Enviado por Luiz Nassif
Imaginem o seguinte:
O Ministério da Educação
faz uma pequena reforma curricular no ensino fundamental, médio e superior
introduzindo a disciplina Filosofia como uma das prioridades, pelo menos a
partir da 6ª série (A LDB –Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 9394/96
foi modificada em 02/06/2008 em seu artigo 36, pela Lei 11.684/2008 para incluir a Filosofia e a Sociologia como
disciplinas obrigatórias nos currículos de ensino médio).
Um conselho de filósofos
e educadores escolhe os livros de filosofia que os alunos estudarão. Por
exemplo: a 6ª série estudará Xenofonte Memorabilia/Recordações de Sócrates, o
1º ano do ensino médio estudará Kant/Fundamentos para uma Metafísica dos
Costumes, etc.
O governo mandará
imprimir os livros a serem distribuídos nas escolas de todo o Brasil, como já
faz com outros livros didáticos.
Formará, também, grupos
de filósofos nas capitais dos estados que treinarão os professores das escolas
do estado nos respectivos livros. Por exemplo, em determinada vila do Acre há
uma escola que precisa ministrar o livro de Xenofonte para os alunos da 6ª série.
Como lá não há nenhum graduado em filosofia, escolhe-se um outro professor que
fará um curso na capital com uma equipe de filósofos já treinados para treinar
professores. Um curso de quinze dias, por exemplo. E com essas informações ele
orientará os alunos daquela escola distante no livro de Xenofonte. Em relação à
filosofia isso é possível. Difícil mesmo vai ser quando o país quiser recuperar
o ensino de línguas clássicas (latim). Vai esbarrar na carência de professores,
especialmente nos lugares mais distantes. E para essa área não tem como dar uma
formação (quebra-galho) de quinze dias.
Uma vez estipulados os
livros que serão estudados pelos alunos da 6ª série ao 3º ano do ensino médio
(há espaço para uns dez, pelo menos), o governo determinará que haverá questões
no Vestibular e no ENEM sobre seu conteúdo. Melhor ainda se o tema da Redação
for sempre retirado desse conteúdo.
Um sistema semelhante
poderia ser instituído para o 3º grau, qualquer curso superior tendo também a
sua cota de livros de filosofia clássicos a serem estudados, modificando-se aí, talvez, a exigência do
nível dos professores, que deveriam ser graduados ou pós-graduados em
filosofia, sociologia, ciência política, história, etc.
Conseqüências disso? Em
poucos anos os temas filosóficos serão assunto recorrente nas conversas da
moçada (das conversas sérias às piadas), desde a cidade de São Paulo até à
cidade mais distante e minúscula do Amazonas. Mesmo que o interesse da maioria
seja apenas passar no vestibular/ENEM, ainda assim haverá efeitos benéficos,
saltos de qualidade na Paidéia.
O detalhe de serem
utilizados “livros” e não textos esparsos de filosofia é importante: os jovens
terão em mãos, por exemplo, livros de mais de dois mil anos atrás. Terão uma
referência de outros livros da antiguidade que não somente os já conhecidos
livros sagrados (interpretados com visão fundamentalista). Faz diferença pegar,
segurar um livro de Xenofonte ou Platão, ver a sua capa, lê-lo, aprender que
ele existe há dois mil e quatrocentos anos. Há um impacto que textos ou
excertos desses livros, impressos em folhas avulsas, não têm.
Os filósofos dizem que
Xenofonte é superficial... pode ser... Mas seu livrinho Apomnemoneumata, também
chamado de Memorabilia e nas traduções existentes em português geralmente
denominado Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, poderia servir muito bem para introduzir os
meninos da sexta série no mundo da filosofia. Nele Xenofonte se esforça para
provar aos leitores que Sócrates não merecia as acusações de desonrar os deuses
da cidade, introduzir novos deuses e perverter a juventude e vai contando
sucessivos episódios que testemunham as suas virtudes. Os filósofos dizem que o
livro não trata da filosofia de Sócrates, mas de seu autocontrole. Pode ser,
não entendo disso, mas se o livro trata da moral socrática que, por sua
autoridade de cidadão exemplar é elevada
a uma ética, como não poderia ser uma espécie de filosofia? Em todo caso, acho
que ninguém discorda disso, pode-se aprender muito mais com Sócrates em relação
à cidadania, respeito às leis da cidade, à conduta pessoal do que aprendemos
nas aulas de Educação Moral e Cívica e OSPB (todo mundo de nossa geração sabe o
que foi isso).
Só para ilustração e
degustação, insiro abaixo alguns trechos da Memorabilia, retirados da edição Os Pensadores, da Abril,
onde a tradutora reproduziu a tradução mais antiga de Líbero Rangel de Andrade,
mudando apenas as palavras anacrônicas, e este refere ter traduzido a partir da
versão francesa de Eugène Talbot.
Capítulo III do Livro I:
“No que se refere ao
amor, aconselhava a fugir resolutamente das pessoas belas. Não é fácil, dizia,
manter-se prudente em seu convívio. Havendo sabido, certa vez, que Critóbulo,
filho de Críton, roubara um beijo ao filho de Alcibíades, rapaz de rara
formosura, teve com Xenofonte, em presença de Critóbulo, esta entrevista:
- Dize-me, Xenofonte,
não consideravas Critóbulo jovem sábio antes que amoroso indiscreto, homem
prudente antes que insensato e temerário?
- Com certeza –
confirmou Xenofonte.
- Pois bem, considera-o
de agora em diante o mais impulsivo e arrojado dos homens, capaz de desafiar o
ferro e afrontar o fogo.
- Que o viste fazer –
perguntou Xenofonte -, para acusa-lo dessa forma?
- Pois não teve a
temeridade de roubar um beijo ao filho de Alcibíades, jovem de tamanha beleza e
vigor?
- Ora, isso é ato de
temerário! – retrucou Xenofonte – Creio que eu próprio poderia cometer
semelhante temeridade.
- Desgraçado! – exclamou Sócrates. – Imaginas o
que te sucederia se beijasses uma pessoa jovem e bela? Ignoras que de livre,
num instante te tornarias escravo? Que pagarias caro prazeres perigosos? Que já
não terias ânimo de investigar o que é o belo e o bem? Que haverias de dar
cabeçadas como um louco?
- Por Héracles! –
retrucou Xenofonte. – Que terrível poder atribuis a um beijo!
- Admira-te? – indagou
Sócrates. – Não sabes que as tarântulas, que não são maiores do que uma moeda
de meio óbulo, com o simples tocar os lábios causam ao homem dores tremendas e
o privam da razão?
- Por Zeus! Bem o sei –
replicou Xenofonte -, mas é que, ao picar a carne as tarântulas injetam-lhe um
não sei o quê.
- Insensato! – bradou
Sócrates. – Não desconfias existir no beijo de uma pessoa jovem e bela algo que
teus olhos não vêem? Ignoras que esses monstro que se chama uma pessoa graciosa
e formosa é tanto mais temível que a tarântula, enquanto esta fere tocando, ao
passo que a outra, sem tocar, mas apenas pelo aspecto, lança à distância um não
sei o quê que provoca delírio? Talvez até seja porque os jovens belos firam de
longe que se dá o nome de archeiros aos amores. Aconselho-te, pois, Xenofonte,
que quando vires uma pessoa bela, fujas, sem sequer te voltares. E a ti
Critóbulo, receito-te viajar um ano inteiro: todo este tempo mal dará para
curar tua picada.
Era pois de parecer, no
amor, que aqueles que não pudessem reprimir seu ardor o mitigassem como a tudo
a que o que espírito só atende em caso de imperiosa necessidade do corpo,
necessidade cuja satisfação não deve, contudo, impor à alma o menor
constrangimento. Quanto a ele, estava tão bem preparado contra semelhantes
delírios, que se afastava das pessoas jovens e belas com mais facilidade que
outros das pessoas feias e disformes.”
Capítulo VI do Livro I:
“Em outra oportunidade,
perguntando-lhe Antifão por que motivo, se se vangloriava de tornar os outros
hábeis na política, não se ocupava ele próprio desta ciência, que pretendia
conhecer:
- Que será preferível,
Antifão – respondeu Sócrates -, dedicar-me apenas à política ou consagrar-me a
tornar grande número de indivíduos capazes de a ela se aplicarem?”
Não seria maravilhoso
ter a meninada de norte a sul lendo esse tipo de coisa, e comentando,
discutindo, reproduzindo?
Testemunhamos no país as
dificuldades para mudanças estruturais significativas e necessárias, em face
dos muros levantados pelo establishment. A democratização da mídia, a reforma
política recentemente malograda, a reforma agrária, a reforma do judiciário,
enfrentam oposição poderosa. Uma reforma estrutural de caráter “gramsciano”
como essa poderia não ser uma solução para os desatinos que nos afetam, mas
certamente ajudaria a captar mais corações e mentes para o lado de cá, em face
dos meios poderosíssimos que captam corações e mentes para o lado de lá, e
poderia ajudar a tornar menos estarrecido o angelus novus.
Não sou a pessoa
indicada para elaborar essa idéia, afinal não sou da área, portanto corro o
risco de estar dando palpite num campo em que já podem estar atuantes muitos
estudiosos competentes, da área de educação e da filosofia, com planos mais factíveis e efetivos. Porém tenho
pesquisado nos blogs, jornais, Google, sites oficiais, e não consigo encontrar
pessoas ou grupos trabalhando sobre o assunto, por isso resolvi expô-la aqui,
na esperança de ouvir de pessoas melhor informadas que eu, acerca de projetos
semelhantes já em discussão ou andamento no Ministério da Educação ou outra
esfera pública, ou se não os há, gostaria de encontrar pessoas dispostas a
aperfeiçoar essa idéia e disseminá-la, quem sabe um dia não chega até os
círculos democráticos de poder e ela não é colocada em prática?
Fragmentos para reflexão
Se a ditadura instituiu
as disciplinas Educação Moral e Cívica e OSPB, a resposta mais coerente de um
governo democrático é reinstituir a filosofia, com força e abrangência.
A LDB –Lei de Diretrizes
e Bases da Educação, Lei 9394/96 foi modificada em 02/06/2008 em seu artigo 36,
pela Lei 11.684/2008 para incluir a
Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos de ensino
médio. Recentemente, a Lei 12.796/2013 fez novas mudanças na LDB, o que indica
não ser difícil realizar mudanças nessa lei, se há vontade política.
Estudar as nervuras das
folhas, o modo como as bactérias ou pequenos animais se alimentam e excretam,
reações químicas complicadas (especialmente quando dissociada da prática) para
quem não pretende ser um especialista do assunto não faz muito sentido. É mais
útil ocupar esse tempo no currículo com o estudo da filosofia que é útil para
todos e para a melhora da vida comunitária e das relações políticas.
Vale a pena repetir: Um
ponto fundamental é a adoção de livros e não de textos dispersos.
Vale a pena repetir:
Outro ponto fundamental é a inclusão da disciplina filosofia nas provas de
vestibular e ENEM e a exigência de obrigatoriedade do tema da redação ser
retirado dos livros filosóficos adotados.
Diante da treva cerrada
e disseminada ser otimista demais não é saudável. Ficar travado também não.
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