Por Jornal
Unidade
O Jornal Unidade entrevistou o jurista Fábio Konder
Comparato, professor doutor titular aposentado da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP). Entre os assuntos, ele discorreu sobre mídia,
judiciário e ditadura na América Latina. "Durante o regime militar
daqueles países do Cone Sul, o Poder Judiciário foi afastado. Ele entrou em
hibernação. E nós mantivemos o Poder Judiciário funcionando sob o tacão e a
espada do Poder Militar. Isso é realmente uma vergonha nacional", lamenta.
Comparato, que é doutor em Direito pela Universidade de
Paris e doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, avalia que alguns
países latino-americanos têm legislações no setor de comunicação mais avançadas
do que o Brasil devido ao caráter de seu povo.
"Isso corresponde à diferença de caráter entre os
brasileiros e os demais povos hispano-americanos. O brasileiro tem caráter
dúplice. Ele é fundamentalmente ambíguo. Ele tem uma aparência de respeito à
Democracia, aos poderes constituídos. E, na verdade, há uma dominação
capitalista dos empresários sobre os poderes públicos. Já no caso dos povos
hispano-americanos, eles são muito mais claros e definidos nas suas opções.
Inegavelmente, os regimes militares argentino, uruguaio e chileno foram mais
cruéis que o regime brasileiro, o que não significa que tivemos uma
“ditadranda”, opina o jurista. Acompanhe abaixo a íntegra da entrevista.
Unidade: Qual a sua análise sobre o poder dos
meios de comunicação no Brasil. O senhor acredita que a Justiça brasileira tem
atuado em benefício dos grandes veículos de imprensa?
Fábio Konder Comparato: Evidentemente, em todos os
países capitalistas, os grandes meios de comunicação de massa se tornaram um
poder concorrente ao poder estatal. E, de acordo com o espírito do capitalismo,
este poder é exercido de modo oculto e dissimulado. Os grandes jornais, rádios,
televisões nunca dizem que tem algum poder sobre o mercado ou sobre a esfera
política. Mas, na verdade, este poder é exercido e a apresentação dos veículos
de comunicação de massa como órgãos que obedecem a lei e que não fazem censura
é profundamente falsa. Mas quem foi que aprovou a lei? Não foram aqueles que
obedecem ao poderio dos grandes meios de comunicação de massa? E estes meios de
comunicação empresariais de massa são contrários à censura? Eles mesmos exercem
uma censura brutal em seu âmbito de atuação.
Unidade: Como o sr. vê o fim da Lei de
Imprensa. Que consequências esta decisão do STF tem para a sociedade
brasileira?
FKC: A meu ver, todos os poderes públicos estão hoje
submetidos à influência dominante dos grandes meios de comunicação de massa. O
Poder Judiciário, em especial, teme muito os grandes jornais, as grandes
televisões. E eu mesmo fui vítima de um caso paradigmático. Em fevereiro de
2009, o jornal Folha de S. Paulo, publicou um editorial no qual, comparando o
regime militar brasileiro com outros regimes militares da América Latina,
sobretudo do Cone Sul, afirmava que no Brasil havíamos tido uma “ditabranda”.
Como eu não leio editoriais, eu só tomei conhecimento dele no dia seguinte, por
que um leitor do jornal, de Minas Gerais, mandou uma carta onde se dizia
indignado com este neologismo. Eu, então, cedendo a meu impulso siciliano,
enviei uma carta ao jornal na qual dizia claramente que o diretor de redação e
o jornalista que redigiu o editorial deveriam ambos pedir desculpas ao povo
brasileiro de joelhos em praça pública. É que eles ofenderam gravemente a
consciência do povo brasileiro. Eles poderiam publicar ou não publicar a minha
carta. Hoje esta possibilidade de não publicar se tornou muito forte. Por que,
desde 2009, é que não existe mais Lei de Imprensa no Brasil.
Unidade: O sr. sofreu alguma represália por
ter escrito esta carta à Folha de S. Paulo?
FKC: Sim. O jornal publicou a minha carta. Mas publicou
embaixo da carta uma nota da redação dizendo que “o professor Fábio Konder
Comparato é cínico e mentiroso, por que nunca criticou outros regimes
ditatoriais como o cubano”. Para grande infelicidade do jornal, o então
ombudsman do jornal, Carlos Eduardo Lins e Silva, publicou uma nota em que
dizia que aquela nota da redação continha um “equívoco”, por que o professor
Comparato, em uma edição da mesma Folha, tinha publicado uma carta criticando o
regime cubano. Evidentemente que o ombudsman foi convidado a se retirar.
Confesso que fiquei muito abalado. Mas, uma publicação dessas, na época o
jornal de maior circulação, dizer que eu era cínico e mentiroso me abalou
muito. Então, eu movi uma ação por danos morais. Eu perdi em primeira instância
e perdi no Tribunal por unanimidade.
Unidade: O sr. acredita que tenha perdido por
qual motivo. Pelo temor dos juízes de confrontar um veículo de comunicação?
FKC: Eu acho que sim, mas há também o fato do jornal
ter se utilizado de um ex-desembargador para convencer os seus antigos pares de
que deveriam votar contra mim. Eu entendo que esta posição do Tribunal foi de
grande fraqueza. Eu não fiz a defesa pessoal no meu caso. Mas, se tivesse
feito, subiria à tribuna e começaria dizendo: “Senhores desembargadores. Vossas
Excelências são cínicos e mentirosos. E, diante do tumulto que isso
ocasionaria, eu diria: foi exatamente esta reação que tive quando recebi estes
epítetos.
Unidade: Como o sr. analisa o papel da
imprensa no Brasil? Alguns colegas chegam a chamar a imprensa como Partido da
Imprensa Golpista (PIG). O sr. acredita que a imprensa se preste a este papel?
FKC: Eu não tenho opinião sobre isso. Eu tenho uma
convicção. Tanto que eu tomei a iniciativa da propositura de uma Ação de
Inconstitucionalidade por omissão no Supremo Tribunal Federal. E a razão é
simples: a nossa Constituição Federal foi promulgada no dia 5 de outubro de
1988 e até hoje, passados mais de 24 anos, o Congresso Nacional não
regulamentou dispositivos fundamentais da Constituição como, por exemplo, a
proibição do monopólio e do oligopólio. Para dar um exemplo, a Rede Globo é a
quarta maior rede de televisão mundial. O Congresso Nacional deixou de
regulamentar o artigo 221 da Constituição que determina que a programação das
emissoras de TV e de rádio obedeça alguns princípios fundamentais como
preferência às matérias de conteúdo cultural, educativo e artístico. Essa ação
foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal em nome do Partido Socialismo e
Liberdade (PSOL)e também da Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Comunicação e Publicidade. E eu quero assinalar o fato que a Presidência da
República, por meio do advogado geral da União, deu parecer contrário a esta
ação, ou seja, confirmou que os poderes da República são submetidos à influência
dominante dos meios de comunicação de massa. Mas a Procuradoria Geral da
República deu parecer favorável. E nós estamos aguardando a decisão.
Unidade: O sr. chegou a acompanhar o que
acontece na Argentina e no Equador em relação às empresas de comunicação. Os
países da América Latina estão mais evoluídos em relação à regulamentação da
mídia?
FKC: Isso corresponde à diferença de caráter entre os
brasileiros e os demais povos hispano-americanos. O brasileiro tem caráter
dúplice. Ele é fundamentalmente ambíguo. Ele tem uma aparência de respeito à
Democracia, aos poderes constituídos. E, na verdade, há uma dominação
capitalista dos empresários sobre os poderes públicos. Já no caso dos povos
hispano-americanos, eles são muito mais claros e definidos nas suas opções.
Inegavelmente, os regimes militares argentino, uruguaio e chileno foram mais
cruéis que o regime brasileiro, o que não significa que tivemos uma
“ditadranda”. Durante o regime militar daqueles países do Cone Sul, o Poder
Judiciário foi afastado. Ele entrou em hibernação. E nós mantivemos o Poder
Judiciário funcionando sob o tacão e a espada do Poder Militar. Isso é
realmente uma vergonha nacional. Pois bem, terminados os regimes militares no
Brasil e no Cone Sul, nós promulgamos uma Lei de Anistia e até hoje os
assassinos, torturadores e estupradores do regime militar não foram sequer
indiciados, sem falar em condenação penal. Enquanto que nesses outros países,
por exemplo, como na Argentina, mais de 100 militares já foram condenados. E
antigos chefes de Estado estão na cadeia até hoje.
Unidade: Quais as alternativas que o sr.
aponta para que a sociedade brasileira possa fazer frente ao grande poderio que
as empresas de comunicação possuem no nosso país?
FKC: Eu acho que a principal missão hoje de todos
aqueles que querem resgatar a honra deste país e instituir um regime claramente
republicano e democrático, consiste em lutar contra o oligopólio empresarial
dos meios de comunicação de massa. E isso tem que ser feito de forma
organizada. Por exemplo, existe um setor da Comunicação Social que não foi
oligopolizado pelo capitalismo, que é a internet. E nós temos que trabalhar
neste setor para mostrar a generalidade da opinião pública e, sobretudo, aos
jornalistas e às novas gerações, que este poder capitalista sobre os meios de
comunicação de massa é absolutamente contrário à dignidade da pessoa humana. No
momento em que desmoralizamos os titulares do poder, eles começam a cair. Não
se trata de fazer revoluções. Trata-se simplesmente de mostrar como eles são
sujos, da cabeça aos pés. E eu acho que isso deve ser feito. E eu acho que
vocês jornalistas têm muito mais capacidade do que nós, não jornalistas, para
organizar isso.
Comentários
Postar um comentário