Por Robert McCrum, no The Observer
1984, o livro que matou
George Orwell
Em 1946, o editor David
Astor emprestou a George Orwell uma afastada fazenda escocesa na qual pudesse
escrever seu novo livro, “1984”. O editor do semanário britânico “The
Observer”, Robert McCrum, conta história da torturante estadia de Orwell na
ilha onde prestes a morrer engajou-se numa corrida febril para terminar o
livro.
“Era um dia claro e frio de Abril, e os
relógios marcavam uma da tarde.” Sessenta e um anos após a publicação da
obra-prima de Orwell, “1984”, essa primeira frase parece mais natural e
atrativa que nunca. Mas quando vemos o manuscrito original, encontramos algo a
mais: não tanto o toque de claridade, mas as correções obsessivas, em
diferentes borrões de tinta, as quais revelam o tumulto extraordinário por trás
da composição.
Sendo provavelmente o
romance definitivo do século XX, e uma história que permanece eternamente
recente e contemporânea, cujos termos como “Big Brother”, “Duplipensar” e
“Novilíngua” tornaram-se parte do cotidiano. “1984″ foi traduzido para mais de
65 línguas e teve milhões de cópias vendidas pelo mundo, conferindo a George
Orwell um lugar único no mundo literário.
“Orweliano” é agora um
símbolo universal para qualquer coisa repressiva ou totalitária, e a história
de Winston Smith, um homem comum para seus tempos, continua a ressoar para os
leitores cujos medos do futuro são bem diferentes dos daquele de um escritor
inglês, de meados dos anos 1940.
As circunstâncias que
cercam o processo criativo de “1984” constroem um narrativa fantasmagórica que
ajuda a explicar a desolação da distopia de Orwell. Ali estava um escritor
inglês, desesperadamente doente, lutando sozinho contra os demônios de sua
imaginação em uma casa escocesa localizada em meio aos resquícios da Segunda
Guerra.
A ideia de “1984”, cujo
título alternativo era “O Último Homem na Europa”, havia sido incubada na
cabeça de Orwell desde a guerra civil espanhola. Esse romance, que tem algo da
ficção diatópica de Yevgeny Zamyatin, provavelmente começou a adquirir uma
forma definitiva durante o período de 1943 e 44, tempo no qual ele e sua esposa
Eileen adotaram seu único filho, Richard. O próprio Orwell alegou ter se
inspirado com a reunião dos líderes dos Aliados na Conferência de Tehran em
1944. Isaac Deutscher, um amigo, reportou que Orwell estava “convencido de que
Stálin, Churchil e Roosevelt conscientemente traçaram um mapa para dividir o
mundo” em Tehran.
Orwell trabalhou para o
“Observer” (Jornal Britânico) de David Astor desde 1942, primeiro como revisor
de livros, e depois como correspondente. O editor declarou ter grande admiração
pela “absoluta retidão, honestidade e decência” de Orwell. A proximidade de sua
amizade foi crucial para a história de “1984”.
A vida criativa de
Orwell já havia beneficiado sua associação com o “Observer” na confecção de
textos de “Animal Farm” (“A Revolução Dos Bichos”). Como o chamado para a
guerra estava próximo, a interação frutífera de ficção e jornalismo de domingo
poderia contribuir para a mais obscura e complexa obra que ele tinha em mente.
Nas revisões dos livros do “Observer”, por exemplo, ele era fascinado pela
relação entre moralidade e linguagem.
Havia outras influências
em seu trabalho. Logo após a adoção de Richard, as economias de Orwell foram
completamente destruídas. A atmosfera de terror inconstante na vida diária dos
tempos de guerra em Londres tornou-se integral com o sentimento do romance em
progresso. O pior estava por vir. Em março de 1945, enquanto estava cumprindo o
contrato com o “Observer” na Europa, Orwell recebeu a notícia de que sua
esposa, Eileen, havia morrido por causa da anestesia em uma cirurgia
corriqueira.
De repente ele ficara
viúvo e pai solteiro, ganhando a vida com muita dificuldade nos alojamentos de
Islington, e trabalhando incessantemente para esquecer o fluxo de remorso e dor
causados pela morte prematura de sua esposa. Em 1945, por exemplo, ele escreveu
quase 110.000 palavras para várias publicações, incluindo 15 revisões de livros
para o “Observer”.
Então Astor interferiu.
Sua família possuía um pedaço de terra em uma remota ilha escocesa chamada
Jura, perto de Islay. Havia uma casa, Barnhill, sete milhas de Ardlussa no
remoto recanto nórdico cheio de montanhas rochosas em Inner Hebrides (um
arquipélago à costa oeste da Escócia). Inicialmente, Astor ofereceu a casa a
Orwell por um final de semana.
Em maio de 1946, Orwell,
ainda juntando os cacos de sua vida, pegou o trem para a longa e árdua viagem
para Jura. Ele disse a seu amigo Arthur Koestler que isso era “quase como pegar
um navio lotado para o ártico”.
Era uma mudança
arriscada; Orwell não estava bem de saúde. O inverno de 1946/47 foi um dos mais
frios do século. O Posto de Saúde britânico estava acabado naqueles tempos de
guerra, e ele sempre sofreu de problemas respiratórios. Ao menos, afastado das
irritações da Londres literária, ele estava livre para se debruçar sobre o novo
romance sem quaisquer impedimentos. “Sufocado pelo jornalismo”, como ele disse
a um amigo, “Me tornei mais ou menos como uma laranja chupada”.
Ironicamente, parte das
dificuldades de Orwell vieram do sucesso de “Animal Farm”, seu livro. Após anos
de negligência e indiferença, o mundo estava despertando para a genialidade
dele. “Todos ficam vindo até mim”, ele reclamava para Koestler, “querendo que
eu escreva, com comissão para folhetos, querendo que eu aceite isso ou aquilo —
você não sabe como desejo me livrar disso tudo e ter tempo para pensar
novamente”.
Em Jura ele estaria
livre dessas distrações, mas a promessa de liberdade criativa numa ilha em
Hebrides veio com um preço a pagar. Anos antes, no artigo “Por que Eu Escrevo”,
ele descreveu o esforço necessário para completar um livro: “Escrever um livro
é horrível, o esforço é exaustivo, como a crise de alguma doença dolorosa. Uma
pessoa jamais se sujeitaria a tal se não for dirigida por algum demônio, o qual
não se pode resistir ou compreender. Esse demônio é o mesmo instinto que faz um
bebê espernear por atenção”.
Desde a primavera de
1947 até sua morte em 1950, Orwell reorganizou cada aspecto de seu empenho da
forma mais dolorosa que se possa imaginar. Particularmente, talvez, ele tenha
experimentado a sobreposição entre a teoria e a prática. Ele sempre obteve
sucesso na adversidade autoimposta.
Primeiramente, após um
“inverno quase intolerável”, ele se satisfez na solitária e selvagem beleza de
Jura. “Estou me debatendo com esse livro”, escreveu a seu agente, “que eu possa
terminar no final do ano — de qualquer forma eu terei passado pela pior parte
até que possa me manter à distância do trabalho jornalístico até o outono”.
Barnhill, acima do mar
no alto de uma estrada sem movimento, não era grande, com quatro quartos em
cima de uma espaçosa cozinha. A vida era simples, até mesmo primitiva. Não
havia eletricidade. Orwell usava aquecedor a gás para cozinhar e aquecer água.
As lamparinas queimavam a parafina. À tarde ele queimava turfa. Ele ainda
fumava grandes e finos cigarros negros: a fumaça na casa era cômoda, mas nem um
pouco saudável. Um rádio à bateria era a única conexão com o mundo externo.
Orwell, um cavalheiro,
não apegado às coisas mundanas, chegou apenas com um saco de dormir, uma mesa,
um par de cadeiras e alguns potes e panelas. Era uma existência à parte, mas
supria todas as condições sob as quais ele gostava de trabalhar. Ele é lembrado
aqui como um fantasma no nevoeiro, como uma figura esquelética em uma capa.
Os nativos o conheciam
por seu nome verdadeiro, Eric Blair, um homem tristonho, cadavérico e alto que
se preocupava em como enfrentar a si mesmo. A solução, quando se juntaram a ele
o bebê Richard e sua babá, foi recrutar sua irmã, Avril.
Assim que seu novo
regime foi estabelecido, Orwell pôde finalmente traçar um começo para o livro.
No final de maio de 1947 ele disse a seu editor, Fred Warburg: “Acho que devo
ter escrito um terço do esboço.
Eu não cheguei tão
longe, pois fui acometido da ‘saúde desgraçada’ desde Janeiro (meu peito, como
sempre) e não pude me livrar disto”.
Preocupado com a
impaciência de seu editor com a novela, Orwell acrescentou: “É claro que o
esboço é sempre uma bagunça com pouca ligação com o resultado final, mas ao
mesmo tempo, é o principal de todo o trabalho”. Mas então, houve um acidente.
Parte do prazer de viver
em Jura era que ele e seu jovem filho podiam aproveitar a vida ao ar livre
juntos, eles podiam pescar, explorar a ilha, e passear por ai em barcos. Em
agosto, durante um fascinante verão, Orwell, Avril, Richard e alguns amigos,
enquanto voltavam do alto da costa em um pequeno barco a motor, foram jogados
em meio ao famoso redemoinho de Corryvreckan.
Richard Blair lembra
quando ficou “com o sangue congelado” nas águas de frio intenso, e Orwell, cuja
constante tosse preocupava os amigos, teve os pulmões ainda mais comprometidos.
Dentro de dois meses ele ficaria seriamente doente. Tipicamente, sua carta a
David Astor dessa escapada difícil foi breve, e até mesmo indiferente.
O grande esforço com “O
Último Homem na Europa” continuou. No final de outubro de 1947, molestado pela
“saúde desgraçada”, Orwell admitiu que seu romance ainda era “uma bagunça mortal
e quase dois terços disso teriam que ser completamente redigitados”.
Ele trabalhava a passos
largos, inconstantes. Os visitantes de Barnhill se lembram do som de sua
máquina de datilografar vindo de seu quarto, na parte de cima da casa. Então,
em novembro, cuidado pela zelosa Avril, ele teve uma prostração repentina por
causa de uma “inflamação nos pulmões” e disse a Koestler que estava “muito mal,
de cama”. Logo antes do Natal, em uma carta a um colega do “Observer”, ele
acabou com as notícias de que já havia morrido. Finalmente teve seu diagnóstico
de tuberculose.
Alguns dias depois,
escrevendo para Astor do hospital Hairmyres, ele admitiu: “Sinto-me muito
doente”, e reconheceu que, depois que a doença o pegou após o incidente do
redemoinho de Corryvreckan, “como um tolo, eu decidi não ir ao médico — eu
queria terminar o livro que estava escrevendo”. Em 1947 não havia cura para
tuberculose — os médicos prescreviam ar puro e uma dieta regulada — mas havia
uma droga experimental no mercado, a estreptomicina. Astor pediu uma encomenda
de Hairmyres, dos EUA.
Richard Blair acredita
que seu pai recebeu doses excessivas do novo remédio milagroso. Os efeitos
colaterais eram horríveis (úlcera na garganta, bolhas na boca, perda de cabelo,
descascamento da pele e desintegração dos dedos e unhas), mas em março de 1948,
depois de três meses, os sintomas da tuberculose desapareceram. “É como afundar
o barco para se livrar dos ratos, mas vale, se funcionar”.
Enquanto se preparava
para deixar o hospital, Orwell recebeu uma carta de seu editor que, atrasado,
seria outro prego em seu caixão. “É extremamente importante”, escreveu Warburg
para seu autor, “do ponto de vista de sua carreira literária, conseguir isso (o
romance) até o final do ano, o mais breve possível”.
Quando deveria estar em
repouso, Orwell voltou a Barnhill, e mergulhou na revisão de seu manuscrito,
prometendo a Warburg entregar no “começo de dezembro”, em meio ao mau tempo do
outono em Jura. No comecinho de outubro ele confidenciou a Astor: “Eu me acostumei
tanto a escrever na cama que penso preferir isso, embora, é claro, seja um
tanto desajeitado para datilografar aqui. Estou lutando com os últimos estágios
desse livro sangrento”.
A digitação da cópia
original de “O Último Homem da Europa” se tornou outra dimensão da batalha de
Orwell com seu livro. Quando mais ele revisava seu “inacreditavelmente
horrível” manuscrito, mais se tornava um documento que apenas ele podia ler e
interpretar. Era, como ele disse a seu agente, “extremamente longo, com mais de
125.000 palavras”. Com característica franqueza, ele declarou: “Não estou
satisfeito com o livro, mas não estou absolutamente não satisfeito… Acho que
ele é uma boa ideia, mas a execução seria melhor se eu não tivesse escrito sob
a influência da tuberculose”.
E ele ainda estava
indeciso sobre o título: “Estou inclinado a chamar o livro de ‘1984’ ou ‘O
Último Homem da Europa’,” e escreveu, “mas provavelmente posso pensar em outro
título nas próximas semanas”. No final de outubro, Orwell acreditava que tivesse
acabado. Agora ele apenas precisava de um estenógrafo para ajudar a colocar
tudo em ordem, de modo que fizesse sentido.
Era uma corrida
desesperada contra o tempo. A saúde de Orwell estava se deteriorando, e
“inacreditavelmente horrível”, o manuscrito precisava ser redigitado, e o final
de dezembro já rondava. Warburg prometeu ajudar, e também o agente de Orwell.
Não se entendendo com os digitadores, eles conseguiram deixar a situação ainda
pior. Orwell, sentindo a ajuda fora de alcance, resolveu seguir os seus
instintos de “ex-garoto-de-escola-pública”: faria sozinho.
No meio de novembro,
muito fraco para andar, ele se refugiou na cama com o equipamento para a
“horrível tarefa” de digitar o livro em sua “decrépita máquina de
datilografia”, sozinho. Sustentado por infinitos inimigos, xícaras de café, chá
forte e pelo calor da parafina, com ventos fortes esbofeteando Barnhill, noite
e dia, ele continuou. Em 30 de novembro de 1948, estava virtualmente pronto.
As páginas digitadas de
George Orwell chegaram a Londres no meio de dezembro, como prometido. Warburg
reconheceu sua qualidade imediatamente (“dentre os mais horrorosos livros que
já li”) e assim fizeram também muitos de seus colegas. Um memorando interno
declarou: “se não conseguirmos vender de 15 a 20 mil cópias, temos que levar um
tiro”!
Então Orwell partiu de
Jura rumo a um hospital especializado em tuberculose, em Cotswolds. “Eu deveria
ter feito isso há dois meses,” disse a Astor, “mas eu queria terminar aquele
livro sangrento”. Novamente Astor se dedicou em monitorar o tratamento de seu
amigo, mas o especialista responsável por Orwell estava bastante pessimista.
Assim que os comentários
sobre o “1984” começaram a circular, os instintos jornalísticos de Astor vieram
à tona e ele começou a planejar um perfil do “Observer”, um elogio
significativo, mas a ideia foi recebida por Orwell com um “certo alarme”. Assim
que a primavera chegou, ele começou a cuspir sangue, e sentia-se
“desconfortável na maior parte do tempo”, mas ainda era capaz de envolver-se
nos rituais de pré-publicação do romance, registrando “boas notícias” com
satisfação. Ele brincava com Astor que não o surpreenderia se ele “tivesse que
trocar aquele perfil por um obituário”. “1984” foi publicado em 8 de junho de
1949 (cinco dias depois nos EUA) e foi quase que universalmente reconhecido
como uma obra-prima, até mesmo por Winston Churchill, que disse a seu médico
ter lido duas vezes. A saúde de Orwell continuava a decair. Nas poucas horas de
21 de janeiro, sofreu uma hemorragia massiva no hospital e morreu sozinho.
As notícias foram
transmitidas ao mundo pela BBC, na manhã seguinte. Avril Blair e Richard, ainda
em Jura, ouviram a notícia pelo rádio à bateria em Barnhill. Richard Blair não
se lembra se o dia estava claro ou frio, mas lembra do choque da notícia: seu
pai estava morto, com 46 anos.
David Astor arranjou
tudo para o funeral de Orwell nos jardins na igreja de Sutton Courtenay,
Oxfordshire. Ele jaz lá agora, como Eric Blair, entre HH Asquith e uma família
nativa de Gypsies.
Texto publicado
originalmente pelo semanário britânico “The Observer” e traduzido para a
Revista Bula por Amanda Górski
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