Por Noam Chomsky
Ao longo dos tempos, uma pequeno grupo sempre tenta
apresentar como interesse público o que é interesse privado.
UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA decente deveria ser baseada
no princípio do consentimento dos governados. Essa idéia ganhou aceitação
geral, mas pode ser contestada tanto por ser muito forte quanto por ser muito
fraca. Muito forte, porque sugere que as pessoas devem ser governadas e
controladas. Muito fraca, porque mesmo os governadores mais brutais precisam,
em certa medida, do consentimento dos governados, e geralmente o obtêm não apenas à força.
Estou interessado aqui em como as sociedades mais
livres e mais democráticas têm tratado tais problemas. Durante anos as forças
populares têm procurado obter uma fatia maior na administração de seus
interesses, com algum sucesso ao lado de muitas derrotas. Entretanto,
desenvolveu-se um corpo de pensamento para justificar a resistência da elite à
democracia.
Essas questões foram tratados há 250 anos por David
Hume em obra considerada clássica. Hume estava intrigado com “a facilidade com
que os muitos são governados pelos poucos e a submissão implícita com que os
homens cedem os seus destinos aos seus governantes”. Achava tal fato
surpreendente, pois “a força sempre está do lado dos governados”. Se as pessoas se dessem conta disso,
sublevar-se-iam e derrubariam seus governantes. Chegou à conclusão de que o
governo está baseado no controle de opinião.
Os governados têm o direito de consentir, mas nada mais
além disso. A população é deespectadores, e não de participantes. Assim é a
arena política. A população deve ser inteiramente excluída da arena econômica,
na qual em grande parte se determina o que acontece na sociedade.
Tais questões só ganharam força especial a partir do
primeiro levante democrático na Inglaterra do século XVII. A agitação da época
é freqüentemente descrita como um conflito entre Rei e Parlamento, mas na
verdade parte significativa da população não queria ser governada por qualquer
dos concorrentes ao poder, mas “por cidadãos como nós, que conhecem nossas
necessidades, e não por fidalgos e cavalheiros, que desconhecem as necessidades
do povo e irão somente nos oprimir”, como declaravam em seus panfletos.
Tais idéias perturbaram os homens da melhor qualidade,
como eles mesmos se intitulavam. Estavam preparados para conceder direitos ao
povo, mas dentro de limites e ancorados no princípio de que “por povo não
queremos dizer a ralé confusa e ignorante”, explicavam.
Mas como esse princípio fundamental da vida social
poderia ser reconciliado com a doutrina do consentimento dos governados,
doutrina que já não era então fácil de ser suprimida?
Uma solução para o problema foi proposta por Hutcheson,
famoso filósofo moral contemporâneo de Hume. O filósofo argumentava que o
princípio do consentimento dos governados não é violado quando os governantes
impõem planos que são rejeitados pelo público, se mais tarde as massas
“estúpidas e preconceituosas” consentirem calorosamente com o que foi feito em
seu nome. Podemos adotar o princípio do consentimento sem consentimento.
Este ponto foi aprimorado nos Estados Unidos. Na Guerra
das Filipinas, a imprensa afirmou que o americano estava massacrando os nativos
à moda inglesa. Para dar a isso um tom adequadamente civilizado, um ensaísta
americano engendrou seu próprio conceito deconsentimento sem consentimento: “Se
em anos vindouros [o povo conquistado] vier a admitir que a disputa fora pelo
mais alto interesse de todos, será possível sustentar razoavelmente que a
autoridade foi imposta com o consentimento dos governados, da mesma forma
quando um pai impede a criança de correr para uma rua movimentada”.
A enorme indústria de Relações Públicas tem se dedicado
ao controle da mente pública, como os líderes do mundo dos negócios descrevem a
tarefa.
Alguns anos depois de Hume e Hutcheson os descreverem,
os tumultos da massa popular na Inglaterra estenderam-se às colônias rebeldes
da América do Norte. Os Pais da Pátria (Founding Fathers) também se sentiram
perturbados, como os britânicos da melhor qualidade e quase com as mesmas
palavras. Como um deles disse: “Quando menciono o público, eu quero dizer que
aí incluo só a parte racional. O vulgar ignorante é tão incapaz de julgar os
modos [do governo] como é incapaz de manejar suas rédeas”.
“O povo é uma grande besta que precisa ser domada”,
declarou Alexander Hamilton. Fazendeiros rebeldes e independentes tinham de ser
ensinados, às vezes à força, que os ideais dos panfletos revolucionários não
deveriam ser levados demasiadamente a sério. O povo comum não poderia ser
representado por cidadãos como eles mesmos [do povo], que sabem de suas
agruras, mas por homens responsáveis.
A doutrina reinante foi expressa claramente por John
Jay, presidente da Corte Suprema e do Congresso: “As pessoas que possuem o país
deveriam governá-lo”. Resta uma questão: quem é o dono do país?
Os Estados Unidos são certamente o caso mais importante
para se analisar, se quisermos entender o mundo de hoje e de amanhã. Uma razão
é o seu poder incomparável. Outra, as suas instituições democráticas estáveis.
Ao estudar história, não se pode construir experimentos, mas os Estados Unidos
estão tão próximos quanto possível de um caso ideal de democracia capitalista
de Estado.
O seu principal designer foi um astuto pensador
político: James Madison. Madison salientou, nos debates sobre a Constituição,
que se as eleições na Inglaterra “fossem abertas a todas as classes da
população, o patrimônio dos proprietários de terra seria inseguro”. Uma lei
agrária logo teria lugar, “dando terra aos sem-terra”. A responsabilidade
primeira do governo é “proteger a minoria dos opulentos contra a maioria”,
declarou Madison.
Madison previu que a ameaça da democracia provavelmente
se tornaria mais aguda com o tempo devido ao aumento na “proporção daqueles que
trabalham sob todas as agruras da vida e, secretamente, desejam uma
distribuição mais eqüitativa de suas bênçãos”. Madison temia que esse
contingente pudesse se tornar influente. Ele estava preocupado com os “sintomas
de um espírito de nivelamento”, que já aparecera e advertiu sobre o “perigo
futuro”, se o direito de voto colocasse o “poder sobre a propriedade nas mãos
dos que não tinham parte nela”. Não se pode esperar que “aqueles sem
propriedade ou com esperança de adquiri-la concordem suficientemente com seus
direitos”, explicou Madison. Sua solução era manter o poder político nas mãos
daqueles que “procedem da e representam a riqueza da nação, o conjunto de
homens mais capazes”, em suas palavras, com o povo fragmentado e desorganizado.
O problema do espírito de nivelamento surge também no
exterior, naturalmente. Aprendemos um bocado sobre a teoria democrática
realmente existente, vendo como tal problema é percebido, especialmente em
documentos internos secretos, nos quais os líderes podem ser mais francos e
mais abertos.
Tomem o exemplo importante do Brasil, o colosso do Sul.
Em visita realizada ao país em 1960, o presidente Eisenhower assegurou aos brasileiros que “o nosso
sistema de empreendimento privado socialmente cônscio beneficia o povo todo,
donos e trabalhadores igualmente. Em liberdade, o trabalhador brasileiro fica
feliz, com as alegrias da vida dum sistema democrático”.
Mas os brasileiros reagiram rispidamente às boas novas
trazidas pelos seus tutores do norte. As elites latino-americanas são “como
crianças”, informou o secretário de Estado John Foster Dules ao Conselho
Nacional da Segurança, “praticamente sem capacidade para autogoverno”. Pior
ainda, os Estados Unidos estão “muito mais atrasados que os soviéticos no
controle sobre as mentes e emoções de povos não-sofisticados”.
Em outras palavras, achavam difícil induzir as pessoas
a aceitar a doutrina americana de que os ricos devem pilhar os pobres, um
problema de relações públicas ainda não resolvido.
O governo Kennedy enfrentou o problema mudando a missão
das Forças Armadas da América Latina, que era de defesa hemisférica, para
segurança interna, decisão que gerou conseqüências fatais, a começar pelo golpe
militar no Brasil. As Forças Armadas brasileiras tinham sido consideradas por
Washington como uma ilha de sanidade no país, e o golpe foi saudado pelo
embaixador de Kennedy, Lincoln Gordon, como uma rebelião democrática.
“É a única vitória mais decisiva da liberdade na metade
do século XX”, disse ele. Economista pela Universidade de Harvard, Gordon
acrescentou que a vitória deveria “criar um clima muito melhor para
investimentos privados”, dando uma visão mais aprofundada do sentido dos termos
liberdade e democracia. Proteger o investimento privado dos Estados Unidos e o
comércio é a raiz econômica que está no âmago do interesse político dos Estados
Unidos na América Latina.
O exposto foi extraído de documentos secretos. O
discurso público é, naturalmente, bem diferente. Se nos ativermos a ele,
entenderemos pouco sobre o significado real de democracia, ou sobre a ordem
global dos anos passados, bem como sobre o futuro, uma vez que as mesmas mãos
continuam segurando as rédeas.
O padrão continua hoje. A violadora campeã dos direitos
humanos no hemisfério é a Colômbia, também a principal destinatária da ajuda e
do treino militar dos Estados Unidos nos anos recentes. O pretexto usado é a
guerra às drogas, mas isso é um mito, como regularmente relatam grupos de
direitos humanos que têm investigado o chocante número de atrocidades e os
laços estreitos entre traficantes de narcóticos, proprietários de terras,
militares e paramilitares. O terror
estatal devastou organizações populares e virtualmente destruiu o único partido
político independente, assassinando milhares de ativistas, inclusive candidatos
à presidência. Não obstante, a Colômbia é saudada como uma democracia estável,
revelando mais uma vez o que significa democracia.
Meus comentários sobre as raízes madisonianas dos
conceitos predominantes de democracia foram injustos num aspecto importante.
Assim como Adam Smith e outros fundadores do liberalismo clássico, Madison foi
pré-capitalista, e anticapitalista em espírito. Esperava que os governantes
fossem “estadistas iluminados” e “filósofos benevolentes”, cuja sabedoria
saberia discernir os verdadeiros interesses de seu país.
Madison, porém, logo percebeu o contrário: a minoria
opulenta prosseguiu usando seu recém-adquirido poder, como Adam Smith havia
descrito alguns anos atrás. Eles estavam decididos a perseguir o que Smith
chamou de máxima vil dos patrões: “Tudo para nós e nada para o povo”. Por volta
de 1792, Madison advertiu sobre o crescente estado capitalista em evolução
estar “colocando a motivação de interesse privado no lugar do dever público”,
levando à “real dominação dos poucos sob a aparente liberdade dos muitos”.
“É a minoria inteligente de homens responsáveis que
deve controlar a tomada de decisões”, afirmou em meados do século passado o
jornalista Walter Lippmann, em seus influentes ensaios sobre democracia.
Lippmann foi também a figura mais respeitada do jornalismo norte-americano e
célebre comentarista de assuntos públicos durante meio século. “A minoria
inteligente é uma classe especializada, responsável pelo estabelecimento da
política e pela formação de uma sólida opinião pública”, postulou Lippmann.
“Ela deve estar livre de interferência do povo, que é de estranhos intrometidos
e ignorantes”.
O público tem de ser “posto no seu lugar”, continuou
Lippmann: “sua função é ser espectador de ação e não de participante, a não ser
em práticas eleitorais periódicas, quando ele escolhe entre a classe
especializada“.
Na Enciclopédia de Ciências Sociais, Harold Lasswell,
um dos fundadores da ciência política moderna, advertiu que “a minoria dos
inteligentes” precisa reconhecer a “ignorância e estupidez das massas” e não
“sucumbir aos dogmatismos democráticos de os homens serem os melhores juizes de
seus próprios interesses. Eles não são os melhores juizes, nós é que somos. As
massas precisam ser controladas para seu próprio bem, e em sociedades mais
democráticas, nas quais a força não é disponível, os gerenciadores sociais
precisam se voltar amplamente para uma técnica de controle completamente nova,
grandemente através da propaganda”.
Mas a grande besta é difícil de ser domada.
Repetidamente tem-se pensado que o problema foi resolvido e que o fim da
história foi alcançado, numa espécie de utopia dos patrões.
Isso lembra um momento notável das origens da doutrina
liberal no começo do século XIX, quando Ricardo e Malthus , entre outras
grandes figuras da economia clássica, anunciaram que a nova ciência tinha
provado, com a certeza das leis de Newton, que os pobres só eram prejudicados
quando tentávamos ajudá-los; e o melhor presente que poderia ser oferecido às
massas sofredoras seria libertá-las da ilusão de que têm direito à vida.
Perto da década de 1830 parecia, na Inglaterra, que
tais doutrinas tinham vencido. Mas surgiu um problema imprevisto: as massas
não-inteligentes começaram a inferir: “Se não temos o direito de viver, então
vocês não têm o direito de governar”. O exército britânico teve de enfrentar
tumultos e desordem, e logo uma ameaça ainda maior se esboçou, quando os
trabalhadores começaram a se organizar exigindo leis de fábrica e legislação
social para protegê-los.
Mais para o fim do século, parecia a muitos que a ordem
havia sido restabelecida, embora alguns discordassem. O famoso artista William
Morris ultrajou a opinião respeitável ao declarar-se socialista numa palestra
em Oxford. Ele reconhecia que “era opinião aceita que o sistema competitivo, ou
salve-se quem puder, é o último sistema de economia que o mundo verá; é um
sistema perfeito e, portanto, a finalidade foi com ele atingida”. “Mas se
realmente a história está no fim”, continuou ele, “então a civilização
morrerá”. Morris recusava-se a acreditar
nisso, a despeito de proclamações confiantes dos homens mais doutos. Ele tinha
razão, como as lutas populares o demonstraram.
Jamais houve e nem haverá motivo para acreditar que
somos coagidos por leis sociais misteriosas e desconhecidas, e não por decisões
simplesmente tomadas dentro de instituições sujeitas ao desejo humano –
instituições humanas que têm de enfrentar o teste da legitimidade e que, se
forem reprovadas, podem ser substituídas por outras, mais livres e mais justas,
como freqüentemente ocorreu no passado.
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