Por Charles Leonel Bakalarczyk
O Caso Ford: um
desagravo a Olívio Dutra: “A Ford não estava sequer cumprindo o acordo que
havia feito com o governo anterior”
Ainda cabe recurso, é
certo, mas a decisão da juíza Lilian Cristiane Siman, da 5ª Vara da Fazenda
Pública do Foro Central de Porto Alegre, condenando a Ford a ressarcir o Rio
Grande do Sul em mais de R$ 160 milhões por ter recebido recursos públicos e
desistido de instalar uma filial em Guaíba, repercute intensamente desde
terça-feira à noite nas redes sociais, tomando a forma, entre outras coisas, de
um desagravo ao ex-governador Olívio Dutra (PT). Como se sabe, o governo Olívio
Dutra comeu o pão que o diabo amassou por ter ousado questionar os termos do
contrato firmado pelo governo Antônio Britto (PMDB) com a montadora.
A Ford acabou trocando o
Rio Grande do Sul pela Bahia em um processo que envolveu, entre outras
decisões, a edição de uma Medida Provisória pelo governo Fernando Henrique
Cardoso estabelecendo vantagens muito maiores para a empresa se instalar em
Camaçari. Na época e nos anos seguintes, Olívio Dutra qualificou o episódio
como um desrespeito ao pacto federativo. “Uma unidade da Federação, com um
governo eleito, com um programa, buscou sentar com uma empresa do porte da Ford
para tentar renegociar um acordo com um custo menor para o Estado. A União se
atravessou no caminho, se sobrepondo a essa negociação, possibilitando que a
Ford saísse da mesa”, disse o ex-chefe do Executivo gaúcho em uma entrevista
concedida à Carta Maior em 2006.
“O acordo era uma
insanidade”
“Quando assumimos o
governo”, relatou ainda Olívio, “vimos que a Ford não estava sequer cumprindo o
acordo que havia feito com o governo anterior”. Havia um acordo de 30
cláusulas, sendo que 29 eram de responsabilidade do Estado e uma era da
responsabilidade da Ford. “Pois nem esse acordo a empresa estava cumprindo. Era
um acordo que estava fora da realidade do Rio Grande então, que não tinha
dinheiro para pagar os seus funcionários e tinha que repassar uma soma volumosa
para aquela multinacional poderosa. A Ford tinha na época um faturamento de 382
bilhões de reais. O PIB do Rio Grande na época era de 92 bilhões de reais. A
arrecadação do Rio Grande na época era de 8,5 bilhões de reais. Como é que um
Estado que tem essa estrutura de carência pode estar repassando recursos
volumosos para a Ford, que tem esse faturamento de 382 bilhões. Era uma
insanidade”, definiu o ex-governador.
O governo gaúcho iniciou
então uma negociação direta com a Ford. “Estávamos em plena negociação com a
empresa quando se atravessou o governo federal de então, instigado por
parlamentares e bancadas aqui do Rio Grande e da Câmara Federal, para impedir
que nós prosseguíssemos com a negociação, que estava andando”, relata Olívio.
Mas o estrago político
estava feito. O ex-secretário de Desenvolvimento, Zeca Moraes, já falecido, foi
outro a ser crucificado em praça pública por discursos raivosos no parlamento e
na mídia, que repetiam incansavelmente críticas e xingamento aos “inimigos do
progresso”. Os veículos da RBS, em especial, passaram anos a fio, construindo
uma narrativa que transformava a empresa e o desenvolvimento do Rio Grande do
Sul em vítima de um “governo sectário e estreito”. O governo Olívio havia
“mandado a Ford embora”. Era isso que importava. E a expressão virou bordão de
muitas e muitas campanhas eleitorais.
A operação para levar a
Ford para a Bahia
A operação para levar a
Ford para a Bahia foi pesada. Somente do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), a empresa recebeu R$ 691 milhões. O empresário
Antônio Ermírio de Moraes disse, em julho de 1999, que “não teria coragem de
pedir tantos incentivos porque seria imoral da minha parte”. “A Ford é uma
empresa suficientemente rica e não precisa do dinheiro do contribuinte
brasileiro para montar fábricas. Não tenho nada contra. A Ford é bem-vinda, mas
que traga o seu dinheirinho”, acrescentou, na época, o empresário.
No dia 29 de junho de
1999, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei de conversão a
MP 1740, prorrogando, ate 31 de dezembro daquele ano, incentivos fiscais para a
instalação de montadoras no país. A decisão beneficiou diretamente a Ford, que
decidiu levar para a Bahia a montadora que seria instalada inicialmente no Rio
Grande do Sul. A Medida Provisória, que estava na 32ª edição, previa apenas a
prorrogação de incentivos fiscais para o Nordeste e a Amazônia. Porém, o
projeto de lei de conversão apresentado pelo deputado federal Jose Carlos
Aleluia (PFL/BA), incluiu a extensão dos benefícios a montadoras, que haviam
expirado em maio de 1997.
Conforme reportagem
publicada no jornal O Globo (10/07/1999), o
Palácio do Planalto teve influência direta na decisão da Ford ir para a Bahia.
O texto da Medida Provisória 1.740/32,
que concedeu incentivos para a instalação da montadora, foi escrito no Gabinete
da Casa Civil do Palácio do Planalto, depois de negociações que envolveram o
então ministro Clóvis Carvalho, técnicos da área econômica, o então secretário
da Indústria e Comércio da Bahia, Benito Gama, e os deputados baianos José Carlos
Aleluia (PFL) e Manoel Castro (PFL). A reunião ocorreu no dia 29 de junho de
1999, mesmo dia da aprovação da MP.
“É uma aberração”,
protestou Mário Covas
O PT e os demais
partidos de oposição ao governo Fernando Henrique Cardoso votaram contra o projeto
por entender que ele constituía destinação indevida de recursos públicos para o
setor privado. O então governador paulista Mario Covas (PSDB) considerou uma
“aberração” a concessão de benefícios para a instalação da fabrica da Ford na
Bahia. Em entrevista ao jornal Estado de São Paulo (10/07/1999), Covas disse
que “com a instalação, a Bahia produziria automóveis com um custo muito mais
barato do que em outros Estados”. “A concessão pode acabar prejudicando todo o
pais, alem de ser ruim também para os outros Estados: seria uma concorrência
predatória absolutamente descabida”, acrescentou Covas.
O Estadão, em um
editorial intitulado “Bom para a Bahia, ruim para o Brasil” (03/07/2000),
também criticou a alteração do regime automotivo que possibilitou a ida da
empresa para a Bahia. O prazo estava esgotado desde 31 de maio de 1997 e o
governo federal tinha se comprometido com o Mercosul e a Organização Mundial do
Comércio (OMC) a não reabri-lo.
O editorial aponta os
incentivos que seriam concedidos à montadora caso a alteração do regime
automotivo fosse aprovada, como de fato foi: isenção do imposto de importação
para máquinas e equipamentos, redução de 90% para matérias-primas, peças e
componentes e redução de até 50% para importação de veículos; isenção do IPI na
compra de máquinas e equipamentos e redução de 45% na compra de
matérias-primas; isenção do adicional de frete da Marinha Mercante; isenção do
IOF nas operações de câmbio para importação; e isenção do imposto de renda
sobre o lucro do empreendimento. Os benefícios oferecidos pelo governo da Bahia
eram bem menores, envolvendo isenções de ICMS e empréstimos diretos e
indiretos. Diante desse quadro, o editorial do Estadão concluiu: “Se o projeto
não for vetado, os empregos e as receitas ficarão na Bahia, mas a conta irá
para todos os brasileiros”.
Tudo isso foi noticiado
muito discretamente na época aqui no Rio Grande do Sul, ou simplesmente
omitido. Mesmo que a decisão final ainda vá levar alguns anos, a sentença dessa
semana serve ao menos para lembrar de um governo que ousou questionar a
voracidade de uma grande empresa multinacional sobre os recursos públicos do
Estado.
Comentários
Postar um comentário