Do Movimento em
Defesa da PEC 37
Pense em algumas das mais ácidas críticas que você viu,
leu ou ouviu em relação ao Ministério Público (MP) nos últimos anos. Críticas,
por exemplo, aos eventuais abusos na atuação de membros do MP. À tentativa
maniqueísta da instituição (ou parte dela) de se apresentar como agente
exclusivo do bem, contrapondo-se a outras autoridades, em especial do Poder
Executivo, condenadas a encarnarem o mal. Ou, ainda, críticas ao furor
reivindicatório de uma carreira com remuneração inicial superior a R$ 20 mil
por mês.
O que você nunca viu foi todas essas críticas, e outras
tantas, na boca de alguém que integra os quadros do Ministério Público Federal
(MPF) há 26 anos, ocupa o cargo de subprocurador-geral da República e
atualmente exerce a função de corregedor-geral do MPF. Pois isso que é possível
encontrar no ensaio de Eugênio José Guilherme de Aragão que o Congresso em Foco
publica hoje. Com cerca de 70 mil caracteres, ele não é inédito. Mas, escondido
entre os textos dos 89 autores do livro jurídico Estudos de Direito
Constitucional em homenagem ao professor Michel Temer (Editora Quartier Latin,
2012), passou até aqui despercebido.
É curioso que até agora o artigo não tenha gerado
polêmica. Eugênio Aragão, aspirante a uma cadeira de ministro no Supremo
Tribunal Federal, entrega as intenções provocativas já no título: “O Ministério
Público na encruzilhada – parceiro entre sociedade e Estado ou adversário
implacável da governabilidade?”. E no quinto parágrafo manda ver: “Impõe-se o
debate sobre os limites de atuação do Ministério Público. Esse debate deve
começar, preferencialmente porque de forma menos traumática, no próprio
Ministério Público, que tem assistido à paulatina perda de espaço na
organização do Estado”.
Sem meias-palavras, ele acusa o MP de jogar pelo
confronto contra as autoridades para “causar risco” e assim “aumentar o valor
específico da carreira no cenário remuneratório geral”. Acrescenta que outras
carreiras se inspiraram nessa “dinâmica perversa” e passaram a fazer o mesmo,
ou seja, a “criarem situações de risco precisamente para se valorizarem”.
Afirma Aragão:
“As corporações chegam até mesmo a disputar espaço
capaz de gerar situações de risco. Não é à toa que Justiça, advocacia pública,
Ministério Público e Polícia – e mais recentemente também a Defensoria Pública
– vêm protagonizando embates duros para tomarem, uns, as atribuições dos
outros”.
Basicamente, ele mostra como um organismo desenhado na
Constituição de 1988 com força e características sem paralelo em outros países
do mundo tornou-se, desde então, refém de um corporativismo predatório, que
floresceu em meio a uma “cultura anárquica de individualismo voluntarista entre
os integrantes da carreira”.
História, Direito e Sociologia Política são algumas das
áreas exploradas pelo autor, o que, contraditoriamente, pode tornar o seu
trabalho leitura obrigatória para os “concurseiros”, palavra que ele usa de
modo pejorativo e associa à, abre aspas, “atração que certas carreiras exercem
nos jovens profissionais, por remunerarem bem e serem socialmente prestigiadas,
sem necessária fidelidade às instituições”.
Para facilitar a leitura, dividimos o artigo em duas
partes:
O Ministério Público na encruzilhada – parte 1
O Ministério Público na encruzilhada – parte 2
A discussão proposta por Aragão soa muito atraente
neste momento em que o MPF se prepara para eleger – no próximo dia 17 – os três
nomes da lista da qual sairá o novo procurador-geral da República, cargo máximo
da instituição e que dá direito a presidir o Conselho Nacional, julgador de
todo o Ministério Público brasileiro, que inclui o MP Militar, do Trabalho, do
Distrito Federal e dos estados.
Outro fato torna o momento particularmente rico. O
Ministério Público perdeu a aura de antes e se tornou objeto de ataques com
origens e motivações diversas – ora em razão do envolvimento criminoso de
alguns de seus membros, como aconteceu em Brasília durante o governo José
Roberto Arruda. Ora por causa das reações que o seu bom trabalho causou em
certas áreas, como o Congresso Nacional, onde um terço dos parlamentares
responde a acusações criminais (feitas pelo MPF) no Supremo. Ora por causa dos
conflitos entre membros do MP e outras carreiras de Estado, como os delegados
policiais, principais defensores da PEC 37, hoje uma das maiores ameaças que
pesam sobre o Ministério Público.
Alguns trechos do
artigo
Veja algumas afirmações feitas por Eugênio Aragão no
texto reproduzido na íntegra pelo Congresso em Foco:
“A relação entre o Ministério Público e o governo (ou Poder
Executivo) passou a ser, ao longo dos últimos anos, muito conflitiva.
Abandonando a postura de parceiro, a instituição passou a ser vista, pelo
administrador, como risco à governabilidade”.
“O Ministério Público foi vítima de seu sucesso e de
seu prestígio inicial. A independência funcional de seus membros e a autonomia
administrativa da instituição, que eram seu maior capital, acabaram se
revelando, também, como sua maior fragilidade. No mais, ao longo dos anos,
parte dos membros passou a se encantar com seu poder de admoestação
administrativa. O idealismo orgânico do momento constituinte foi dando lugar à
atuação frequentemente individualista, politizada e corporativista”.
“Até hoje, a lógica da atuação de risco como condição
de prestígio corporativo segue firme. E, na consequência, as corporações de
diversas instituições de Estado disputam o espaço capaz de gerar risco, tendo
como paradigma de sua ação o modelo que marcou o fortalecimento da corporação
dos procuradores da República”.
“Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o
Ministério Público passou a ter um novo concorrente de peso com a advocacia
pública. Seu chefe maior [o hoje ministro do Supremo Gilmar Mendes] era
integrante da carreira do Ministério Público Federal, da qual se afastara para
ter exercício no Executivo e no Legislativo; conhecia bem sua instituição de
origem e passou a confrontá-la severamente. A transformação de procuradores
autárquicos em procuradores federais – antiga reivindicação daquele setor da
advocacia pública, resistida pela corporação do ministério público – obedeceu à
tática de multiplicar o número de carreiras com nomes parecidos, para confundir
o público e, com isso, diluir a importância dos procuradores da República”.
“Usar a advocacia pública como contrapeso ao Ministério
Público podia atender às demandas momentâneas de redução de riscos à
governabilidade, mas, como efeito deletério permanente para o Estado
brasileiro, resultou em sua fragmentação com competências conflitantes, tal e
qual já ocorria e ocorre entre o ministério público e a polícia, no tocante à
investigação criminal. Essa fragmentação enfraquece a ação do Estado e o torna
refém das reivindicações corporativas. É o caso, por exemplo, na cooperação
internacional, da assistência jurídica recíproca em matéria penal, matéria que
tanto o ministério público quanto a advocacia pública reivindicam para seu
âmbito de atribuições. (…) Quem sofre nessa disputa, sempre, é o estado como um
todo, cuja credibilidade se vê diminuída por seus agentes, que se digladiam
publicamente nos foros internacionais”.
“A contínua disputa entre instituições relevantes do
Estado por espaço de atuação com impacto midiático e a ânsia de alguns membros
do Ministério Público e de defensores públicos de mostrar musculação capaz de
interferir na governança – com evidente busca de prestígio que os valoriza para
as reivindicações de classe – tem o potencial de enfraquecer sobremodo a
capacidade de ação da administração pública na execução de políticas
necessárias para o desenvolvimento do país”.
“Não que o Ministério Público não deva exercer seu
controle de legalidade sobre as ações da administração; deve fazê-lo, porém,
sem perder a disposição ao diálogo, à parceria, sem querer reivindicar
justiceiramente um monopólio do espírito público que não lhe pertence. Não
deve, com seu controle, inviabilizar escolhas políticas e bloquear sua
execução, mas garantir qualidade e eficiência no processo e no resultado,
dentro do marco legal existente”.
“Continua, hoje, a tendência a se superestimar a
independência funcional como prerrogativa individual, em detrimento da unidade
e da indivisibilidade. A recusa de dar seguimento às orientações e às
diretrizes dos órgãos centrais – Câmaras de Coordenação e Revisão e, também, o
Conselho Superior – colocam em cheque o governo do Ministério Público”.
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