Por Leonardo
Sakamoto
Tenho recebido muitas mensagens de pessoas questionando
meus elogios às mudanças constitucionais que trouxeram mais direitos às
empregadas domésticas. “Quero ver defender isso no dia em que você tiver
filhos”, “Não posso mais pedir para ela preparar algo para eu comer à noite
porque vou ter que pagar hora extra?” e – aquela que adoro – “Já que gosta de
ficar defendendo empregadinha, por que não vem ajudar minha faxineira aqui
então”. Sobre esse último ponto, recomendo a leitura de notícia do The piauí
Herald.
Pensei que era apenas mais um ataque do pessoal que
surfa nas ondas cibernéticas conservadoras, mas meus colegas também têm
recebido o mesmo tipo de achaque em suas caixas postais jornalísticas. Daí,
achei por bem pedir um texto a alguém na mesma situação e condição que os
missivistas chorões. O único pedido dela foi o de manter o anonimato, pois não
quer se indispor (ainda mais) com amigos e família. Segue:
*****
Sou uma mulher branca,
de 42 anos, curso superior completo, cinco filhos, dois casamentos. Trabalho
fora de casa o dia inteiro. Sou adequadamente remunerada pelo que faço e exerço
meu trabalho em condições de liberdade, equidade e segurança, o que me garante
uma vida digna. Para conciliar minhas responsabilidades familiares com as
exigências do meu trabalho, conto com os serviços de duas empregadas domésticas
em minha casa.
Sou consciente de que
meu arranjo trabalho-família só é possível porque está lastreado nas
desigualdades sociais do meu país. Se o Brasil não fosse um país tão desigual,
tão injusto, a diferença entre o que ganho e o que uma empregada doméstica
ganha seria muito menor e eu, certamente, não poderia pagar por um serviço tão
caro.
Se fossemos mais
iguais, as duas empregadas que cuidam dos meus filhos e da minha casa teriam estudado
em boas escolas, como eu estudei, e seriam profissionais qualificadas, como eu
sou. A vida delas seria muito melhor do que é. Ambas ganhariam melhor e não
teriam que deixar seus filhos de segunda a sexta-feira com outras pessoas, para
cuidar dos meus.
Mas a minha vida
também seria muito melhor. Minha demanda por serviços domésticos prestados por
outras pessoas seria a menor possível (por razões econômicas) e tudo dentro de
casa seria diferente: todos os adultos teriam que cuidar de sua própria roupa,
da limpeza dos ambientes que usam individualmente; as crianças teriam mais
consciência sobre a necessidade de manter a ordem dos objetos que usam; a
preparação das refeições e a limpeza dos espaços comuns seria uma linda
oportunidade de colaboração entre todas as pessoas da casa; haveria uma
economia brutal de recursos já que todos seriam mais conscientes da carga de
trabalho envolvida em lavar, limpar, passar, cozinhar.
Cresci em uma casa
onde sempre houve uma empregada doméstica prestando serviços e estou certa de
que isso me fez muito mal. Naturalizou a desigualdade dentro de mim, quando
criança, e me fez sentir que o trabalho doméstico não era para pessoas como eu
e sim para os pobres “que não se esforçaram, não estudaram porque não quiseram
e agora tem mesmo que fazer esse trabalho”.
Parecia justo. Tive
que chegar à vida adulta para perceber que não havia justiça nenhuma nessa
forma de pensar. Que os pobres são pobres não por serem preguiçosos e sim em
função de um caminhão de injustiças sociais acumuladas desde sempre. Mesmo
assim, o fato é que repliquei e sigo replicando esse modelo até hoje dentro da
minha própria casa. Vejo meus filhos crescendo com a mesma inconsciência,
achando que no universo as coisas naturalmente se arrumam (já que tem sempre
uma empregada doméstica arrumando tudo) quando o que acontece é o contrário:
tudo se desarruma o tempo todo e é preciso um esforço constante de por ordem
nas coisas.
E aí,
espetacularmente, a PEC das empregadas domésticas é aprovada. Alegria real em
meu coração! Um passo a mais no rumo da justiça. Solto foguetes coloridos,
quero mais é que tudo mude mesmo. Que a trabalhadora doméstica seja olhada com
todo o respeito com o qual se olha para qualquer outra pessoa trabalhadora. Que
o trabalho dela seja cada vez mais protegido e bem remunerado. Que seja tão
digno quanto o meu. Vai pesar mais no bolso de empregadores? Vai haver
demissões em massa por conta disso? Me poupem… O impacto no bolso de quem
emprega vai ser mínimo. Milhares de empregadas domésticas nem sequer têm suas
carteiras de trabalho assinadas e ganham menos do que o salário mínimo. Nesse
cenário, como assim demissão em massa? Estamos falando do mesmo país?
Incendiária, quero
tocar fogo nas revistas semanais desta semana. Truculenta, tenho vontade de
bater boca com várias mulheres que empregam domésticas e que, injuriadas,
reclamam dessa lei que vai dar mais direitos para essas empregadas “que não
merecem nem um centavo a mais, que são péssimas, que dormem na nossa casa,
comem demais, trabalham pouco, são desatentas, são preguiçosas, ficam grávidas,
tratam mal as nossas crianças…” Meu Deus…
Entendo o que é fazer
uma reclamação sobre o serviço de uma empregada: tal pessoa cozinha mal, lava
mal, não corresponde às expectativas. Já reclamei nesses termos e me parece
natural num processo de ajuste em torno dos acordos de trabalho feitos. Mas
esse tom, que faz referência “às empregadas” é muito nocivo e injusto. Me
perdoem, mas lembra sim uma relação escravagista. Temos muito caminho pela
frente em termos de curar essa relação de trabalho e até lá, pessoalmente,
declaro minha alegria e minha satisfação de me sentir parte de uma sociedade
que caminha num rumo melhor depois da nova lei.
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