Por Paulo
Nogueira
Quais os limites do jornalismo e dos jornalistas?
Vejamos a Folha de S. Paulo, por exemplo. Ela procura
se colocar, em editoriais e em publicidade, como uma espécie de fiscal sagrado
dos governos. Tudo bem. Mas é preciso não perder de vista que ela não recebeu
essa incumbência da sociedade.
Não foi votada. Não foi eleita.
Fora isso, existe fiscal que não é fiscalizado?
Jornalismo é, como todos os outros, um negócio. Em
geral, quem investe em jornalismo não está atrás de dinheiro. Os lucros não
costumam ser grandes. O que o jornalismo dá é prestígio, influência.
Empresários interessados em recompensas mais palpáveis fazem suas apostas em
outras áreas.
No começo da década de 2000, quando a internet já
desaconselhava investimentos em papel no Reino Unido, um empresário russo
comprou o jornal inglês The Evening Standard, em grave crise financeira, para
ganhar respeitabilidade.
É um jogo antigo.
Questão da hora
Na biografia semioficial de Octavio Frias de Oliveira,
está publicado um episódio revelador. Nabantino, o antigo dono da Folha, estava
desencantado porque se julgara traído pelos jornalistas que fizeram a greve de
1961. (Meu pai era um deles.) Decidiu vender o jornal. Um amigo comum de
Nabantino e Frias sugeriu que ele comprasse. “Dinheiro você já tem da granja”,
ele disse. “O jornal vai dar prestígio a você.”
Na biografia, a coleção de fotos de Frias ao lado de
personalidades mostra que o objetivo foi completamente alcançado. Um granjeiro
não estaria em nenhuma daquelas fotos.
Ao comprar a Folha, Frias comprou prestígio social – e
adulação do mundo político.
Sendo um negócio, o jornalismo não está acima do bem e
do mal. É natural que prevaleçam, nele, as razões de empresa. Essas razões
podem coincidir com as razões nacionais – ou não. Observe o mais carismático –
não necessariamente o melhor ou mais escrupuloso – empresário de jornalismo da
história do Brasil, Roberto Marinho, da Globo.
Quem garante que o que era melhor para ele era o melhor
para o país? Roberto Marinho era tão magnânimo a ponto de pôr os interesses
nacionais à frente dos pessoais?
Como a sociedade não elegeu empresas jornalísticas,
seus donos não têm que dar satisfação a ninguém sobre coisas como o uso dão ao
dinheiro que retiram. Se decidem vender o negócio, nada os impede.
Essa é a parte boa de você não ter um vínculo ou uma
delegação direta da sociedade. Não existem amarras burocráticas para seus
movimentos. Mas você não pode ficar com a parte boa e dispensar a outra – a que
não lhe garante tratamento privilegiado apenas por ser da imprensa.
No Reino Unido, este é um debate atualíssimo, depois
que o tabloide News of the World, o NoW, de Rupert Murdoch, quebrou todas as
barreiras da decência e da legalidade na busca de furos. O NoW invadia
criminosamente caixas de mensagem de centenas de pessoas, a maior parte delas
celebridades e políticos, para vender mais – e portanto ganhar dinheiro com
isso.
Quando se soube das dimensões do escândalo, o governo
britânico, sob pressão da opinião pública, montou um comitê independente para
rediscutir a mídia – o que é aceitável e o que não é.
Os trabalhos foram comandados por Lorde Brian Leveson,
um juiz de alto nível que sabatinou grandes personagens do universo da
imprensa, sob câmaras de tevê, em busca de luzes. O premiê David Cameron, por
exemplo, teve que explicar a Leveson a natureza de sua relação com o grupo
Murdoch.
Murdoch, ele próprio, na idade provecta de 81 anos, foi
interrogado duas vezes pelo comitê. Neste momento, a questão é se a
autorregulamentação do jornalismo deve ser mantida ou não. As empresas não
gostam, naturalmente, da ideia de que a regulamentação seja tirada de seu
controle.
Ponto de partida
O que muita gente se pergunta, no Reino Unido, é por
que as pessoas deveriam confiar agora na auto-regulamentação depois de seu
espetacular fracasso.
Em seu relatório de recomendações, Leveson defendeu a
criação de um órgão regulador independente das empresas jornalísticas. É
provável que seja este o desfecho no Reino Unido.
O Brasil terá que passar por uma discussão nos mesmos
moldes, em nome do interesse público. Ninguém sabe com certeza dizer quais os
limites do jornalismo no Brasil – nem, ao que parece, a própria Justiça, e
muito menos as empresas jornalísticas.
A autorregulamentação fracassou no Brasil. Um órgão
regulador independente das companhias – e também, naturalmente, do governo e
dos políticos – é tão necessário no Brasil quanto é na Inglaterra.
Na Dinamarca é assim. O Diário defende que se faça o
mesmo no Brasil. O interesse público, este sim sagrado, deve prevalecer sobre o
interesse das empresas jornalísticas. São interesses distintos. Coloquemos
assim, para simplificar: nem tudo que é bom para a família Marinho é bom para o
Brasil.
Numa democracia, para que a mídia exerça o vital papel
de fiscal, ela tem que ser também fiscalizada.
Este é o ponto de partida para um debate urgente no
país.
Paulo Nogueira é jornalista, baseado em Londres;
fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do
Mundo
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