Por Felipe
Canêdo
Relatório de mais de 7 mil páginas que relatam
massacres e torturas de índios no interior do país, dado como queimado num
incêndio, é encontrado intacto 45 anos depois.
A expedição percorreu mais de 16 mil quilômetros e
visitou mais de 130 postos indígenas onde foram constatados inúmeros crimes e
violações aos direitos humanos. O governo ignorou pedido do Relatório
Figueiredo para demitir 33 agentes públicos e suspender 17.
Depois de 45 anos desaparecido, um dos documentos mais
importantes produzidos pelo Estado brasileiro no último século, o chamado
Relatório Figueiredo, que apurou matanças de tribos inteiras, torturas e toda
sorte de crueldades praticadas contra indígenas no país – principalmente por
latifundiários e funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) –,
ressurge quase intacto. Supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da
Agricultura, ele foi encontrado recentemente no Museu do Índio, no Rio, com
mais de 7 mil páginas preservadas e contendo 29 dos 30 tomos originais.
Em uma das inúmeras passagens brutais do texto, a que o
Estado de Minas teve acesso e publica na data em que se comemora o Dia do
Índio, um instrumento de tortura apontado como o mais comum nos postos do SPI à
época, chamado “tronco”, é descrito da seguinte maneira: “Consistia na
trituração dos tornozelos das vítimas, colocadas entre duas estacas enterradas
juntas em um ângulo agudo. As extremidades, ligadas por roldanas, eram
aproximadas lenta e continuamente”.
Atrocidades contra
índios ficam sem punição no Brasil
Entre denúncias de caçadas humanas promovidas com
metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais de
varíola em povoados isolados e doações de açúcar misturado a estricnina, o
texto redigido pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia ressuscita
incontáveis fantasmas e pode se tornar agora um trunfo para a Comissão da
Verdade, que apura violações de direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988.
A investigação, feita em 1967, em plena ditadura, a
pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, tendo como base
comissões parlamentares de inquérito de 1962 e 1963 e denúncias posteriores de
deputados, foi o resultado de uma expedição que percorreu mais de 16 mil
quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e visitou mais de 130 postos
indígenas. Jader de Figueiredo e sua equipe constataram diversos crimes,
propuseram a investigação de muitos mais que lhes foram relatados pelos índios,
se chocaram com a crueldade e bestialidade de agentes públicos. Ao final, no
entanto, o Brasil foi privado da possibilidade de fazer justiça nos anos
seguintes. Albuquerque Lima chegou a recomendar a demissão de 33 pessoas do SPI
e a suspensão de 17, mas, posteriormente, muitas delas foram inocentadas pela
Justiça.
Os únicos registros do relatório disponíveis até hoje
eram os presentes em reportagens publicadas na época de sua conclusão, quando
houve uma entrevista coletiva no Ministério do Interior, em março de 1968, para
detalhar o que havia sido constatado por Jader e sua equipe. A entrevista teve
repercussão internacional, merecendo publicação inclusive em jornais como o New
York Times. No entanto, tempos depois da entrevista, o que ocorreu não foi a
continuação das investigações, mas a exoneração de funcionários que haviam
participado do trabalho. Quem não foi demitido foi trocado de função, numa
tentativa de esconder o acontecido. Em 13 de dezembro do mesmo ano o governo
militar baixou o Ato Institucional nº 5, restringindo liberdades civis e
tornando o regime autoritário mais rígido.
O
vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e coordenador do
Projeto Armazém Memória, Marcelo Zelic, foi quem descobriu o conteúdo do
documento até então guardado entre 50 caixas de papelada no Rio de Janeiro. Ele
afirma que o Relatório Figueiredo já havia se tornado motivo de preocupação
para setores que possivelmente estão envolvidos nas denúncias da época antes de
ser achado. “Já tem gente que está tentando desqualificar o relatório, acho que
por um forte medo de ele aparecer, as pessoas estão criticando o documento sem
ter lido”, acusa.
Suplícios
O contexto desenvolvimentista da época e o ímpeto por
um Brasil moderno encontravam entraves nas aldeias. O documento relata que
índios eram tratados como animais e sem a menor compaixão. “É espantoso que
existe na estrutura administrativa do país repartição que haja descido a tão
baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos cuja bestialidade
tenha atingido tais requintes de perversidade. Venderam-se crianças indefesas
para servir aos instintos de indivíduos desumanos. Torturas contra crianças e
adultos em monstruosos e lentos suplícios”, lamentava Figueiredo. Em outro
trecho contundente, o relatório cita chacinas no Maranhão, em que “fazendeiros
liquidaram toda uma nação”. Uma CPI chegou a ser instaurada em 1968, mas o país
jamais julgou os algozes que ceifaram tribos inteiras e culturas milenares.
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