Do site do Projeto Memória
O COMEÇO DE TUDO NO RECIFE
Em 5 de setembro de 1908, nascia Josué Apolônio de
Castro, filho único de Manoel Apolônio de Castro e de Josepha Carneiro de
Castro, na cidade de Recife. O pai de Josué veio com a família de Cabaceiras,
no alto sertão paraibano, durante a grande seca de 1877. Era proprietário de
terras e mercador de gado e leite. Josepha Carneiro, também conhecida como
“Dona Moça”, era filha de senhor de engenho da zona da mata pernambucana, e
tornou-se professora em Recife.
Pernambuco daquela época não apresentava diferenças
consideráveis em relação ao restante do Nordeste brasileiro, estagnado
economicamente e com sua gente sofrida. A situação agravava-se em conseqüência
das terríveis secas que se sucederam no final do século XIX. Só na grande seca
de 1877 a 1879 morreram cerca de 300 mil
pessoas. As secas continuaram se repetindo em 1888/89 e 1898/1900, afetando a
população trabalhadora do sertão que completava séculos, quase três, de
latifúndio e padecimentos. Com a produção paralisada e a economia em crise só
restou aos trabalhadores desempregados a alternativa de migrarem para outras
regiões do território brasileiro. Alguns buscaram a Amazônia e o Centro-Sul
onde se desenvolviam as culturas da borracha e do café, respectivamente, outros
permaneceram no Nordeste.
Josué de Castro estudou em dois colégios tradicionais
do Recife. No primeiro, não se adaptou à rígida disciplina e tornou-se um aluno
rebelde. No segundo, passou a interessar-se pelos estudos graças à influência
do educador Pedro Augusto Carneiro Leão, o qual, segundo Josué, foi a figura
humana que mais influência teve em sua vida.
"Uma influência
discreta, dissimulada, mas no fundo decisiva: a do educador Pedro Augusto
Carneiro Leão, mestre insuperável de inúmeras gerações de pernambucanos,
possuidor de uma penetração psicológica que lhe dava um domínio tranqüilo sobre
a inquieta população de seus jovens alunos. Este grande pedagogo, profundo
conhecedor da alma infantil não pretendeu dominar a fera pela força,
quebrando-lhe o ímpeto selvagem com castigos, mas captar o seu interesse e
desviar sua inquietação para objetivos mais nobres".
O amigo Otávio Pernambucano testemunhou o papel de
Josué de mediador entre o pai e a mãe, que haviam se separado.
"Ele e a Velha Moça adoravam-se. Com o Velho Neco
toda cordialidade, prosa franca, mas um conflito latente – a mesa ali era farta
e lá adiante bem pobre, tudo o que quisesse para si dava-lhe o pai, mas
arengava para dar um pouco mais à Velhinha, àquele não era ilícito, mas aí
estava o preço que o filho cobrava para aceitar a situação. Desconfiado de
ardis, o pai queria saber o que ele fazia do dinheiro, com fundada razão, pois
tinha de sobrar de tanto um tanto para a Velhinha, e assim era também depois,
da mesada do estudante. Esse contraste entre a abastança por um lado e a
miséria pelo outro, foi a constante de toda sua vida, doía, queimava-lhe a
pele, deixou-lhe a marca".
Com sacrifício, os pais de Josué queriam que seu filho
estudasse medicina, na Bahia. Lá, ele permaneceu por três anos e concluiu a
Faculdade no Rio de Janeiro, em 1929, com 20 anos de idade.
Durante o período em que estudou na Faculdade da Bahia,
dois colegas que moravam na mesma pensão exerceram grande influência sobre
Josué: Arthur Ramos e Theotonio Brandão . Ao ver um estudo de Arthur Ramos
publicado nas páginas de “O Jornal”, o jovem Josué se sentiu motivado a
escrever seu primeiro ensaio, A Literatura moderna e a doutrina de Freud,
publicado na “Revista de Pernambuco”.
O jovem pernambucano, Josué de Castro, estudante de
medicina, era extremamente vaidoso, e para demonstrar erudição, saía à rua com
o mais grosso de seus livros de estudo, conforme relata em seu diário. Não via
fronteiras sociais nem culturais que não pudessem ser ultrapassadas, e
acreditava em sua inteligência e competência para conquistar o reconhecimento
de seu trabalho.
“Com Freud fui direto ao estudo da psiquiatria.
Encantei-me com o achado que na Psiquiatria eu poderia relacionar a literatura
com a medicina” . Aos poucos, o interesse por Freud foi diminuindo e começou a
fase da poesia, quando teve publicados seus poemas no Diário da Manhã e na
Revista de Antropofagia. Como muitos jovens artistas da época, foi influenciado
pela Semana de Arte Moderna, ocorrida em 1922.
Os seus vários artigos e crônicas publicados na época
de estudante já revelavam a multiplicidade de interesses: ciência, literatura,
pintura, cinema eram alguns dos temas que foram abordados neste período.
Em 1929, viaja para o México chefiando uma delegação de
estudantes, por ocasião da posse do Presidente Pascual Ortiz Rubio,
ex-embaixador no Brasil. Por este motivo, deixa de comparecer a sua própria
colação de grau, pedindo para alguém responder por ele durante a cerimônia. O
Presidente Rubio, no dia de sua posse presidencial, é ferido a bala, e acaba
por renunciar ao mandato dias depois.
Do México, Josué segue para os Estados Unidos onde faz
estágio por quatro meses na Universidade de Columbia e no Medical Center de
Nova Iorque.
De volta ao Recife, o jovem médico e professor casa-se
em 1934 com sua ex-aluna, Glauce Rego Pinto, com quem veio a ter três filhos:
Josué Fernando, Anna Maria e Sonia.
UM CIDADÃO DO MUNDO
A partir da publicação de Geografia da Fome, em 1946,
Josué de Castro torna-se uma referência internacional. Por seu brilhantismo
intelectual conquistou admiradores por todos os continentes.
Participa, como delegado do Brasil, em 1948, da
Primeira Conferência Latino-Americana de Nutrição, em Montevidéu, promovida
pela FAO, Órgão das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. Na ocasião é
escolhido como membro do Comitê Consultivo Permanente de Nutrição deste órgão.
Em 1950, Josué organiza a Segunda Conferência Latino-Americana de Nutrição da
FAO em Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro.
Castro foi eleito Presidente do Conselho Executivo da
FAO, sediado em Roma, ocupando este cargo por dois mandatos sucessivos, de 1952
a 1956.
Na presidência do Conselho da FAO, promove a realização
da Terceira Conferência Latino-Americana de Nutrição, em 1953, na Venezuela.
Também idealizou uma “reserva internacional contra a fome” para ajudar países em
situação emergencial.
Por suas obras e ações no combate à fome no mundo,
Josué recebe o Prêmio Internacional da Paz, em 1954, doConselho Mundial da Paz.
Em 1957, funda, com o Abade Pierre, e passa a presidir
aAsssociação Mundial de Luta contra a Fome (Ascofam). Faziam parte Padre Pire
(fundador da Universidade da Paz e Prêmio Nobel da Paz), Padre Joseph Lebret,
René Dumont, entre outros. Esta organização não-governamental visava a
concentrar esforços para as ações de transformações sociais importantes para
corrigir as estruturas econômicas provocadoras da fome.
É eleito, em 1960, Presidente do Comitê Governamental
da Campanha Mundial de Luta Contra a Fome, uma iniciativa da FAO.
Em 1962, é designado Embaixador-chefe da delegação do
Brasil junto à ONU, em Genebra.
Em 1963, seu nome é indicado ao Prêmio Nobel da Paz.
O golpe militar de 1964 retira os direitos políticos de
Josué no Brasil. Residindo a partir de então em Paris, prossegue participando
de inúmeros organismos em diversos países. Por convite da ONU, torna-se membro
do Instituto de Formação Humana e Pesquisa dessa organização para tratar de
assuntos ligados à fome.
Em 1965, funda o Centro Internacional para o
Desenvolvimento (CID), uma organização não-governamental voltada para a
assessoria de países subdesenvolvidos. Ele presidirá o CID até 1973.
Participa de um grupo de treze personalidades de
reputação internacional, os Cidadãos do Mundo, reunidos a partir de 1967, para
discutir a formação de instituições mundiais encarregadas de exprimir as
reivindicações de todos os povos. Entre os membros estavam Lord Boyd Orr,
Alfred Kastler, o abade Pierre, Linus Pauling, Rajan Nehru e Bertrand Russell.
Preside a Associação Médica Internacional para as
Condições de Vida e Saúde (Amievs), a partir de 1970. Seu nome é novamente
indicado ao Prêmio Nobel da Paz.
Em 1972, participa da Conferência das Nações Unidas
sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo.
A CASSAÇÃO
Tendo sido investigado pelo Departamento de Ordem
Política e Social do governo brasileiro desde a década de 40, Josué era
caracterizado nas fichas do DOPS como subversivo, pelos encontros de que
participava.
O golpe militar de 1964 interrompe a carreira de Josué
de Castro, então Embaixador do Brasil junto à ONU, silenciando sua voz política
no País. Com o Ato Istitucional nº 1, de 9 de abril, são cassados os seus
direitos políticos por dez anos.
O combate à fome e a necessidade da reforma agrária
eram temas inconvenientes para as forças conservadoras que promoveram o golpe.
No seu exílio em Paris, apesar de sua contínua
atividade, era visível a sua crescente tristeza com o afastamento imposto pelo
Regime Militar. Josué Montello percebeu isto e registrou em seu livro de
memórias a visão de Josué de Castro nas ruas de Paris:
"Nunca esquecerei o encontro que tive no Boulevard
Saint Germain, numa fria tarde de outono, por entre folhas caídas e vento
áspero, com Josué de Castro, de mãos enterradas nos bolsos laterais do
sobretudo, o passo vagaroso, o olhar ensimesmado e distraído. Vinha vindo pela
calçada fronteira, como se não soubesse em que se ocupar na tarde cinzenta,
longe de sua pátria, longe de seus livros, longe de seus amigos. Para mim, que
o conhecera extrovertido e fluente, sua figura alta e triste impressionou.
Dir-se-ia que o exílio tinha-lhe tocado a fonte da vida".
Em Paris, falece no dia 24 de setembro de 1973. Com
discurso do amigo Barbosa Lima Sobrinho, seu corpo foi enterrado no cemitério
São João Batista, no Rio de Janeiro. Aos poucos o Brasil começa a resgatar a
obra do homem que ousou sonhar com um mundo onde não houvesse fome.
Josué de Castro em
dois textos inéditos no Brasil
Livro da Perseu Abramo analisa o autor de “Geografia da
Fome” e apresenta seu projeto contra a miséria, elaborado em 63
“Nunca se falou tanto
sobre a fome no mundo. É um assunto que está na ordem do dia...”, assim o médico Josué de Castro
inicia “O Projeto Tracunhaém”, seu
programa-piloto de combate à fome para o Brasil. A data é 1963, e o original
nunca tinha sido publicado no país, o que acontece agora, neste lançamento da
Editora Fundação Perseu Abramo. Josué de Castro, autor de “Geografia da Fome”,
foi um dos maiores estudiosos brasileiros sobre as questões da fome. Em 2001, a
Fundação Perseu Abramo e o Centro Josué de Castro realizaram em Recife,
Pernambuco, um seminário sobre sua obra. O resultado é “Josué de Castro e o
Brasil”, título que será lançado agora, na Bienal Internacional do Livro,
no Rio de Janeiro.
O livro conta com dois textos inéditos de Josué de
Castro, o do projeto Tracunhaém e um discurso dos anos 50, em que o autor
mostra o paralelo perverso entre a miséria e a corrida armamentista. A
socióloga e professora da UFRJ Anna Maria de Castro, filha de Josué de Castro,
que selecionou os textos inéditos para o livro, destaca: “A preocupação com o
tema Fome e Paz sempre permeou seu pensamento até o fim de seus dias (em 1973,
ele morreu ainda no exílio, na França). Talvez tenha sido esta preocupação, bem
como os trabalhos sobre o assunto, que tenham motivado sua indicação, duas
vezes, para o Prêmio Nobel da Paz, em 53 e 63”. “Josué de Castro e o Brasil”
apresenta ainda uma entrevista com o médico pernambucano.
Diversos intelectuais brasileiros são autores deste
livro. Dois deles, à época do seminário, ainda não tinham se tornado nomes
importantes do governo federal: Humberto Costa, médico e ministro da Saúde, e
José Graziano da Silva, ministro da Segurança Alimentar. Também são autores do
livro: Manuel Correia de Andrade, um dos maiores estudiosos sobre o Nordeste,
Walter Belik, Maya Takagi, Malaquias Batista Filho, Luciano Vidal Batista,
Djalma Agripino de Melo Filho, José Arlindo Soares, Paulo Santana, Renato
Duarte e Michel Zaidan Filho.
A seguir, um pequeno trecho do livro:
“No mangue, tudo é, foi ou será caranguejo,
inclusive o homem e a lama. Não foi na Sorbbone, nem em qualquer universidade
sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome. A fome se revelou
espantosamente aos meus olhos nos mangues do Capiberibe, nos bairros miseráveis
de Recife (...), a lama dos mangues de Recife, fervilhando de caranguejos e
povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo. São seres anfíbios –
habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na
infância com caldo de caranguejo _ este leite de lama_, se faziam irmãos de
leite dos caranguejos. Cedo me dei conta desse estranho mimetismo: os homens se
assemelhando em tudo aos caranguejos. Arrastando-se, acachapando-se como
caranguejos para poderem sobreviver. (...) E quando cresci e saí pelo mundo
afora, vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eu
pensava ser um fenômeno local, um drama do meu bairro, era drama universal.
Aquela lama humana do Recife, que eu conheci na infância, continua sujando até
hoje toda a paisagem do nosso planeta como negros borrões de miséria: as negras
manchas demográficas da geografia da fome.”
Josué de
Castro, 1966, em “A descoberta da Fome”, prefácio para a edição portuguesa de
“Homens e Caranguejos”.
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