Por Fábio Konder
Audiência pública na
Câmara discutiu projeto de Luiza Erundina (PSB-SP) que exclui crimes de agentes
públicos da lista de anistiados.
Nesta quinta-feira 9,
uma audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da
Câmara debateu o projeto de lei 573/11, da deputada Luiza Erundina (PSB-SP),
que exclui do rol de crimes anistiados após a ditadura (1964-1985) aqueles
cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, efetiva
ou supostamente, praticaram crimes políticos. Segundo a proposta, esses atos
não estão incluídos entre os crimes conexos definidos na Lei da Anistia, de
1979.
A proposta de Erundina
foi rejeitada pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional e, na CCJ,
tem parecer contrário do relator, deputado Luiz Pitimann (PMDB-DF). Confira
abaixo o discurso do jurista Fábio Konder Comparato, um dos debatedores:
1.– O Projeto de Lei nº
573, de 2011, apresentado pela eminente Deputada Luiza Erundina, objetiva “dar
interpretação autêntica ao disposto no art. 1º, § 1º da Lei nº 6.683, de 28 de
agosto de 1979”. Segundo esse dispositivo, são declarados conexos com os crimes
políticos, objeto da anistia concedida pela lei, “os crimes de qualquer
natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
De acordo com os termos
do art. 1º do citado Projeto de Lei, “não se incluem entre os crimes conexos,
definidos no art. 1º, § 1º da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, os crimes
cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo
efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos”.
2.– A razão dessa
propositura legislativa é dar efetivo cumprimento à Sentença condenatória do
Estado Brasileiro, proferida por unanimidade em 24 de novembro de 2010 pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos, no
caso Gomes Lund e outros v. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”), como
segue:
“As disposições da Lei
de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações
de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de
efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a
investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos
responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de
outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção
Americana ocorridos no Brasil.”
3.– Por que razão deve o
Brasil cumprir integralmente tal decisão?
Comecemos por lembrar
que o princípio fundamental do Estado de Direito impõe a todas as potências
soberanas o respeito absoluto à jurisdição dos tribunais internacionais, quando
essa jurisdição foi por elas oficialmente reconhecida. No contexto do direito
internacional, prevalece em qualquer hipótese o princípio pacta sunt servanda,
sendo inadmissível que um Estado invoque a sua soberania para rejeitar a
aplicação de tratados ou convenções que haja aceito.
O Brasil aderiu à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos e reconheceu como obrigatória, nos
termos do disposto em seu art. 62, a jurisdição da citada Corte. O art. 68 da
Convenção dispõe que os Estados signatários “comprometem-se a cumprir a decisão
da Corte em todo caso em que forem partes”.
4.– Contrariamente a
essa conclusão inescapável, o Exmo. Sr. Relator do Projeto de Lei nº 573, de
2011, na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional desta Câmara,
afirmou que o Estado Brasileiro não tem o dever de cumprir a decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, “em razão da supremacia da Constituição a
qualquer acordo internacional que a integre, idealmente, quando algum de seus
dispositivos afronte os princípios mesmo (sic) que informam a Constituição”.
Tal assertiva, lamento
dizê-lo, constitui um despautério jurídico.
Antes de mais nada, Sua
Excelência referiu-se a acordos internacionais que integrem “idealmente” a
Constituição da República. Não se sabe ao certo o que significa esse advérbio,
qualificador da integração de um tratado ao sistema constitucional brasileiro.
Os tratados internacionais integram ou não integram a ordem constitucional
brasileira; não há meio termo.
Para recusar a execução
da sentença condenatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Sua
Excelência invocou princípios constitucionais.
Pois bem, se lançarmos
os olhos para o Título I da Constituição Federal de 1988, consagrado justamente
aos Princípios Fundamentais, encontraremos desde logo as seguintes disposições.
No art. 1º, inciso III,
a Carta Magna declara, textualmente, que o Estado Brasileiro tem como um dos
seus fundamentos “a dignidade da pessoa humana”. Pergunta-se: – É logicamente
concebível que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos afronte esse
princípio constitucional?
Por outro lado, no art.
4º, II, a Constituição Federal dispõe que “a República Federativa do Brasil
rege-se nas suas relações internacionais” pelo princípio da “prevalência dos
direitos humanos”. É o caso de indagar: – Ao aderir à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos e aceitar a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, o Estado Brasileiro infringiu, porventura, o princípio da
prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais?
Finalmente, ao afirmar
que há supremacia de nossa Constituição sobre “qualquer acordo internacional
que a integre, idealmente”, o Sr. Relator do presente Projeto de Lei, na
Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, esqueceu-se, ao que
parece, do disposto no art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, segundo o qual
“os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Será
preciso reafirmar que o Brasil, por decisão deste Colendo Congresso Nacional,
aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos, integrando-a, portanto, ao
sistema constitucional pátrio?
5.– E quais as razões
pelas quais a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou inválida a lei de
anistia de 1979, tal como interpretada pelo Supremo Tribunal Federal?
Duas foram essas razões.
A primeira delas é que a
Lei nº 6.683, tal como interpretada pelo Supremo Tribunal Federal, beneficiou
agentes públicos e os empresários seus cúmplices, responsáveis pelo cometimento
sistemático de graves violações de direitos humanos, tais como a execução
sumária de oponentes políticos, com ou sem a mutilação dos cadáveres, o estupro
e a tortura de presos, frequentemente seguida de morte. Especialmente em São
Paulo, a organização de tais atos criminosos contou com o financiamento de
grandes banqueiros e empresários, notadamente no concernente à montagem da
chamada Operação Bandeirante (OBAN), precursora do DOI-CODI.
Segundo a Comissão de
Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça, comprovaram-se
oficialmente até hoje 361 casos de assassínios e desaparecimentos, com
ocultação ou destruição do cadáver, durante o regime militar; mas outros casos
estão sendo investigados. Por sua vez, a Secretaria Especial de Direitos Humanos
do Ministério da Justiça, na publicação Direito à Memória e à Verdade, afirmou
que tivemos 475 mortos e desaparecidos durante regime militar. Calcula-se que
50.000 pessoas foram presas, sendo a maior parte delas torturadas, algumas até
a morte. O governo militar chegou mesmo a aparelhar, em Petrópolis, uma casa
onde pelo menos 19 pessoas foram executadas, sendo seus corpos incinerados a
fim de não deixar vestígios.
Em momento algum de
nossa vida de país independente, os governantes, quer no Império quer na
República, chegaram a cometer tão repugnantes atrocidades.
Ora, tais fatos, quando
praticados sistematicamente por agentes estatais contra oponentes políticos,
são qualificados no direito das gentes, desde o término da Segunda Guerra
Mundial, como crimes contra a humanidade; o que significa que o legislador
nacional é incompetente para determinar, em relação a eles, quer a anistia,
quer a prescrição.
Em duas Resoluções
formuladas em 1946, a Assembléia Geral das Nações Unidas considerou que a
conceituação tipológica dos crimes contra a humanidade representa um princípio
de direito internacional.
Essa mesma qualificação
foi dada pela Corte Internacional de Justiça às disposições da Declaração
Universal dos Direitos do Homem de 1948, cujos artigos III e V estatuem que
“todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, e que
“ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano
ou degradante.”
O Estatuto do Tribunal
Penal Internacional de 1998, por sua vez, definiu, em seu art. 7º, dez tipos de
crimes contra a humanidade, e acrescentou ao elenco uma modalidade genérica:
"outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente
grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física
ou mental".
Desse conjunto normativo
decorre a definição de crime contra a humanidade como o ato delituoso em que à
vítima é negada a condição de ser humano.
Ora, os princípios, como
assinalado pela doutrina contemporânea, situam-se no mais elevado grau do
sistema normativo. Eles podem, por isso mesmo, deixar de ser expressos em
textos de direito positivo, como as Constituições, as leis ou os tratados
internacionais. Quem ignora, afinal, que o primeiro princípio historicamente
afirmado do direito constitucional, a saber, a competência do Judiciário para
declarar a inconstitucionalidade de leis e outros atos normativos, foi
consagrado pela Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Marbury v. Madison
(1803), não obstante o completo silêncio a esse respeito da Constituição
norte-americana?
6.– A segunda razão pela
qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou inválida a lei de
anistia de 1976, tal como interpretada
pelo Supremo Tribunal Federal, é que tal lei representou uma auto-anistia; vale
dizer, os principais responsáveis pelo cometimento dos citados crimes lograram,
antes de se afastarem do poder, proclamar-se imunes a toda persecução penal.
Pois bem, no julgamento
da ADPF nº 153 no Supremo Tribunal Federal, o Ministro relator e outro Ministro
que o acompanhou afirmaram que a Lei nº 6.683, de 1979, não poderia ser
concebida como uma auto-anistia, mas sim como uma anistia bilateral entre
governantes e governados. Ou seja, segundo essa original exegese, torturadores
e torturados, reunidos em uma espécie de contrato particular de intercâmbio de
prestações, teriam resolvido anistiar-se reciprocamente... Essas surpreendentes
declarações de voto foram reforçadas pela tese de que a lei de anistia de 1979
representou um “acordo histórico”.
Frise-se, desde logo, a
repulsiva imoralidade de um pacto dessa natureza, se é que ele realmente
existiu: o respeito mais elementar à dignidade humana impede que a impunidade
dos autores de crimes hediondos ou contra a humanidade seja objeto de
negociação pelos próprios interessados.
Na verdade, o propalado
"acordo de anistia” dos crimes contra a humanidade praticados pelos
agentes da repressão não passou de uma reles conciliação oligárquica, na linha
de nossa mais longeva tradição. Qualquer pacto ou acordo supõe a existência de
partes legitimadas a conclui-lo. Se havia à época, de um lado, chefes militares
detentores do poder supremo, quem estaria do outro lado? Porventura, as vítimas
ainda vivas e os familiares de mortos pela repressão militar foram chamados a
negociar esse acordo? O povo brasileiro, como titular da soberania nacional,
foi convocado a referendá-lo?
O mais escandaloso de
toda essa tese do acordo político é que, após a promulgação da Lei nº 6.683, em
28 de agosto de 1979, certos agentes militares continuaram a desenvolver
impunemente sua atividade terrorista. Em 1980, registraram-se no país 23 (vinte
e três) atentados a bomba, entre os quais o que vitimou, na sede do Conselho
Federal da OAB, a secretária da presidência, Dª Lyda Monteiro da Silva. Em
1981, houve mais 10 (dez) atentados, notadamente o do Riocentro, cujos
responsáveis, ambos oficiais do Exército, foram considerados, no inquérito
policial militar aberto em consequência, vítimas e não autores! Pois bem, para
escândalo geral tal inquérito foi arquivado pela Justiça Militar com fundamento
na própria Lei nº 6.683, cujo art. 1º fixou, como encerramento do lapso
temporal da anistia, a data de 15 de agosto de 1979.
É deplorável constatar
que o nosso país é o único na América Latina a continuar sustentando a validade
dessa auto-anistia. Na Argentina, no Chile, no Uruguai, no Peru, na Colômbia e
recentemente na Guatemala, o Poder Judiciário decidiu pela sua flagrante
inconstitucionalidade.
7.– Repita-se: pelo
disposto no art. 68, primeira alínea, da Convenção Americana de Direitos
Humanos, o Brasil tem o dever de dar integral cumprimento à sentença
condenatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e
outros v. Brasil (Guerrilha do Araguaia). Se não o fizer, o nosso país terá
denunciado informalmente a Convenção Americana de Direitos Humanos,
colocando-se como um país fora da lei no plano internacional.
Eis porque a eminente
Deputada Luiza Erundina apresentou a esta Câmara este Projeto de Lei nº 573, de
2011.
Objeto da propositura
legislativa, como já frisado, não é a revogação, total ou parcial, da Lei nº
6.683, de 1979, mas sim a declaração, pelo próprio Poder Legislativo, do
sentido autêntico do disposto no art. 1º, § 1º daquele diploma legal,
concernente à expressão “crimes conexos”.
Acoplada à de
"crimes políticos", tal expressão não podia aplicar-se aos delitos
comuns praticados por agentes públicos e seus cúmplices, contra os opositores
ao regime militar. E isto, pela boa e simples razão, unanimemente proclamada
pela doutrina penal, tanto aqui quanto alhures, de que a conexão criminal
pressupõe uma comunhão de objetivos ou propósitos entre os autores das diversas
práticas delituosas. Ora, ninguém em sã consciência pode sustentar que os
agentes militares e civis do regime político então vigente atuassem em harmonia
política com os que foram por eles assassinados ou torturados.
Em outras palavras, a
conexão criminal supõe a existência de um delito principal e de um ou mais
delitos secundários, vinculados àquele. No caso, como dispõe a Lei nº 6.683,
delito principal objeto da anistia é o crime político, praticado de modo
efetivo ou presumido por oponentes ao regime militar. Por acaso, é cabível
sustentar que os agentes públicos defensores desse regime, ao praticarem atos
da maior violência contra os chamados subversivos, cometeram, assim como estes,
crimes políticos, e não crimes comuns?
No entanto, haverá
talvez quem sustente, à míngua de melhor argumento, ter havido conexão delitiva
no sentido do disposto no art. 76, I in fine do Código de Processo Penal. Ora,
tal norma não é de direito material, mas de simples competência. Ao determinar
sejam processados e julgados no mesmo juízo criminal os crimes praticados por
várias pessoas, umas contra as outras, ela é obviamente inaplicável naquele
contexto histórico, pois os autores de crimes políticos atuaram contra a ordem
política então vigente, e não de modo pessoal contra os agentes públicos que
vieram a torturá-los e mata-los.
8.– Sustentam, no
entanto, os Srs. Relatores do Projeto de Lei nº 573, de 2011, tanto nesta douta
Comissão, quanto na de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, que, a se
reconhecer a inaplicabilidade da lei de anistia aos crimes praticados pelos
agentes públicos contra oponentes ao regime militar, estaríamos fazendo
reatroagir a lei penal, com violação do princípio fundamental do nullum crimen
sine praevia lege, inscrito no art. 5º, XL da Constituição Federal.
A fim de reforçar essa
tese, o Sr. Relator do projeto de lei na Comissão de Relações Exteriores e de
Defesa Nacional invocou o argumento apresentado pelo Ministro Relator da ação
de descumprimento de preceito fundamental nº 153, no Supremo Tribunal Federal,
segundo o qual a Lei nº 6.683, de 1979, seria uma “lei-provimento” ou
“lei-medida” (tradução da expressão alemã Massnahmegesetz), cujos efeitos são
imediatos e irreversíveis.
Vejamos.
Há muito a ciência jurídica
estabeleceu a distinção entre lei e provimento administrativo
(Verwaltungsmassnahme, na terminologia alemã); a primeira geral e abstrata, o
segundo concreto e específico. Com base nessa distinção tradicional, passou-se
a denominar Massnahmegesetze as normas com forma de lei, mas de conteúdo
idêntico ao de provimentos administrativos. Por exemplo, a lei que determina a
construção de uma barragem, ou que fixa um termo final para os trabalhos de
modernização de ferrovias.
Mas quem não percebe a
flagrante contradição de considerar uma
lei de anistia criminal, qualificada por alguns de “acordo histórico”, como
simples provimento administrativo, destinado a resolver questões de ordem
meramente factual? Alguém porventura ignora que, se a lei de anistia teve
efeitos imediatos e irreversíveis, ela não pode aplicar-se a crimes continuados
(como o de ocultação de cadáver)?
Na verdade, a afirmação
de ambos os citados Relatores, de que o projeto de lei em exame configura uma
violação do princípio da anterioridade da lei penal na definição de crimes, é
despida de todo fundamento, pois ela parte de um pressuposto evidentemente
errôneo. O dispositivo constitucional invocado, como ninguém ignora, pressupõe
a existência de duas normas penais válidas e eficazes a se sucederem no tempo,
uma revogando ou alterando a outra. Ora, o Projeto de Lei nº 573, de 2011, como
expressamente dito e acentuado, não tem por objetivo revogar ou alterar a lei
de anistia de 1979, mas sim dar-lhe uma interpretação que a torne válida e não nula,
como decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ou seja, o mesmo Poder
que editou a norma vem, em seguida, a explicitar-lhe o verdadeiro sentido.
Estamos, portanto, perante um só e mesmo diploma legal.
Aliás, a aceitar-se o
argumento de que haveria no caso a retroatividade de uma lei penal, todas as
decisões judiciais declaratórias de nulidade de uma norma de lei somente teriam
efeito a partir do seu trânsito em julgado; o que representaria aberta
contradição com o fato de uma norma legal julgada nula ser ineficaz desde a sua
origem. Ora – reitere-se – a disposição do art. 1º, § 1º da lei de anistia de
1979, tal como interpretada pelo Supremo Tribunal Federal, foi declarada
radicalmente nula pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
9.– Criticando ainda o
Projeto de Lei em exame, os Srs. Relatores, nesta Comissão e na de Relações
Exteriores e de Defesa Nacional, argúem que inexistia no direito pátrio, à
época da promulgação da lei de anistia, não só o crime de tortura, como
tampouco o crime de desaparecimento forçado.
Em relação à tortura, o
que se ignora, ao assim argumentar, é que o art. 350, III do Código Penal,
promulgado em 1940, define como exercício arbitrário ou abuso de poder o ato de
um funcionário “submeter pessoa que está sob sua guarda ou custódia a vexame ou
a constrangimento não autorizado em lei”.
Tal crime consta,
também, com a mesma definição do Código Penal, da Lei nº 4.898, de 9 de
dezembro de 1965 (promulgada, portanto, durante o regime militar, e ainda em
vigor!), em seu art. 4º, alínea b. Pergunta-se: – Por acaso, o agente público
denunciado pela prática de atos dessa natureza escaparia da condenação penal,
alegando que na definição do delito não consta a palavra tortura?
O mesmo se diga no
tocante ao desaparecimento forçado. Sem dúvida, não havia tal crime em nosso
ordenamento jurídico à época do regime castrense, e ele continua a inexistir
até hoje, malgrado a injunção imposta ao nosso país pela citada sentença da
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mas quem ignora que o art. 148 do
Código Penal, em vigor desde 1940, define como crime de seqüestro, o ato de
“privar alguém de sua liberdade”; assim como o art. 211 do mesmo Código
tipifica o crime de destruição, subtração ou ocultação de cadáver?
10.– Finalmente, outro
argumento, apresentado pelo Exmo. Sr. Relator do Projeto de Lei em exame nesta
Comissão, é de que o crime de tortura está sujeito à prescrição penal.
Lamento assinalar uma
flagrante contradição nas razões assim expendidas pelo ilustre Relator em seu
Parecer. Se de um lado Sua Excelência lembra que o crime de tortura não existia
à época do regime militar, por outro lado afirma que tal crime é sujeito à
prescrição. Afinal, ou há uma coisa, ou outra; não é possível sustentar ambas
ao mesmo tempo.
Examinemos, no entanto,
em si mesmo o argumento da prescrição do crime de tortura.
Observo,
preliminarmente, que ao fazer tal afirmação Sua Excelência parece aceitar, a
contrario sensu, a tese de que os demais crimes nefandos, praticados à época
pelos agentes militares e policiais contra oponentes políticos, não são
sujeitos à prescrição.
Em 26 de novembro de
1968, a Assembléia Geral das Nações Unidas, pela Resolução nº 2.391 (XXIII),
aprovou o texto de uma Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de
guerra e dos crimes contra a humanidade, ainda que tais delitos não sejam
tipificados pelas leis internas dos Estados onde foram perpetrados.
Foi por essa e outras
razões, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu, em sua citada
sentença condenatória do Brasil, serem “inadmissíveis as disposições de
anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de
responsabilidade, as quais pretendam impedir a investigação e punição dos
responsáveis por graves violações dos direitos humanos”.
De qualquer maneira, não
posso deixar de frisar que tal argumento do ilustre Relator é despiciendo no
caso. A prescrição, quer no campo cível quer no criminal, constitui matéria a
ser decidida, caso a caso, não pelo Poder Legislativo, mas exclusivamente pelo
Judiciário.
11.– Concluo, declarando
que estamos a vivenciar agora, uma vez mais, um episódio histórico revelador da
duplicidade de comportamento de nossos grupos dominantes, em matéria de
direitos humanos. No teatro político, os componentes de nossa oligarquia sempre
fazem questão de representar perante a platéia, sobretudo internacional, o
papel de personagens respeitadores dos direitos humanos. Nos bastidores, porém,
mal escondem a sua brutalidade selvagem, pisoteando tais direitos, quando
contrários aos seus interesses pessoais.
Lembro, a esse respeito,
que no início de nossa vida de país independente fomos pressionados pela
Inglaterra para abolir o tráfico de escravos africanos. Como então dependíamos
comercialmente daquela potência internacional, celebramos com ela um tratado
com esse objetivo, o qual exigia que promulgássemos uma lei nacional proibidora
do tráfico infame. Tal lei foi promulgada em 7 de novembro de 1831, declarando
livres “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil,
vindos de fora”; ao mesmo tempo em submetia a processo penal, não só o armador,
como o comandante e os membros da tripulação do navio, além dos seus
financiadores e auxiliares em terra, bem como de todos os compradores de
africanos doravante contrabandeados em território brasileiro.
Pois bem, como se
tratava simplesmente de uma lei “para inglês ver”, até a efetiva abolição do
tráfico negreiro, em 1850, ingressaram no Brasil nada menos do que 750.000
escravos africanos, sem que ninguém, absolutamente, fosse submetido a processo
penal.
Repetimos agora,
vergonhosamente, o mesmo jogo duplo com respeito à Convenção Americana de
Direitos Humanos, da qual nosso país é Estado-Parte. Como se está a ver, ela só
vigora para a plateia externa, segundo o protocolo diplomático. Aqui dentro,
sua aplicação é suspensa, toda vez que ela entra em choque com os interesses
dos grupos do poder oligárquico, como é o caso do cumprimento da sentença
proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund e
outros v. Brasil, a respeito da interpretação a ser dada à lei de anistia de
1979.
É inconcebível que os
dignos representantes do povo brasileiro aceitem oficialmente esse desonroso
jogo duplo, de parte das nossas mal chamadas elites.
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