Por Daniel Adams Boeira
"Embora com nomes diversos, os intelectuais sempre existiram, pois
sempre existiu, em todas as sociedades, ao lado do poder econômico e do poder
político, o poder ideológico, que se exerce não sobre os corpos como o poder
político, jamais separado do poder militar, não sobre a posse de bens
materiais, dos quais se necessita para viver e sobreviver, como o poder
econômico, mas sobre as mentes, pela produção e transmissão de idéias, de
símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos, mediante o uso da
palavra (o poder ideológico é extremamente dependente da natureza do homem como
animal falante). Toda sociedade tem os seus detentores do poder ideológico,
cuja função muda de sociedade para sociedade, de época para época, cambiantes
sendo também as relações, ora de contraposição ora de aliança, que eles mantêm
com os demais poderes."
In: BOBBIO, Norberto.Os
intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade
contemporânea. São Paulo: Editora UNESP, 1997. p.11
Tudo bem amigo Jorge,
isto não refuta tua objeção à existência de uma elite intelectual que é ainda
assim uma questão importante. Eu fiquei curioso com teu argumento sobre a
inexistência de elites intelectuais. Quero aqui só pontuar algumas coisas como
exemplos de uma análise geral deste tema, porque sinceramente eu desconhecia
argumentos contrários a existência de uma elite intelectual e, também, porque é
um tema que sempre me atraiu e que com tua provocação me coloquei a tarefa de
refletir sobre ele livremente de novo. Me dedico a ele, também, por uma
necessidade de abordá-lo por diversas outras razões de minha biografia e
formação.
Não sou um especialista
neste grande tema das ciências humanas, que foi praticamente tocado por todos
os grandes pensadores no século XX. A lista deles é notável. Talvez isto
explique porque eu desconheça esta discussão sobre a existência de tal coisa
também. Porém conheço, por outro lado, muitos trabalhos e discussões
interessantes sobre elites, elites intelectuais e intelectuais em geral e destes
já conheci muitos trabalhos notáveis, inclusive.
Confesso também que é um
tema que me atrai, por conta do papel que a gente também acaba assumindo na
sociedade quando se participa politicamente de debates, quando se formulam
propostas e criticas também e se faz isto assumindo posição naquilo que chamamos
de espaço público. Seja através de artigos em jornais, postagens no Facebook,
no Orkut um dia, em Blogs diversos ou no meu blog próprio. A cada tomada de posição por mais simples que
ela te pareça estamos entrando num debate em que se encena também uma disputa
de hegemonia e de ideologia, estamos professando concepções de forma mais ou
menos consciente dependendo da forma como olhamos para as idéias e do respeito
que temos pela importância delas e também dependendo da nossa consciência à
respeito das suas origens e de suas conseqüências.
Assim, o papel de
intelectual é exercido primariamente no debate público. Papel este que se
desempenha correntemente, na medida em que se adquire por formação regular – e
isso vale para todos nós que avançamos nos estudos até o ensino superior ou no
mínimo técnico - um conjunto de conhecimentos técnicos ou culturais,
científicos ou de trabalho e se aplicam estes conhecimentos ao debate. Estes
conhecimentos que nos habilitam a tratar das questões de uma forma mais racional
e precisa ou racionalizada e eficaz nos colocam por assim dizer acima da média,
mas somente quando os expomos publicamente e sofremos, por assim dizer, o juízo
e o julgamento de outras opiniões e de outros debatedores.
Mas não basta ter
opinião, conhecimento, ciência, técnica, arte ou formação, para ser considerado
intelectual, é necessária certa atuação pública, é necessário expor-se
publicamente. Ou seja, não basta ter seu lugar na academia ou ter qualquer
prestígio acadêmico ou profissional para ser considerado um intelectual, é
necessário explicitar certa tomada de posição, a expressão de uma opinião
pública ou de uma posição a respeito de assuntos públicos e sociais.
Sejam eles polêmicos ou
aparentemente consensuais. Segundo a maior parte dos historiadores que examinam
a história das idéias e a história dos intelectuais, o termo intelectual surge
por volta de 1898 por conta dos debates originados no caso Dreyfus, quando
Emile Zola e outros tomaram posição pública contrária à prisão deste tenente francês.
O artigo inaugural para esta expressão e exposição de uma posição intelectual é
J’accuse de Emile Zola, e a designação de intelectual foi dada positivamente
por Georges Clemenceau quando este ainda era um jornalista e agitador político
do cenário cultural francês, antes de vir a ser eleito alguns anos depois
senador e primeiro ministro.
Mas é polemica também
sua dimensão e polaridade porque também outros usavam o termo pejorativamente à
época no sentido de que “estes intelectuais estavam ou estariam se metendo em
assuntos que pouco dominam”, como foi o caso Dreyfus, em que um oficial era
acusado de traição. Isto, aliás, é corrente ainda hoje quando se percebe que
alguns argumentam contra o uso de teorias ou de argumentos teóricos, em
prejuízo de uma simplificação ou de um tratamento eminentemente prático. Tive
muitas experiências de ser acusado de estar teorizando ou de testemunhar esta
acusação vã. Mas sempre lembro que boa parte das argumentações de cunho mais
teórico acabam dando mais robustez ao debate.
É importante frisar aqui
que este conceito ou categoria surge também com um debate feito via folhas de
jornal, revistas ou panfletos que tinham incidência sobre a opinião pública e
que isso gerava debate na sociedade sobre este ou aquele tema. E penso que isto
é importante porque contribui para dar forma a opinião pública e a opinião das
gentes sobre diversas assuntos e está também ligado ao surgimento de um espaço
público realmente democrático também com ampla e plena liberdade de opinião.
A Elite Intelectual é
somente prima facie uma categoria usada para discernir melhor tipos de
intelectuais e famílias de intelectuais em níveis de intervenção. Haveria assim
intelectuais com baixa repercussão e intervenção e intelectuais de largo
impacto o que define pertencer a esta elite. Assim, a sua capacidade de incidir
nos debates e seu poder de persuasão marcariam o pertencimento a elite
intelectual. A explicação que encontrei
para isto, esta mudança de nível e de impacto, é de que é um substituto ao
conceito de Marx de classe dirigente, porque daria conta da dimensão reflexiva
desta classe ou de um extrato desta classe que elabora sobre a tal uma certa
direção da mesma, mas é preciso diferenciar aqui, porém, espaços de debates
dentro de uma classe dirigente e espaços de debates no espaço público.
Isso significa também
que pertencer à elite intelectual não é sinônimo de defender as mesmas idéias
ou que a elite intelectual não é homogênea em pensamento não. Ao contrário, um
conflito intelectual também se dá dentro de uma elite intelectual. E mais
frequentemente há grandes e intensos conflitos intelectuais e ideológicos no
meio de uma elite intelectual. E, em geral, estas disputas geram facções dentro
desta classe dirigente. É exemplar o que ocorrem nas revoluções das quais temos
conhecimentos em que frações políticas se formam sob a direção de certas
lideranças que somam aspectos intelectuais e retóricos, ideológicos e
pragmáticos.
Raramente verás um
intelectual deste tipo “elitista” debatendo em registro inferior aquele que ele
julga possuir, com a plebe então nunca o verás. Ele em geral é seletivo e faz
escolha de seus adversários e de suas prioridades de debate. Mas também existem
intelectuais que não pertencem a uma determinada elite. Aqueles que se
constituem na vida sem muita direção cultural ou formação regular. Isso, esta
condição inferior, pode ser algo permanente, mas pode mudar por avanço social
ou na carreira acadêmica, política ou profissional. Mas, também, pode mudar por
protagonismo próprio e assertivas decisivas ao longo de suas tomadas de
posição. Em todo caso, como eu já disse vamos ter que ver na prática – ou seja,
através de exemplos de aplicação e não como quimeras ou arquétipos de
generalidade – usando tua expressão, se esta categoria é dispensável ou não.
Uso ela – e imagino que
a maioria que a usa compreende mais ou menos desta forma – porque preciso
discernir certos papéis desempenhados por intelectuais, bem como, suas relações
sociais e com o status quo. Assim, como
outros que estudam a história, a cultura e a política também usam esta
categoria.
Disse também que
considero tua pergunta importante porque ela vem de onde vem. Talvez você possa
ou deva me explicar um pouco mais sobre o que te levou a questionar isto. Isto é,
apor um argumento sobre isto.
Ora, pelo que sei és um
Arquiteto com militância intensa na defesa do patrimônio histórico e cultural,
seja ele material ou imaterial, por suposto.
Você fala em definições
ou arquétipos genéricos no sentido de que referem a algo inexistente então. Mas
tem um traço importante nestas definições e nestas generalidades das quais você
fala: muitos cientistas classificam as coisas fazendo exatamente isto,
diferenciando-as de outras, por suas funções, modos de ser e etc.
Assim, comparativamente,
como os arquitetos ou historiadores da arte diferenciam correlatamente estilos
e escolas estéticas.
No ano passado, por
exemplo, para ficar no caso dos gaúchos, naquela pesquisa sobre a praça tive
uma experiência de descoberta interessante sobre este tema. Acabei encontrando
e me defrontando com uma função típica daqueles que são membros das elites intelectuais
gaúchas no início do século. E há inclusive um trabalho interessante sobre isto
que descobri do professor Sérgio da Costa Franco. As elites intelectuais
cumpriam uma função importante que era de sustentar a ideologia positivista ou
republicana via revistas e imprensa em geral. Parte do prestígio de Getúlio
Vargas, para ficar só num exemplo, se constituiu através da Revista do Globo
que foi criada e dirigida em seu início por Mansueto Bernardi – aquele
ex-prefeito de São Leopoldo (1919-1923), o qual foi sucedido por Érico
Veríssimo na direção da Revista do Globo e na Editoria da Editora Globo, quando
Mansueto segue para a direção da Casa da Moeda após a revolução de 30.
Muitos destes
intelectuais da elite cultural gaúcha faziam isto com empregos públicos ou
assessorando políticos. E isso certamente ainda ocorre hoje de uma forma
semelhante, ainda que seja mais comum se ter certa independência maior nos dias
de hoje, através dos concursos públicos. Ainda que isto seja mais especializado
e de certa forma caiba a parte mais visível disto mais aos atuais jornalistas e
assessores de imprensa, não é invisível a relação de organicidade entre
diversos intelectuais e partidos e organizações políticas.
Eles – os jornalistas -
são e tem sido mais visíveis ao fazerem isto e não mais tanto aos típicos
intelectuais. Mas me parece que isto tende a mudar com o uso mais intenso de
redes sociais e debates de opinião nas redes sociais. Muitos são pessimistas
com isto, mas eu tendo a ser bem mais otimista e vejo em blogs e outros meios
grandes debates. Até mesmo no Twitter ocorrem debates e divulgação de idéias e
links que levam para debates e penso que isto está democratizando também o
acesso e os espaços para a opinião também. Ainda que a visibilidade disto seja
mais difícil de tomar eu discordo dos pessimistas neste tema. Bem se isto
estiver certo talvez o conceito de elite intelectual tenha que ser mais
alargado, posto que não haverá mais espaço para uma estreita parcela de
intelectuais de elite como formadores de opinião, posto que aumenta o seu
número e também a diversidade de assuntos tratados. Talvez neste sentido deixe
de existir uma categoria tradicional de elite intelectual e tenhamos que criar
outra categoria que me parece ser a de ativistas.
Por outro lado, creio
que há uma fantasia por trás das redes sociais de que as redes sociais estariam
fazendo algo exclusivamente novo e isoladamente das velhas categorias de
circulação dos intelectuais como a política tradicional e representativa.
Sinceramente não creio nisto. Mas se você raspar a camada superficial dos
discursos dos políticos vai encontrar intelectuais envolvidos em debates e em
formulações deles. Acadêmicos, PHDs, Pesquisadores, Escritores, e Pensadores em
geral de diversas ciências fazendo este trabalho de conceber, sustentar e
legitimar-se enquanto elite e enquanto uma elite portadora de um projeto de
sociedade. Não podemos dizer também que não existem muitas elites intelectuais
nas redes sociais, inclusive com diferenças ideológicas entre elas. Pelo menos
eu as observo claramente por me ocupar com isto a partir de uma vida orgânica
partidária e também a partir do meu intercâmbio com a academia e de certa forma
com intelectuais de outros partidos também. Vejo isso com certa simplicidade.
Assim como você se ocupa com o tema do patrimônio Histórico e conhece
diferentes intelectuais, profissionais e pessoas com formulações sobre ele,
algumas das quais inclusive você pode discordar, mas que compartilham com você
de debates e de pontos Ed acordo em comum, também vale isto noutros domínios e
assuntos.
Creio que este tema do
patrimônio histórico com o qual me envolvi intensamente como tarefa de gestor e
também de elaboração, comcepção e pesquisa, nestes últimos dois anos e que me
foi apresentado pelos membros do COMPAC e também por você e pelo pessoal da
Defender, não é um tema simples. Sei que não é uma questão sobre a qual se
discute de uma forma simples e, desta forma, posso dizer que ele também é um
tema que requer uma elite e um conjunto de intelectuais que o dominem para ser
tratado. O que ultrapassa a mera simpatia pela causa, pois envolve mesmo
efetivamente todo um ramo de conhecimento e de especialidades que não é
simplesmente apreendido pelo leigo como eu.
Tuas perguntas sobre
como definir a categoria de elite intelectual, quem a integraria, o que faz e o
que pensa, me parecem ter sido tocadas já aqui e envolvem de fato a necessidade
de avançar para dentro da pesquisa e ultrapassar as opiniões sobre haver uma
instituição ou não desta classe ou categoria.
Sobre as elites
intelectuais há, também, toda uma área de investigação sobre este tema que fica
limítrofe à sociologia, história, história das idéias, literatura, estudos
culturais, ciência política, e são pesquisas muito interessantes porque falam
sobre esta categoria dos intelectuais e suas diferenças enquanto elites também.
Por fim, para não deixar
de filosofar um pouco mais.
Talvez tenhamos ai a
dificuldade clássica que se estabelece com a diferença entre predicados de
objetos e predicados de famílias de objetos.
Elite Intelectual não
refere a um objeto em sua homogeneidade, mas sim a uma família de objetos cada
vez mais diferenciados e que é, como tentei expor antes, cada vez mais
democrática.
Talvez por isto esta
aparência de quimera ou de artificialidade nos dê na telha.
O nosso uso da palavra
arquétipo, por outro lado, somado à generalidade já nos traz problemas de outra
ordem.
Nos leva para a pergunta
de se existe uma figura clássica e representativa de Elite Intelectual, que
creio que não.
Este tipo sequer é
necessário para reconhecer a existência de uma elite intelectual mais ligada a
um espaço de atuação e circulação de idéias, que é mais amplo do que nunca e
que há ai mais uma forma de atuação, do que propriamente um tipo determinado de
sujeito histórico.
O que se preserva das
figuras clássicas talvez seja o engajamento e a persistência no debate, mesmo
quando ele pareça encerrado.
E eu gosto de sempre anotar ao final de um
debate destes é se você alcançou ou construiu suas posições com o propósito de
produzir uma mudança social qualitativa e não apenas exibir sua verve retórica
ou entabular um debate.
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