Por Sylvia
Debossan Moretzsohn
Um jovem está prestes a chegar em casa quando é
abordado por outro jovem que, armado, lhe exige o celular e faz menção de lhe
retirar a mochila. Logo depois, dispara e foge. O tiro atinge a cabeça do jovem
assaltado diante do prédio gradeado que supostamente lhe garantiria segurança.
O rapaz morre ao dar entrada no hospital.
O crime ocorreu na noite de uma quarta-feira (10/4),
num bairro da Zona Leste de São Paulo, e provocou imediata repercussão pela
aparente gratuidade do ato e porque o agressor era menor de idade e estava a
três dias de completar 18 anos. Por isso, era previsível a nova onda a favor da
redução da idade para a imputabilidade penal, desta vez provocada pelo
governador de São Paulo. A mãe do rapaz assassinado declarou que se empenharia
na aprovação da proposta, em nome do filho, cuja morte não poderia passar em
vão.
Os jornais, pelo menos desta vez, não abraçaram a onda
punitiva. Noticiaram a proposta oportunista do governador – oportunista porque
sempre que há um crime de grande impacto é evidente o movimento de capitalizar
apoios em torno de mais punição – mas também apresentaram o contraponto, com
argumentos de criminalistas demonstrando a inutilidade de tal propósito.
Menores pobres e ricos
Mas havia muito mais a discutir, a partir do crime que
chocou porque foi gravado pela câmera do prédio e teve as imagens repetidas à
exaustão nas redes de TV.
“A redução da maioridade penal sempre ganha força no
Congresso quando há um caso de apelo social”, publicou a Folha de S.Paulo, na
sexta-feira (12/4). Na mesma página, o advogado Thiago Bottino argumentava que
“sempre que há um crime envolvendo adolescentes, o tema da reforma do ECA
[Estatuto da Criança e do Adolescente] vem à tona”.
Faltou dizer: sempre que há um crime envolvendo –
melhor dizendo: cometido por – adolescentes pobres...
Porque há vários crimes cometidos por adolescentes
ricos ou de classe média que provocam justa indignação mas jamais o apelo à
redução da maioridade penal. O mais significativo, entre todos, foi o do
assassinato do índio Galdino, em Brasília, em 1997, por um grupo de jovens, um
deles menor de idade. Na época, apesar dos incisivos protestos contra a
barbaridade do ato de atear fogo sobre um sujeito que dormia num abrigo de
ônibus – e a rapaziada alegou pensar que se tratava de um mendigo, não de um
índio, como se isso fosse atenuante –, ninguém pensou em modificar o ECA.
Impunidade?
O rapaz assassinado à porta de casa era estudante da
Faculdade Cásper Líbero e sua morte provocou uma passeata que parou a Avenida
Paulista no dia seguinte ao assassinato: seus colegas empunhavam cartazes
pedindo, entre outras coisas, a “redução da maioridade penal” e o “fim da
impunidade”.
Impunidade? Dados do Ministério da Justiça informam que
o Brasil tinha, em julho do ano passado, quase 550 mil presos – o que, em
números absolutos, significa o quarto lugar mundial, atrás de Estados Unidos,
China e Rússia. Além disso, de acordo com o Departamento Penitenciário
Nacional, esse número de presos é 66% maior do que a capacidade de abrigá-los.
O suposto “fim da impunidade” para os jovens infratores
significaria jogá-los nesse sistema que nunca teve condição de cuidar da sua
“clientela” de sempre – os pretos e brancos quase pretos de tão pobres maiores
de idade. Não é casual que tantos juristas definam as prisões como “universidades
do crime”. A rigor, independentemente da interminável e ociosa discussão sobre
a capacidade de discernimento do jovem ao infringir a lei, seja nos atos mais
banais como nos mais graves, quem defende a manutenção da imputabilidade penal
aos 18 anos quer justamente evitar que um contingente inimaginável de jovens –
pobres – venha a aumentar a superlotação desse sistema já falido.
Tampouco será casual que esse apelo à maior punição
coincida com a cobertura do julgamento dos acusados pelo massacre do Carandiru,
embora sempre possa haver quem considere que aquelas 111 mortes foram pouco,
que talvez todos os presos devessem mesmo morrer.
Porém o “fim da impunidade” é apenas suposto porque o
ECA prevê punição aos infratores, e são raríssimas as reportagens sobre o que
significa ser recolhido a esse “sistema”. Por isso foi tão sugestivo, embora
reduzido, o espaço que o Estado de S.Paulo deu a um ex-interno desse sistema,
na edição de domingo (14/4). Dois dias antes, o mesmo jornal abria generoso
espaço à família do jovem que assumiu o crime. Ali – a serem verdadeiros os
depoimentos da mãe e da irmã – também se desmonta o eterno argumento da
educação como forma de coibir práticas antissociais. Pois o rapaz, apesar de
pobre, teve educação e era evangélico. Já segundo a Folha ele era um
desgarrado, que mal parava em casa e roubava para comprar drogas.
Raciocinar sob emoção?
Seria importante saber, afinal de contas, que tipo de
jovem era esse que acabou assassinando outro logo após lhe levar o celular.
Seja como for, esse tipo de gente só se torna notícia
quando comete crimes chocantes ou quando se oferece para ilustrar reportagens
edificantes sobre o apaziguamento de regiões conflituosas da periferia, como
ocorre no Rio de Janeiro com a propaganda das UPPs e do “empreendedorismo”
nascente nessas favelas, como se antes não houvesse relações sociais, afetivas
e comerciais ali.
Seria importante informar como se dá o processo de
“reeducação” – ou, talvez de “educação” – nas unidades da Fundação Casa. Mais
ainda, seria importante abrir espaço para a discussão sobre as motivações de
quem comete crimes: aí talvez pudéssemos começar a pensar que as questões são
muito mais complexas do que poderíamos imaginar.
Mas, da mesma forma que não é possível legislar sob o
impacto da emoção, tampouco é possível refletir diante de fatos como esse. Quem
estará disposto a raciocinar diante das cenas exaustivamente repetidas na TV?
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