Por Virgílio Afonso da Silva, Professor Titular de Direito
Constitucional da USP
Depois de ler Inês Nassif
e “o precedente de Gilmar fere o âmago da Democracia”, não perca essa
sugestão de amigo navegante que nutre por Gilmar sentimentos muito parecidos
com os de Joaquim Barbosa:
A EMENDA E O SUPREMO
Na semana passada, todos
os holofotes estavam apontados para a Câmara dos Deputados, que discutia uma
proposta de emenda constitucional (PEC) que, segundo muitos, é flagrantemente
inconstitucional, por ferir a separação de poderes. Contudo, a decisão mais
inquietante, em vários sentidos, inclusive em relação à própria separação de
poderes, estava sendo tomada no prédio ao lado, no Supremo Tribunal Federal
(STF).
No dia seguinte, nas
primeiras páginas dos jornais, o grande vilão, como sempre, foi o poder
Legislativo. A PEC analisada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
(CCJ) da Câmara é polêmica, com certeza. Sua constitucionalidade é
questionável, não há dúvidas. Mas, do ponto de vista jurídico, da separação de
poderes e do direito comparado, a decisão do STF, que bloqueou o debate no
Senado sobre as novas regras de acesso dos partidos políticos à TV e ao fundo
partidário, é muito mais chocante.
O ponto mais polêmico da
PEC é a exigência de que uma decisão do STF que declare a inconstitucionalidade
de uma emenda constitucional seja analisada pelo Congresso Nacional, o qual, se
a ela se opuser, deverá enviar o caso a consulta popular.
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Ministro decidiu que o
Senado não poderia deliberar sobre um projeto de lei porque ele não concorda
com o teor
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É quase um consenso
entre juristas que um tribunal constitucional ou uma suprema corte, como é o
caso do STF, deve ter a última palavra na interpretação da constituição e na
análise da compatibilidade das leis ordinárias com a constituição. Mas muito
menos consensual é a extensão desse raciocínio para o caso das emendas
constitucionais. Nos EUA, por exemplo, emendas à constituição não são
controladas pelo Judiciário. A ideia é simples: se a própria constituição é
alterada, não cabe à Suprema Corte analisar se o novo texto é compatível com o
texto antigo. Isso quem decide é povo, por meio de seus representantes. Mesmo
no caso do controle de leis ordinárias, há exemplos que relativizam o “quase consenso”
mencionado acima, como é o caso do Canadá, cujo Parlamento não apenas pode
anular uma decisão contrária da Suprema Corte, como também imunizar uma lei por
determinado período de tempo contra novas decisões do Judiciário.
Não há dúvidas de que o
caso brasileiro é diferente. A constituição brasileira possui normas que não
podem ser alteradas nem mesmo por emendas constitucionais, as chamadas
cláusulas pétreas. Mas não me parece que seja necessário entrar nesse complexo
debate de direito constitucional, já que o intuito não é defender a decisão da
CCJ, cuja conveniência e oportunidade são discutíveis.
Neste momento em que o
Legislativo passa por uma séria crise de legitimidade, não parece ser a hora de
tentar recuperá-la da forma como se tentou. Tampouco quero defender a
constitucionalidade da PEC no seu todo. O que pretendi até aqui foi apenas
apontar que, embora extremamente polêmica, a proposta é menos singular do que
muitos pretenderam fazer crer.
Já a decisão do ministro
Gilmar Mendes, tomada na mesma data e que mereceu muito menos atenção da
imprensa, é algo que parece não ter paralelo na história do STF e na
experiência internacional. Ao bloquear o debate sobre as novas regras
partidárias, Gilmar Mendes simplesmente decidiu que o Senado não poderia
deliberar sobre um projeto de lei porque ele, Gilmar Mendes, não concorda com o
teor do projeto. Em termos muito simples, foi isso o que aconteceu. Embora em
sua decisão ele procure mostrar que o STF tem o dever de zelar pelo “devido
processo legislativo”, sua decisão não tem nada a ver com essa questão. Os
precedentes do STF e as obras de autores brasileiros e estrangeiros que o
ministro cita não têm relação com o que ele de fato decidiu. Sua decisão foi,
na verdade, sobre a questão de fundo, não sobre o procedimento. Gilmar Mendes
não conseguiu apontar absolutamente nenhum problema procedimental, nenhum
desrespeito ao processo legislativo por parte do Senado. O máximo que ele
conseguiu foi afirmar que o processo teria sido muito rápido e aparentemente casuístico.
Mas, desde que respeitadas as regras do processo legislativo, o quão rápido um
projeto é analisado é uma questão política, não jurídica. Não cabe ao STF ditar
o ritmo do processo legislativo.
Sua decisão apoia-se em
uma única e singela ideia, que pode ser resumida pelo argumento “se o projeto
for aprovado, ele será inconstitucional pelas razões a, b e c”. Ora, não existe
no Brasil, e em quase nenhum lugar do mundo, controle prévio de
constitucionalidade feito pelo Judiciário. Mesmo nos lugares onde há esse
controle prévio – como na França – ele jamais ocorre dessa forma. Na França, o
Conselho Constitucional pode analisar a constitucionalidade de uma lei antes de
ela entrar em vigor, mas nunca impedir o próprio debate. Uma decisão nesse
sentido, de impedir o próprio debate, é simplesmente autoritária e sem
paralelos na história do STF e de tribunais semelhantes em países democráticos.
Assim, ao contrário do
que se noticiou na imprensa, a decisão do STF não é uma ingerência “em escala
incomparavelmente menor” do que a decisão da CCJ. É justamente o oposto. Além
das razões que já mencionei antes, a decisão do STF é mais alarmante também
porque produz efeitos concretos e imediatos, ao contrário da decisão da CCJ,
que é apenas um passo inicial de um longo processo de debates que pode,
eventualmente, não terminar em nada. E também porque, se não for revista, abre
caminho para que o STF possa bloquear qualquer debate no Legislativo sempre que
não gostar do que está sendo discutido. E a comprovação de que essa não é uma
mera suposição veio mais rápido do que se imaginava: dois dias depois, em outra
decisão sem precedentes, o ministro Dias Toffoli exigiu da Câmara dos Deputados
explicações acerca do que estava sendo discutido na CCJ, como se a Câmara devesse
alguma satisfação nesse sentido. É no mínimo irônico que, na mesma semana em
que acusa a Câmara de desrespeitar a separação de poderes, o STF tenha tomado
duas decisões que afrontaram esse princípio de forma tão inequívoca. A
declaração de Carlos Velloso, um ex-ministro do STF que prima pela cautela e
cordialidade, não poderia ter sido mais ilustrativa da gravidade da decisão do
ministro Gilmar Mendes: “No meu tempo de Supremo, eu nunca vi nada igual”!
Virgílio Afonso da Silva
é professor titular de direito constitucional na faculdade de Direito da USP
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