento de Ken Loach não deixará de provocar movimentos. Abriu-se ao debate político britânico, em particular graças à publicação no Guardian  duma tribuna assinada por Ken Loach, Kate Hudson (secretária geral do CND, a campanha pelo desarme nuclear) e Gilbert Achcar (acadêmico e ensaísta), cuja tradução publicamos a continuação. Veja o artigo.
O Partido Laborista nos traiu. Precisamos de um novo partido de esquerda
Ken Loach, Kate Hudson, Gilbert Achcar
A Grã Bretanha precisa de um partido que rechace as políticas neoliberais e melhore a vida das pessoas comuns. Ajude-nos a criá-lo!
A austeridade agrava a catástrofe econômica que a Europa sofre, como ocorreu muito recentemente à população chipriota, mas George Osborne [1] dá prosseguimento à mesma política desastrosa. O orçamento anunciado na semana passada não é uma surpresa: Osborne anunciou todavia mais cortes orçamentários, assim como a extensão do bloqueio dos salários no setor público, o que significa um descenso do poder aquisitivo. Nos afunda ainda mais profundamente num buraco econômico, como mostra a revisão das previsões de crescimento dadas pelo Escritório de Responsabilidade Orçamentária: uma taxa de crescimento de 0,6% no lugar do 1,2% inicialmente previsto. Isso se parece muito a uma nova recessão, e não ao prometido crescimento; e são as pessoas comuns que pagam o preço. A violência dos ataques econômicos do governo não conhece limites. No bem-estar social, nos subsídios aos desempregados, nos impostos locais ou nos impostos sobre as moradias vazias [2], aplica-se outras tantas políticas punitivas dirigidas contra os membros mais vulneráveis da sociedade.
A se a julgar em função dos objetivos que diz perseguir, se poderia facilmente afirmar que a política governamental é ineficaz: o déficit será 61.500 milhões de libras acima do previsto (uns 73.000 milhões de euros). Mas, por suposto, a realidade é que as políticas de austeridade foram concebidas para desmantelar o Estado de bem-estar social, baixar os salários e privatizar completamente a economia, destruindo todas as conquistas econômicas e sociais obtidas pelas camadas populares desde a Segunda Guerra Mundial. Do ponto de vista do que busca o governo, suas políticas são eficazes.
A sociedade vai compreendendo cada vez mais o que o governo quer realmente e, em consequência, cresce a oposição e se discutem alternativas em matéria de política econômica. Na semana passada, o Guardian publicou um chamamento de 60 economistas que explicam que o pior está por vir: faltam ainda 80% de cortes orçamentários a realizar…
Essas políticas econômicas alternativas estão em debate, mas, no nível político, aonde podemos nos dirigir para que sejam defendidas como partido? Se queremos lutar por uma alternativa, quem está do nosso lado? No passado, muitos esperavam que o Partido Laborista atuasse a nosso favor e conosco; mas já não é o caso. O subsídio para os desempregados? Na semana passada, o Partido Laborista se absteve e agora o governo pode excluir dele um quarto de milhão de desempregados. A taxação sobre as moradias vazias? Algum governo laborista se dispõe a aboli-la?
Temos necessidade de políticas que rechacem os cortes orçamentários dos conservadores, que regenerem a economia e melhorem a vida das camadas populares. Não obteremos nada disso do Partido Laborista. Quanto a isso não há dúvida: no passado, houve alguns ganhos laboristas destacáveis, como o Estado de bem-estar social, o serviço público de saúde, uma economia redistributiva que tornou possível níveis mais altos do que nunca em igualdade na educação e na saúde. Mas esses ganhos já pertencem ao passado. Hoje, o Partido Laborista está do lado dos cortes orçamentários e das privatizações. Ele mesmo desmantela sua grande obra do passado. O Partido Laborista nos traiu. Nada mostra isso mais claramente do que o filme O espírito de 45.
O Partido Laborista britânico não está sozinho na sua virada à direita e na sua conversão às políticas econômicas neoliberais. Seus partidos irmãos na Europa seguiram o mesmo caminho faz dois decênios. Mas, em outras partes da Europa, novos partidos ou novas coalizões – como Syriza, na Grécia, ou Die Linke, na Alemanha – começaram a ocupar o espaço deixado vago e a oferecer uma alternativa política, uma visão econômica e social. É preciso acabar com essa anomalia que deixa a Grã Bretanha sem uma alternativa política de esquerda para defender o Estado de bem-estar social, o investimento gerador de empregos, a moradia e a educação, a transformação da economia.
Por essa razão, chamamos o povo a se unir no debate para a fundação de um novo partido de esquerda. A classe operária não pode permanecer sem representação política, sem defesa, precisamente quando todas as suas vitórias e todas as suas conquistas estão sendo destruídas.
Segunda-feira, 29 de abril de 2013
Notas :
[1] Ministro de Economia e Finanças do governo Cameron
[2] Não é realmente um imposto, ainda que tenha sido batizado de “o imposto do dormitório”. É uma invenção do governo que retira dinheiro das ajudas da seguridade social por cada moradia vazia que tenha em seu domicílio pessoas com poucos recursos. É uma forma de obrigar os pobres que recebem subsídio de aluguel a buscar moradias menores. Foi introduzido ao mesmo tempo em que se reduziu de 50% para 45% a taxação do IRPF sobre os mais ricos (ndt) .

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