Por Luiz Flávio Gomes*
Recentemente defendi
que, do ponto de vista do Estado de Direito vigente, os réus do mensalão
poderiam, sim, apresentar reclamações junto à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos. A reação do ministro Joaquim Barbosa a essa tese foi a mais
contundente e populista imaginável. Mas o ministro Celso de Mello também o
contestou. O debate está aberto.
Em artigo que publiquei
na Folha de S. Paulo (13.10.12), secundado recentemente por Valério Mazzuoli,
afirmei que, do ponto de vista do Estado de Direito vigente, os réus do
mensalão poderiam, sim, apresentar reclamações junto à Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, que pode levar o caso para a Corte respectiva (em San Jose
da Costa Rica), sobretudo tendo em vista o precedente Barreto Leiva, onde este
último tribunal garante o duplo grau de jurisdição, ou seja, no campo criminal,
todo réu tem direito a dois julgamentos, mesmo que o primeiro tenha emanado da
corte máxima do país (como é o caso do mensalão).
A reação do ministro JB,
a essa tese, foi a mais contundente e populista imaginável (do jeito que o
povão não letrado juridicamente entende):
“Barbosa diz que falar em recurso no exterior ‘é enganar o público’. Para
relator, corte internacional não reverte resultado do julgamento. Advogados
falaram em questionar decisão do Supremo Tribunal Federal. O relator do
processo do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim
Barbosa, afirmou que os advogados dos réus tentam “enganar o público leigo”
quando dizem que questionarão o resultado do julgamento na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
“É enganar o público leigo e ganhar dinheiro às custas de quem não tem
informação. Que leiam a Constituição brasileira, que leiam as leis que regem os
tribunais”, afirmou o relator do mensalão após sessão desta terça, na qual José
Dirceu foi condenado por corrupção ativa (oferecer vantagem indevida). Na
semana passada, o ministro Marco Aurélio Mello já havia afirmado não ver
chances de reverter as condenações e chamou a possibilidade do recurso de
“direito de espernear”. Sediado na cidade de San José, capital da Costa Rica, a
corte interamericana é voltada para processos em que tenham ocorrido violações
de direitos humanos. Para o ministro Joaquim Barbosa, dizer que a decisão do
Supremo pode ser revertida é um “cinismo”. “Pergunte se em algum lugar do
Brasil nos últimos 30 anos, 40, 50, 60 anos, tenha sido procedido de maneira
diferente. Porque é muito cinismo dizer isso, uma pessoa que já foi juiz ou
procurador, vir a público enganar as pessoas com argumentos desse tipo”,
afirmou Barbosa.” (trecho do portal G1)
Em seu voto no processo
do mensalão o Min. Celso de Mello, contrariando frontalmente a verborragia do
ministro JB, afirmou, conforme divulgado no Consultor Jurídico:
“O SENHOR MINISTRO CELSO
DE MELLO: Mostra-se claro inexistir qualquer nexo de prejudicialidade externa
entre esta causa penal e qualquer procedimento instaurado perante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos. É que não se pode determinar a suspensão
prejudicial deste processo penal em razão de alegadamente existir provocação
formal dirigida, nos termos do art. 44 do Pacto de São José da Costa Rica, à
Comissão (não à Corte) Interamericana de Direito Humanos. Assinale-se, a título
de mero registro, que, no contexto do Sistema Interamericano de Defesa e
Proteção dos Direitos Humanos, a pessoa física ainda não dispõe de legitimidade
ativa para fazer instaurar, desde logo, ela própria, processo perante a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, eis que essa qualidade para agir junto a
referido organismo judiciário restringe-se, unicamente, aos Estados-partes e à
Comissão Interamericana (Pacto de São José, Artigo 61, nº 1), uma vez atendidos
os requisitos de procedibilidade fixados no Artigo 46 e nos Artigos 48 a 51 da
Convenção Americana (Artigo 61, nº 2). De qualquer maneira, no entanto, não há
como inferir, das cláusulas que compõem o Pacto de São José da Costa Rica, a
existência de relação de prejudicialidade externa que imponha a suspensão deste
processo penal pelo só fato de haver postulação deduzida perante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos.
O SENHOR MINISTRO
JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – E seria absurda, não é, Ministro?
O SENHOR MINISTRO CELSO
DE MELLO: Nada impedirá, contudo, que a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, sediada em Washington, D.C., esgotada a jurisdição doméstica (ou
interna) atendidas as demais condições estipuladas no Artigo 46 e nos Artigos
48 a 51 do Pacto de São José, submeta o caso à jurisdição contenciosa da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, em ordem a permitir que esta exerça o
controle de convencionalidade. Não há, porém, possibilidade de se determinar,
neste momento, a suspensão prejudicial da presente causa penal.
O SENHOR MINISTRO AYRES
BRITTO (PRESIDENTE) -
Sobrestamento do
processo.
O SENHOR MINISTRO
RICARDO LEWANDOWSKI (REVISOR)
- Ministro Celso, apenas
uma nota brevíssima de Direito Comparado: essa possibilidade existe no sistema
de Direito comunitário europeu. Há um instituto chamado reenvio prejudicial, ou
renvoi préjudiciel: quando um juiz local tem uma dúvida, ou alguém, uma das
partes suscita um incidente acerca do Direito comunitário, sobresta-se o
processo e faz-se uma consulta à Corte europeia, sediada em Luxemburgo. Mas,
claro que o sistema interamericano não agasalhou essa hipótese.
O SENHOR MINISTRO CELSO
DE MELLO: Há, presentemente, no contexto do Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos, celebrado em 1966 (e a que o Brasil somente aderiu em 1992),
um mecanismo viabilizador do acesso direto e imediato da própria pessoa física
interessada à jurisdição tutelar do Comitê de Direitos Humanos, incumbido de
atuar como órgão de implementação dos direitos e garantias fundamentais em
escala global, pois aquele Pacto Internacional, por haver sido promulgado no
âmbito das Nações Unidas, reveste-se de projeção universal. Essa significativa
ampliação da legitimidade ativa em favor de qualquer pessoa interessada
decorreu do Protocolo Adicional Facultativo ao Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos. Não é, porém, o que se registra no âmbito do Pacto
de São José da Costa Rica, segundo o qual a pessoa interessada (ainda) não
dispõe de “locus standi” para, ela própria, fazer instaurar, de imediato, a
jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O SENHOR MINISTRO GILMAR
MENDES – Mas essa é uma hipótese de aplicação do próprio Direito europeu.
O SENHOR MINISTRO
RICARDO LEWANDOWSKI (REVISOR) - Sim, não tem nada a ver com nossa sistemática.
O SENHOR MINISTRO CELSO
DE MELLO: Tem razão o eminente Revisor.
SENHOR MINISTRO JOAQUIM
BARBOSA (RELATOR) – Não há como. E mais, Ministro Celso: Justiça que se preza
não se submete, ela própria, a órgãos externos de natureza política. E a
Comissão o é.
O SENHOR MINISTRO CELSO
DE MELLO: A questão central, neste tema, Senhor Relator, considerada a
limitação da soberania dos Estados (com evidente afastamento das concepções de
JEAN BODIN), notadamente em matéria de Direitos Humanos, e a voluntária adesão
do Brasil a esses importantíssimos estatutos internacionais de proteção
regional e global aos direitos básicos da pessoa humana, consiste em manter
fidelidade aos compromissos que o Estado brasileiro assumiu na ordem
internacional, eis que continua a prevalecer, ainda, o clássico dogma –
reafirmado pelo Artigo 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados,
hoje incorporada ao ordenamento interno de nosso País (Decreto nº 7.030/2009)
–, segundo o qual “pacta sunt servanda”, vale dizer, “Todo tratado em vigor
obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”, sendo-lhe
inoponíveis, consoante diretriz fundada no Artigo 27 dessa mesma Convenção de
Viena, as disposições do direito interno do Estado nacional, que não poderá
justificar, com base em tais regras domésticas, o inadimplemento de suas
obrigações convencionais, sob pena de cometer grave ilícito internacional. Não
custa relembrar que o Brasil, apoiando-se em soberana deliberação, submeteu-se
à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que
significa, considerado o formal reconhecimento, por parte de nosso País, da
competência da Corte (Decreto nº 4.463/2002), que o Estado brasileiro
comprometeu-se, por efeito de sua própria vontade político-jurídica, “a cumprir
a decisão da Corte em todo caso” de que é parte (Pacto de São José da Costa
Rica, Artigo 68). “Pacta sunt servanda”…
O SENHOR MINISTRO
JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Da Corte, mas não da Comissão.
O SENHOR MINISTRO CELSO
DE MELLO: O Brasil, no final do segundo mandato do Presidente Fernando Henrique
Cardoso (Decreto nº 4.463, de 08/11/2002), reconheceu como obrigatórias a
jurisdição e a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “em todos
os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção” (Pacto de São
José da Costa Rica, Artigo 62), o que legitima o exercício, por esse importante
organismo judiciário de âmbito regional, do controle de convencionalidade, vale
dizer, da adequação e observância, por parte dos Estados nacionais que
voluntariamente se submeteram, como o Brasil, à jurisdição contenciosa da Corte
Interamericana, dos princípios, direitos e garantias fundamentais assegurados e
proclamados, no contexto do sistema interamericano, pela Convenção Americana de
Direitos Humanos.
O SENHOR MINISTRO GILMAR
MENDES – De resto, vamos fazer uma observação. Raramente teve-se um processo
com tal cuidado de observância do devido processo legal; quer dizer, o recurso
à Corte Interamericana – vamos reconhecer – é um recurso de retórica
processual.
O SENHOR MINISTRO
JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Pois é. Eu tive o cuidado de trazer tudo, quase
tudo a este Plenário, exatamente para evitar esse tipo de mumbo jambo, não é?
O SENHOR MINISTRO AYRES
BRITTO (PRESIDENTE) – Em rigor, essas matérias estão preclusas desde o início.
O SENHOR MINISTRO
JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Estão totalmente preclusas.”
Juristas (como o JB)
formados sob o império do tradicional modelo do Estado de Direito liberal (onde
se impõe o legalismo), que é herança do século XIX, sobretudo depois da
Revolução francesa, têm muita dificuldade de entender o funcionamento do
pós-moderno Estado de Direito democrático internacional e universal (veja
nossos livros Direito Supraconstitucional, Comentários à Convenção Americana de
Direitos Humanos etc.).
JB chegou a afirmar que
só “leigos” admitem recurso para o Sistema Interamericano. Só “leigos” e
“cínicos”. O Min. Celso de Mello, que de leigo não tem nada, categoricamente
confrontou o entendimento (juridicamente) estapafúrdio de JB que, animado pela
popularidade das suas declarações, vem “habilmente” iludindo o povo
(juridicamente) desletrado com seus arroubos verborrágicos do tipo “vá
chafurdar no lixo”, “estão enganando os leigos”, “são cínicos os que admitem
recursos para po Sistema Interamericano”, “é só ler a Constituição e as leis”
etc. A considerar o incensurável e brilhante voto do Ministro Celso de Mello,
realmente está faltando leitura da Constituição e das leis brasileiras, assim
como dos tratados internacionais firmados pelo Brasil.
*Luiz Flávio Gomes,
jurista, diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do portal
atualidadesdodireito.com.br. Mais informações em blogdolfg.com.br
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