Entrevista concedida a
revista Veja (23/02/1972), a Leo Gilson Ribeiro, aos 75 anos.
Veja - A senhora estava na Europa, durante a Semana. Mesmo assim, é
considerada uma de suas figuras principais. Por que?
TARSILA - Embora eu
estivesse na Europa, eu acho que participei da Semana de 22 pela carta que a
Anita Malfatti me mandou, contando tudo, com todas as minúcias. Agora nem sei
onde essa carta foi parar. Eu fiquei admirada do que ela me contou e com a
grosseria do Monteiro Lobato quando falou sobre ela, sem compreender nada,
muito reacionario, pois imagine que ele se julgava pintor, o Monteiro Lobato,
sabe? Eu fiquei muito admirada: o que será esta coisa? A Anita ficou magoada
com toda a ra zão, o Monteiro Lobato falava dos quadros dela como se fossem
feitos por um burro com um pincel amarrado no rabo e conforme as moscas
atormentavam o burro ele dava aquelas pinceladas assim na tela, não é?
Veja - Mas a Semana...
TARSILA - Nas vésperas
de ir para a Europa eu aluguei meu atelier para um professor alemão, o
professor Elpons, o único impressionista que estava no Brasil. Ele foi o único
que me deu uma experiência dos quadros impressionistas porque aqui no Brasil
não chegava nada, só através do professor Pedro Alexandrino, que esteve vinte
anos em Paris e visitava muito, aqueles grandes pintores, que ele conhecia
todos. Muita gente dizia: é perder tempo ir trabalhar no atelier de Pedro
Alexandrino porque um passadista; mas ele tinha preparo, pensando bem não era
perder tempo não.
Veja - Como a senhora descobriu o seu talento?
TARSILA - Eu comecei a
trabalhar (em São Paulo) sob a direção de Pedro Alexandrino e não me fez nada
de mal de ver que era uma coisa antiga, acadêmica, tinha aquele método antigo
de copiar à fusain para exercitar a mão, fiz até a cabeça de um negro, ele queria
que eu tivesse a mão muito firme e me dava então aquele papel muito grande para
trabalhar, não é? ele ia me explicando tudo, fazer traços sem régua, sem nada.
Comecei com o desenho, eu não era uma colorista no princípio, fazia cópias de
gesso também, com sombreadodo, coisas de anatomia que tinha que copiar,
conhecer bem. Ele trabalhava no Liceu de Artes e Ofícos e trazia aqueles
modelos e era muito bom porque a pessoa aprendia anatomia e sabia as
proporções, não é?
Veja - São Paulo era muito provinciana nas artes?
TARSILA - Ah, era, o
gosto geral era pelas paisagens iguaizinhas à vida, era o reino da natureza
morta também, as fulgurações do metal copiadas na tela, tão real! Isso não foi
prejudicial para mim, foi uma fase preparatória. Quando cheguei na Europa fui
logo para a Académie Julien, academia de nus, num grande salão, eu fui com meus
trabalhos: uma cabeça de velho feita a pastel, depois uma holandesa com óleo já
e o negro, que foi a carvão. Havia muitos ateliers e a moda era dos nus, punham
o modelo só cinco minutos diante do artista para ele fazer rapidamente, eu
gostava até porque já tinha prática. Depois fui estudar com um grande professor
hors-concours, fazia exposições, gostava muito da minha pintura, agora me
esqueci do nome dele. Ele chamava a atenção dos alunos para o que eu fazia,
sabe? Eram muitos e como eu trabalhava rápido ele gostava e dizia para o
atelier grande: Voyez ce qu´elle fait, comme c´est puissant (Olhem só o que ela
faz, como tem força!) Eu voltei ao Brasil pouco depois da Semana, mas eu não
gostava do que a Anita Malfatti fazia, era tudo assim muito deformado. Mas é
claro que estava completamente chocada e contra o Monteiro Lobato. Depois, no
fim do ano, a Anita foi trabalhar também com o Pedro Alexandrino, porque a mãe
da Anita era muito passadista e vivia contra a filha e contra as inovações dela
na pintura, dizia que aquilo não prestava. A Anita ficava muito desanimada da
mãe se zangar por ela não fazer o parecido, a mãe não compreendia nada, era um
horror!
Veja - A senhora achou um ambiente hostil quando voltou?
TARSILA - Eu cheguei nos
primeiros dias de junho, vinha de navio, que não tinha a facilidade do avião, o
Gago Coutinho é que ia atravessar o Atlântico logo depois. Mas era tão
tranqüila a travessia por mar!... Eram os navios da Mala Real inglesa, os
melhores, e logo passou algum tempo a França fez também o Lutèce e o Marsília.
Não, não achei um ambiente hostil quando voltei. Eu recebia muitas pessoas,
poetas, no meu atelier da rua Vitória. Era uma casa que pertencia à minha
família mesmo.
Veja - A senhora era uma mulher muito bonita...
TARSILA - Quem? Eu? Bom,
naturalmente, naquele tempo eu estava melhor do que estou hoje. Aí tive o
encontro com o Oswald de Andrade, que era muito extravagante, falava mal de
todo mundo, quando ele achava que uma coisa era engraçada, tinha que dizer
mesmo que ofendesse os amigos, sacrifica tudo por um bon mot. Uma vez Paulo
Prado brigou com ele e nunca mais quis falar com ele, sabe? Eu nem sabia por
que, no entanto o Paulo Prado tinha feito um prefácio muito bom para o livro do
Oswald, Pau-Brasil, editado lá em Paris. Quando o Oswald tinha uma coisa para
dizer, ele não resistia mesmo e aí falou sobre a dona Veridiana Prado e dizem
que ela não era, bem ariana, que ela tinha uma misturazinha lá e o Oswald falou
daquela gloriosa mulata que a dona Veridiana Prado. Ora, o Paulo Prado era
parente muito próximo, de maneira que nunca mais falou com o Oswald.
Veja - Ele brigou também com Mário de Andrade?
TARSILA - Brigou também.
Depois ficou com saudade dele, pediu que eu escrevesse uma carta para o Mário,
Oswald era muito temperamental, eu estava casada com ele e escrevi mas Mário
respondeu que era impossível, que o Oswald o tinha ofendido demais, que ele
estava muito ressentido, que não era possível, que comigo era diferente, ele
sempre foi muito meu amigo, o Mário. Aí, quando o Oswald viu que ele não
voltava mesmo às boas, continuou a falar mal do Mário. Era uma pena esse traço
do caráter do Oswald... E com uma obra tão séria, não? as ilustrações dos
livros fui eu que fiz todas.
Veja - O famoso Aba-Puru partiu daí?
TARSILA - Não, eu quis
fazer um quadro que assustasse o Oswald, sabe? que fosse uma coisa mesmo fora
do comum. Aí é que vamos chegar no Aba-Puru. Eu mesma não sabia por que que eu
queria fazer aquilo... depois é que eu descobri. O Aba-Puru era aquela figura
monstruosa que o senhor conhece, não é? a cabecinha, o bracinho fino apoiado no
cotovelo, aquelas pernas compridas, enormes, e junto tinha um cacto que dava a
impressão de um sol como se fosse também uma flor e ao mesmo tempo um sol e
então quando viu o quadro o Oswald ficou assustadíssimo e perguntou: Mas o que
é isso? Que coisa extraordinária! Aí imediatamente telefonou para o Raul Bopp,
que estava aqui, e disse: Venha imediatamente aqui que é pra vocêver uma coisa!
Aí o Bopp foi lá no meu atelier, ali na rua Barão de Piracicaba, um solar muito
bonito que meu pai tinha comprado recentemente, o Bopp assustou-se também e o
Oswald disse: Isso é como uma coisa como se fosse um selvagem, uma coisa do
mato, e o Bopp foi da mesma opinião. Aí eu quis dar um nome selvagem também ao
quadro, porque eu tinha um dicionário de Montoia, um padre jesuíta que dava
tudo. Para dizer homem, por exemplo, na língua dos índios era Abá. Eu queria
dizer homem antropófago, folheei o dicionário todo e não encontrei, só nas
últimas páginas tinha uma porção de nomes e vi Puru e quando eu li dizia homem
que come carne humana, então achei, ah, como vai ficar bem, Aba-Puru. E ficou
com esse nome.
Veja -Então, a senhora foi a origem do movimento antropófago?
TARSILA - O Raul Bopp
achou que devíamos fazer um movimento em torno desse quadro, achou
esquisitíssimo, ele gostou muito e depois escreveu um livro interessantísimo
sobre o linguajar indígena do Amazonas. Todos começaram a dizer que o Oswald é
que tinha feito o Aba-Puru e criado o movimento antropofágico. Ele aceitou que
dissessem que era de autoria dele, achou interessante.
Veja - Daí ele passou a datar documentos a partir do ano em que os
índios tinham comido na Bahia aquele bispo, o bispo Sardinha?
TARSILA - É, e fizeram o
movimento da antropofagia e aí todas as quartas-feiras o Chateaubriand (com
pronúncia francesa) ofereceu uma página no jornal para o movimento. Então vinha
o Geraldo Ferraz, que era conhecido como o açougueiro, falar de arte, não é? Era,
sim, açougueiro porque antropofagia era comer carne, então ele é que contava e
distribuía entre os leitores. Mas aí, como havia muita irreverência com as
famílias que assinavam o Diário de São Paulo o Chateaubriand viu-se obrigado a
pedir que não continuassem porque estava perdendo todos os leitores.
Veja - O Aba-Puru com aquela figura deformada, monstruosa, parece coisa
de pesadelo.
TARSILA - Engraçado o
senhor falar nisto, eu gosto de inventar formas assim de coisas que eu nunca vi
na vida, mas não sabia por que que eu tinha feito o Aba-Puru daquela forma. Eu
me perguntava: Mas como é que eu fiz isto? Depois uma amiga que era casada com
o prefeito me dizia: Sempre que eu vejo Aba-Puru; me lembro de uns pesadelos
que eu tenho, e eu então liguei uma coisa a outra, disse que devia ser uma
lembrança psíquica ou qualquer coisa assim e me lembrei de quando nós éramos
crianças na fazenda. Naquele tempo tinha muita facilidade de empregadas,
aquelas pretas que trabalhavam para nós na fazenda, depois do jantar elas
reuniam a criançada para contar histórias de assombração, iam contando da
assombração que estava no forro da casa, eu tinha muito medo, a gente ficava
ouvindo, elas diziam: daqui a pouco da abertura vai cair um braço, vai cair uma
perna e nunca esperávamos cair a cabeça, abríamos a porta correndo e nem
queríamos saber de ver cair a assombração inteira. Quem sabe o Aba-Puru é um
reflexo disso?
Veja - Assim como o movimento antropofágico tinha relações com as
culturas primitivas, dos índios, da África, etc., o Fernand Léger, com a sua
temática de máquinas, fábricas, sociedade moderna, teve influência na sua
pintura também?
TARSILA - Eu gostava
muito da obra dele, fui muito amiga dele, mas não freqüentei o atelier do
Léger, eu era amiga da mulher dele também, depois até inventaram que ele tinha
desenhado brincos para mim, etc., imagine! Eu me inspirei em São Paulo mesmo,
na sociedade fabril e foi uma novidade naquele tempo, no Brasil, o que eu fiz.
E fui tão bem aceita, que o governo do Estado comprou a minha obra, sabe, um
quadro grande, está em Campos do Jordão, imitando em cima uma fábrica. Na época
de minha exposição no Rio tive um amigo pernambucano que me mandou todos os
recortes da crítica quando foi exposto lá o Aba-Puru inclusive. Havia invenções
incríveis, diziam que meu atelier era como o atelier do Renoir, cheio de nus e
não sei o que mais e que eu mandava espalhar pelo atelier inteiro divãs
cobertos de veludos roxos, cada uma! E me confundiam com a Anita Malfatti.
Naquela época, o senhor imagina, uma jornalista do Rio chegou a escrever que o
Oswald de Andrade nem chegara a se casar comigo! Falava de mim feito de um
monumento de São Paulo, vale a pena conhecer TARSILA em São Paulo, virei
atração turística, veja só! Quando meu casamento com o Oswald foi até um
casamento de luxo, o Washington Luís esteve presente! Falavam de mim, de meus
muitos amores!, até de lançadora de modas eu fui chamada. E claro, porque cada
vez que eu voltava da Europa eu trazia as novidades, não é mesmo? Eu estava uma
vez com um vestido lindíssimo, uma seda meio xadrez, com mangas bufantes e dois
laços de fita bem largos, azuis (dona Anette mostra uma edição da Ilustração
Brasileira e diz que foi em 1924) sabe? Foi o vestido que eu escolhi para o
vernissage de obras minhas num conjunto de muitas salas, na rua Barão de
Itapetininga, eu estava ali esperando os visitantes. Aí eu vi assim uma porção
mesmo de rapazes que vinham na minha direção, como eu estava na porta eu
perguntei: Os senhores querem entrar? Parecia que era o que eles queriam mesmo,
e eu os recebi com muita cordialidade, convidei, mal eu sabia o que eles
queriam fazer: todos vieram com giletes no bolso para arrasar com tudo o que eu
tinha feito! Mas acho que me estranharam de ver num vestido assim tão bonito e não
conseguiram o que pretendiam, não.
Veja - A senhora na sua infância morou em São Paulo ou no interior?
TARSILA - Quando eu era
pequena eu morava numa fazenda, meu pai adorava tudo que era fazenda, comprava
muitas terras, era um homem muito rico porque o pai dele também era conhecido
na genealogia paulista como José Estanislau do Amaral, o Milionário. Ele
começou a vida sem nada, fazendo óleo de mamona, tinha um ou dois escravos que
o ajudavam a fazer isso e depois foi vendendo, foi melhorando, comprou fazendas,
uma porção, vendia café em Santos também, onde ganhava muito com isso. Eu fui
criada no campo, acho que é por isso que sou tão forte ainda com a minha idade.
Na luta do braço (mostra o braço), até homem é difícil de me vencer, sabe?
Veja - E na sua pintura também está essa força da terra, do campo?
TARSILA - Exatamente.
Sabe? Eu era pequena na fazenda e via minha mãe com muitos santinhos de igreja,
já gostava de pintura, tanto que eu fazia as primeiras cópias mal feitas dos
santos. São Franciso Xavier eu fiz quando eu tinha uns quatro anos. Adorava
desenhar e viver rodeada de galinhas, de pintos e fazia um desenhozinho, de
tudo que era animal que eu via. Aí me fizeram presente de uma gatinha branca,
eu adorava gatos, chamava-se Falena, e ela arranjou muitos maridos e eu fiquei
com quarenta gatos que me rodeavam miando, lá na fazenda de Capivari. Mas eu
passava tempos também na fazenda de São Bernardo, que papai já tinha comprado
naquela época, era uma casa muito grande e bonita e até foi vendo as letras da
entrada da fazenda que eu fui aprendendo a ler. Sabe, eram letras quase do
tamanho deste armário aqui. Minha mãe me ensinava: Olhe, isto aqui é um B,
chama-se B esta letra, aqui é um A e eu me lembrava logo da forma das letras.
Eu nem senti que estava sendo alfabetizada antes de entrar para a escola. E
fazia também bonecas de mato: um mato que crescia com uns caules quadradinhos e
dava flor, eu pegava e fazia com aqueles matos uma espécie de escultura, eu
fazia braços e pernas e brincava com aquilo. Eu cresci nessa fazenda e como meu
pai soube que ali perto tinha se estabelecido uma família belga, eram nobres
Van Harenberg Val-mont, tinham uma filha de dezoito anos e, como eu tinha
outros irmãos pequenos, papai mandou perguntar se a moça podia vir nos ensinar
francês e ela veio mas não nos ensinou nada, mamãe é que ensinou portuguê para
ela. O francês eu aprendi porque papai queria os filhos muito educados, então
fomos para a Europa e nunca nenhum francês soube que eu não era francesa: me
diziam sempre que eu falava completamente sem accent étranger, sabe?
Veja - Em Paris a senhora estava em contato com Picasso, com
Apollinaire, com Breton?
TARSILA - Ah, estive, o
Cocteau também era nosso grande amigo, eu fazia muitos almoços brasileiros no
meu atelier em Paris, que o Paulo Prado descobriu que foi o atelier de Cézanne,
na rua Moreau, num bairro até não muito recomendável, mas era tão difícil ter
um atelier em Paris! Havia muitos artistas americanos, muitos estrangeiros e
era difícil achar. O meu era no quinto andar, tinha que subir tudo a pé, não
tinha banheiro, era meio primitivo, banho mesmo era só no bain publique. Quem
ia sempre era o Vila-Lobos e o Cocteau também freqüentava, diziam até que ele
era muito bom musicista. Vila-Lobos então improvisava num piano de cauda que
tinha lá no meu atelier, tocava uma coisa e o Cocteau dizia, fazendo careta de
tédio: Non, ça n'est pas quelque chose de neuff! (Não, isso não é nada de
novo!) Aí o Vila-Lobos tocava outra coisa e o Cocteau balançava a cabeça Não, isso
não é inédito, até que se sentou embaixo do piano alegando que era pour mieux
entendre (para ouvir melhor), mas nunca aprovando a música do Vila-Lobos, o
folclore brasileiro para ele era déjà entendu (já ouvido). O senhor pode
imaginar as brigas que se armavam, com o Vila-Lobos muito espalhafatoso, muito
exuberante... Era um clima, aliás, de constantes discussões, porque eram de
partidos literários, políticos, estéticos diferentes e dava aquelas confusões
eternas...
Veja - A senhora teve uma vida muito rica; quando foi que a senhora se
sentiu mais feliz?
TARSILA - Foi quando
justamente meu pai comprou um solar, que havia lá na rua Barão de Piracicaba,
porque minha mãe gostava de casa bem grande, era uma mansão mesmo e lá é que eu
dava festas, fazia jantares e tinha dois rapazinhos de quinze para dezesseis
anos e que eram garçons, eu trouxe uma adega excelente, que ninguém conhecia
igual em São Paulo, escolhida peça por peça por um sommelier franoh com o nome
de um artista conhecido, não me lembro agora, Maurice Chevalier? Não, ele se
chamava Charles Boyer, acho que era o nome de um artista do cinema, não era?
Veja - De onde a senhora tira tanta força para viver? Uma queda a
deixou presa na cama a maior parte do dia. Recentemente, perdeu a única filha.
Logo depois, morreu sua única neta, afogada. A senhora é religiosa?
TARSILA - Ih, sou, sim.
Sou muito devota do Menino Jesus de Praga, porque alcancei muitas graças com as
orações a ele. É uma novena milagrosa, eu sei tudo de cor: Oh Jesus que
dissestes: Pedi e recebereis, procurai e achareis, batei e a porta se abrirá,
quando eu li isso eu fiquei arrepiada, sabe? de imaginar assim aquela porta se
abrindo, se abrindo... Isso me inspirou um quadro de Jesus Menino com um
negrinho, que simboliza os humildes, também com japoneses e índios, eu dei de
presente para um padre que dirige um orfanato para crianças. Eu copiava
oleografias sacras...
Veja - O Portinari começou também copiando santos.
TARSILA - Ah, tive uma
desilusão com Portinari quando conheci um exegeta do cubismo em Paris e
freqüentei mais de seis meses esse grande professor e acho que o Portinari não
sabia fazer pintura cubista. Por exemplo: ele ia fazer o Tiradentes. Fez com
pincel e nanquim, desenhado, e depois colocou pedaços de papel e colou em cima
do desenho, isso nunca foi cubismo!
Veja - Além do sentimento religioso, há um tom de lembrança em sua pintura...
TARSILA - Um dos meus
quadros que fez muito sucesso quando eu o expus lá na Europa se chama A Negra.
Porque eu tenho reminiscências de ter conhecido uma daquelas antigas escravas,
quando eu era menina de cinco ou seis anos sabe? escravas que moravam lá na
nossa fazenda, e ela tinha os lábios caídos e os seios enormes, porque, me
contaram depois, naquele tempo as negras amarravam pedras nos seios para
ficarem compridos e elas jogarem para trás e amamentarem a criança presa nas
costas. Num quadro que pintei para o IV Centenário de São Paulo eu fiz uma
procissão com uma negra em último plano e uma igreja barroca, era uma lembrança
daquela negra da minha infância, eu acho. Eu invento tudo na minha pintura. E o
que eu vi ou senti, como um belo por-de-sol ou essa negra, eu estilizo.
Veja - A sua pintura, tão poética, é então uma evocação enternecedora
de uma infância feliz?
TARSILA - Acho que o
senhor não está longe de ter acertado.
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