Por Pedro Pomar
Pesquisadores acadêmicos
de alto quilate conseguiram a proeza de propor as novas Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Curso de Graduação em Jornalismo sem se pronunciar sobre como
se configura o sistema empresarial, oligopólico, firmado sobre a propriedade
cruzada de diferentes meios de comunicação.
Estão prestes a ser
homologadas pelo ministro da Educação as novas Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Curso de Graduação em Jornalismo, aprovadas pela Câmara de
Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CNE) em 20/2/2013. O
Parecer 39/2013 CNE/CES pouco alterou o relatório final da chamada Comissão
Marques de Melo. O estágio obrigatório de 200 horas foi mantido, apesar da
posição inicial desfavorável do relator.
A meu ver, a ausência
mais aguda nas Diretrizes Curriculares é a do Capital. Um conjunto de
pesquisadores acadêmicos de alto quilate conseguiu a proeza de reunir-se para
tratar do Curso de Jornalismo tendo chegado ao final de seu trabalho sem se
pronunciar sobre como se configura no Brasil o sistema empresarial,
oligopólico, firmado sobre a propriedade cruzada de diferentes meios de
comunicação, que dá as cartas na mídia e no jornalismo brasileiros. Dizendo de
outra forma, o sistema responsável pela produção da maior parte do jornalismo
brasileiro, diário ou semanal, seja ele impresso, televisivo, radiofônico ou
digital, é ignorado no documento.
Desse modo, não há uma
avaliação crítica do papel desempenhado no jornalismo pelos empregadores de
importante parcela dos atuais e dos futuros jornalistas, empregadores esses
dotados de notável poder econômico e político na sociedade brasileira,
habituados a moldar o jornalismo que praticam de acordo com seus interesses.
Eles deixaram de ser criticados pelos especialistas da “Comissão Marques de
Melo”, que, no entanto, preocuparam-se em atender suas demandas, por exemplo
por meio da figura do estágio obrigatório (“possibilitando a interação da
universidade com o setor produtivo”) ou do Mestrado Profissional (recomendação
felizmente ignorada pelo CNE/CES), que permitiria a “formação de profissionais
especializados, pleito histórico das organizações jornalísticas” (leia-se:
empresas de jornalismo).
Também no tocante à
comunicação entendida como sistema global, mundial, o relatório que embasou as
novas Diretrizes Curriculares valorizou excessivamente as redes sociais e a
convergência digital, bem como os “novos sujeitos”, sem levar em conta que
prossegue célere o processo de concentração e fusão das corporações gigantes de
mídia, ou seja, dos capitais que atuam no setor. Por exemplo, afirmam os
especialistas: “Os conteúdos da atualidade, veiculados pelos gêneros
jornalísticos são, em esmagadora maioria, ações discursivas de sujeitos que
agem no mundo e sobre o mundo por meio de acontecimentos, atos, falas e/ou
silêncios. Valorizados pelas técnicas e pela identidade ética, esses conteúdos
são socializados no tempo e no espaço do Jornalismo, pelos instrumentos da
difusão instantânea universal. E assim, pelas vias confiáveis do Jornalismo, se
globalizam idéias, ações, mercados, sistemas, poderes, discussões, interesses,
antagonismos, acordos” (Relatório, p. 4). Tudo parece, assim, muito difuso e
etéreo, quando a realidade é bem outra, mesmo na Internet, onde a presença das
grandes corporações, bem como a ação de grandes Estados, é avassaladora.
Quando cita o mercado ou
as empresas, o relatório final da “Comissão Marques de Melo” o faz
acriticamente, como se o protagonismo desse setor nada tivesse a ver com o
jornalismo que se pratica hoje (no Brasil e no mundo) ou com a formação
jornalística. O jornalista, assim, apesar da retórica humanística do texto, ao
fim e ao cabo é apenas força de trabalho para as empresas de jornalismo. Mas o
Relatório não se limita a escamotear, na abordagem geral prévia, o oligopólio
da mídia e do jornalismo. Ele também deixa de incluir esse tópico nos próprios
conteúdos curriculares sugeridos. E o CNE/CES aprovou integralmente tais
conteúdos.
O objetivo principal do
relatório final parece ser subordinar a formação oferecida aos imperativos do
mercado. É isso que explica os ataques presentes, no relatório, a um tipo de
formação mais reflexiva, mais crítica dos meios de comunicação de massa, por
exemplo: a teoria “passou a não reconhecer legitimidade no estudo voltado ao
exercício profissional, desprestigiando a prática, ridicularizando os seus
valores e se isolando do mundo do jornalismo” (Relatório, p. 12); ou: “A ênfase
na análise crítica da mídia, quando feita sem compromisso com o aperfeiçoamento
da prática profissional, abala a confiança dos estudantes em sua vocação,
destrói seus ideais e os substitui pelo cinismo” (idem).
Observe-se, porém, a
seguinte recomendação da Unesco, presente em publicação recente sobre os
currículos de jornalismo: “Uma boa formação deve fornecer aos estudantes
conhecimento e treinamento suficientes para que reflitam sobre a ética do
jornalismo, suas boas práticas e sobre o papel do jornalismo na sociedade. Eles
também devem aprender sobre a história do jornalismo, a legislação da comunicação
e da informação e sobre a economia política da mídia (incluindo tópicos como
propriedade dos meios, estrutura organizacional e competição)” (Modelo
curricular da Unesco para o ensino do Jornalismo, Unesco, Brasil, 2010; página
6). Mais adiante, mesmo ressaltando que o curso pensado não se destina a formar
pesquisadores acadêmicos, o texto diz: “Pretendemos, igualmente, preparar os
estudantes para que sejam críticos a respeito do seu próprio trabalho e em
relação ao de outros jornalistas” (idem, p. 7).
A “Comissão Marques de
Melo” fechou seu relatório em 2009 e cita apenas a versão anterior (2007) do
Modelo curricular da Unesco... Mas é importante assinalar que há uma
preocupação da Unesco com essa questão (para quem trabalhamos? quem detém o
poder no jornalismo?) que é simplesmente diluída, no documento dos
especialistas, em considerações genéricas sobre a ética e a responsabilidade do
jornalista.
Em nenhum dos seis Eixos
de Conteúdo que constam do item 5 do Relatório (Conteúdos Curriculares) e foram
aprovados in totum pelo CNE/CES consta algo consistente sobre o tema, exceto
por uma vaga referência, no Eixo III, à “regulamentação dos sistemas
midiáticos, em função do mercado potencial” (sic). Basta conferir isso nas
páginas 11 e 12 do Parecer CNE/CES 39/2013.
Por fim, é bastante
deplorável que o CNE/CES tenha mantido o estágio obrigatório, sob a forma de
Estágio Curricular Supervisionado. Isso legitima e amplia a enorme pressão das
empresas sobre os estudantes e sobre os cursos. O estágio em jornalismo tem
sido um dos mais importantes fatores de aviltamento do mercado de trabalho dos
jornalistas brasileiros, funcionando como instrumento de substituição de força
de trabalho qualificada. Do ponto de vista simbólico, ele reforça a propaganda
das empresas de que só elas dominam o saber jornalístico, e dilui a pressão
sobre as escolas de jornalismo para que ofereçam laboratórios de boa qualidade
e corpo docente qualificado.
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