Por Márcio Sotelo Felippe**- Especial para o Jornal GGN
Os regimes fascistas em muitos aspectos não eram diferentes de outras experiências
históricas caracterizadas pelo terror do
Estado contra movimentos populares,
etnias, trabalhadores, sindicatos e organizações de esquerda. Mas o que apareceu na Alemanha e na
Itália tinha algo específico. No primeiro momento ninguém se deu conta. Os
soviéticos usaram um conceito genérico. Disseram que era uma ditadura
terrorista aberta dos elementos mais
reacionários do grande capital.
Se fosse isso apenas não
seria uma novidade. O fascismo tinha de fato
em comum com outras ditaduras burguesas vários aspectos: era uma forma de dominação com métodos
terroristas, impedia o exercício de
direitos, liberdades e garantias básicas
dos indivíduos e esmagava movimentos populares e organizações de esquerda.
Podemos identificar algo assim na Comuna de Paris, muito tempo antes. Um governo popular foi esmagado com extrema
crueldade e 20 mil “comunards” foram executados. No entanto, soaria meio estranho dizer que Thiers era fascista.
Quem pôs o ovo em pé foi
Palmiro Togliatti, histórico dirigente do Partido Comunista Italiano. Ele viu
que era uma ditadura de direita,
mas de novo tipo. Além
do terror, buscava o consenso e queria capturar a consciência das
massas. O objetivo era transformar a sociedade em um organismo e eliminar
conflitos. Isto sim era novidade
histórica.
Um novo tipo de
dominação naquele momento era necessário porque surgira o poder bolchevique.
Até então o socialismo era uma ameaça
detida pela só violência. Mas
comunistas tomaram o poder na Rússia e
se consolidaram no poder. Um desafio novo exigia respostas novas: não bastavam a violência e o terror do
Estado, era preciso tornar a sociedade imune a transformações uniformizando-a. Era preciso dominar a consciência de uma
parte da sociedade para excluir a outra parte.
Domina-se uma
consciência operando com a ideia de verdade. Uma visão de mundo, um interesse
de classe, um ponto de vista, a ideia de conservação, todo o ideário
reacionário torna-se “verdade”. Particularmente no caso do nazismo isto se
deu por uma apropriação perversa do romantismo filosófico. A base do romantismo
filosófico era uma ruptura com a ideia
usual de verdade. No conceito
clássico imaginava-se que a consciência
se apropriava de uma verdade como se
fosse, digamos, uma máquina fotográfica.
No romantismo filosófico o eu cria a verdade. O espírito livre passa a ser senhor absoluto do dever
ser. Quando está apenas submetido às leis necessárias da natureza o espírito
está morto. Quando faz suas próprias regras o espírito está vivo.
Para Fichte, escrevendo em plena invasão
napoleônica, esse eu criador seria o
povo alemão. Fichte inspirou o “volkisch”, movimento que grassou na Alemanha no século
XIX. “Volkisch” significava mais ou
menos poder do povo, espírito do povo, mas
com uma conotação étnica.
Abarcava o sangue, a tradição, a pátria, o ambiente, a terra e permeando
isso tudo a etnia. O filósofo romântico pensava que o povo alemão emanciparia a
humanidade. Lançaria “massas rochosas de pensamentos” sobre os quais “eras
vindouras construiriam suas moradas”. O espírito alemão era uma “águia cujo
poderoso corpo se impele ao alto e paira sobre asas fortes e experientes no céu
para poder ascender para perto do sol,
de onde ele gosta de observar”. (Discursos à Nação Alemã)
Conhecemos os resultados
dessa apropriação do romantismo pelo regime nazista. O sujeito - o povo alemão
- cria seu mundo, cria a moral. Tudo que
estivesse na perspectiva do povo alemão
- entendido como “volkisch” , etnicamente -
seria bom e verdadeiro. Tudo que não
estivesse seria mau e falso. Ou uma
doença para o “organismo”.
O Estado nazista criou
uma polícia e um processo penal volkisch.
Um historiador do nazismo os descreve assim: “esse tipo de polícia
“volkisch”, ou biológica, da polícia foi apresentado ao povo alemão como a base
racional para o que a polícia fazia. Himmler informou tranquilamente em março
de 1937, que a tradição do Estado mínimo estava morta, assim como a velha ordem
liberal na qual, pelo menos em teoria, a polícia era neutra. Enquanto a velha
polícia vigiava mas não interferia para cumprir agendas de seu interesse, a
nova polícia, disse ele, não estava mais sujeita a quaisquer restrições formais
para realizar sua missão, que incluía fazer valer a vontade da liderança e
criar e defender o tipo de ordem social que esta desejava. Segundo Hans Frank,
era impensável que a polícia ficasse meramente restrita à manutenção da lei e
da ordem. Ele disse que esses conceitos costumavam ser considerados neutros e
livres de valores, mas na ditadura de Hitler ‘a neutralidade filosófica não
existe mais’, isto é, apoiar ou abraçar qualquer outra visão política a não ser
o nazismo era um crime. Para a nova polícia, a prioridade era ‘a proteção e o
avanço da comunidade do povo’, e contramedidas policiais eram justificadas para
deter toda “agitação” oposta ao povo, que precisava ser sufocada”. A polícia
podia tomar quaisquer medidas necessárias, incluindo a invasão de lares,
‘porque não existe mais esfera privada, na qual o indivíduo tem permissão para
trabalhar sem ser molestado na base da vida da comunidade nacional-socialista.
A lei é aquilo que serve ao povo, e ilegal é aquilo que o fere’”.(Robert
Gellately, Apoiando Hitler – Consentimento e Coerção na Alemanha Nazista, p.
79/80)
Nesse momento desaparece
a herança iluminista do processo. A polícia pode tudo. Basta entender que certa
conduta é contrária ao “povo”. Provas e procedimentos são desnecessários porque
o processo é outro: um simples juízo a
cargo de uma autoridade qualquer.
Sempre que de algum modo
o diferente é tratado como inimigo, excluído do povo, desqualificado em sua humanidade, associado a
desvalores, mau, falso, injusto, sujo, sempre que alguém procura uniformizar o meio
social como um organismo por tal método, estamos diante de uma atitude
fascista. A chave é essa: alguns são “o
povo” e devem ser protegidos; outros não são o povo, não tem direitos e podem ser excluídos.
O ódio à diferença é o
fenômeno social fascista por definição. Há hoje no Brasil problemas com a diferença.
Devemos prestar atenção quando a luz
amarela acende.
A inculta e selvagem
classe média brasileira tem horror à
diferença. Não gosta de negro, não
suporta homossexual, não quer pobres por perto a não ser para limpar suas
privadas. Quando é de direita – quase
sempre – tem ódio da esquerda. Não é
apenas contra. Não é que discorda. Odeia.
A classe média brasileira é a favor da pena de morte, da redução da
maioridade penal, da execução sumária de transgressores, repete frases como “bandido bom é bandido morto” e
seu ideal de polícia é tal qual o “volkisch” da Alemanha nazista, mas isso,
claro, quando o acusado é pobre, negro, puta,
gay, etc.
O julgamento da AP 470
(o “mensalão”) teve a ver com a rejeição do diferente. Não se tratou de uma
questão meramente partidária. Engana-se quem pensa isso. Pau que bate em Chico
bate em Francisco. O PT não é hoje exatamente um partido rebelde, mas a questão era simbólica. O PT está
associado no imaginário social à esquerda e muitos dos seus quadros são
“outsiders” em relação à elite branca universitária que sempre foi dona do
poder e sempre ganhou eleições
presidenciais. Colocar seus quadros na prisão no vislumbre de uma edição do
Jornal Nacional em que aparecerão algemados será o início
do pretendido processo de “higienização” da política. Subliminarmente faz-se a associação de uma concepção não conservadora do mundo ao crime.
O STF distorceu doutrinas jurídicas, desrespeitou a
própria jurisprudência, decidiu diversamente do que havia decidido pouquíssimo tempo antes para
declarar-se competente (apenas três dos trinta e sete réus teriam foro
privilegiado, e nesse caso o processo deveria ter sido remetido a outra
instância). Um ministro declarou em sessão,
ao vivo para todo o país, que estabelecia
a pena sob medida para que não houvesse
prescrição. Confessou um ato de vontade
à margem da lei para que houvesse a condenação. Nesse momento desapareceu a
figura do julgador e surgiu a do inquisidor.
Não queria julgar, queria condenar. Uma ministra reconheceu que não
havia provas suficientes, mas a “literatura” permitia condenar...
Tudo isso foi possível
porque existe em parte da sociedade (com
apoio aberto da grande midia) um
ambiente favorável à exclusão de outra visão do mundo que não a
conservadora. Não um mero combate, o que
seria normal da política, mas exclusão.
Esse é o ponto. O diferente deve ser
excluído e para isso vale o ordenamento jurídico do lobo e do cordeiro, a norma
que permite ao lobo jantar o cordeiro e que pode ser qualquer uma.
Colunistas ou
comentaristas políticos de direita
costumam agora utilizar o mais
rasteiro e pobre dos recursos de argumentação, o argumento ad hominem. A
estratégia é desqulificar a pessoa, a história familiar, um suposto problema do
pai, da mulher, do tio, etc. As pessoas
de esquerda são assim, gente sem valor
desde a origem familiar. Subrepticiamente afirma-se que o desvalor está na constituição genética ou foi
impresso pelo ambiente de onde vieram. A
contrario sensu os que os combatem são
limpinhos e saudáveis. Às vezes aparece uma descarada eugenia, como a
chocante matéria de uma revista semanal que dizia que, segundo uma pesquisa
científica, pessoas altas ganham mais
dinheiro. O sucesso dependeria de uma condição biológica que em geral se
desenvolve nas camadas privilegiadas da
sociedade, constituída por descendentes de europeus, mais altos na média do que
o brasileiro não branco.
O trágico episódio do
Pinheirinho escancarou a violência de que essa gente é capaz de praticar ou de apoiar. Os diferentes nunca têm os mesmos direitos. Mais uma vez, contra
eles pode-se tudo. A vida de 6 mil
pessoas foi destruída por máquinas passando em cima de suas casas às 5,30 hs de uma
manhã de domingo, com o aviso prévio suficiente para tirar o bebê do
berço e correr. Não sei o que pode ser mais parecido com o Judiciário alemão
sob o nazismo do que isso.
Uma parte desta
sociedade pensa que o Brasil deve ser o espelho deles, do mesmo modo como a
cultura “volkisch” queria que a Alemanha fosse o seu espelho.
Esta sociedade será dos
brancos, dos negros, dos amarelos, dos
gays, dos travestis, dos indígenas, dos
drogados, dos loucos, dos bêbados, das putas e será a sociedade de toda incusão.
Não será a sociedade dos brancos de classe média heterossexuais (supostamente).
É escolher entre democracia ou barbárie.
* Texto baseado em apresentação feita no
seminário “Resistência Democrática - Diálogos entre Política e Justiça”, promovido pela Escola da Magistratura do Rio
de Janeiro de 15 a 17 de maio deste ano.
** Márcio Sotelo Felippe é jurista,
ex-Procurador Geral do estado de São Paulo (1995-2000), autor do livro Razão
Jurídica e Dignidade Humana, publicado pela editora Max Limonad.
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