Por Paulo
Nogueira, no blog Diário do Centro do Mundo:
E eis que o mundo todo discute os limites da mídia.
A discussão mais rica se dá no Reino Unido. O juiz
Brian Leveson fez recomendações depois de ficar mais de um ano ouvindo pessoas
de alguma forma envolvidas com a mídia. Políticos, jornalistas, donos de
empresas de jornalismo, celebridades cuja privacidade desapareceu, cidadãos
comuns cuja vida a imprensa transformou num inferno – Leveson teve material
para publicar um relatório de 2 000 páginas.
A recomendação principal: a formação de um órgão
regulamentador independente. A auto-regulamentação foi um fracasso, e as provas
disso estão no comportamento da própria mídia britânica.
Para ficar num só caso. A ex-rainha dos tabloides,
Rebekah Brooks, a queridinha de Rupert Murdoch, está escrencadíssima na justiça
britânica. Rebekah está sendo processada sob duas acusações: a) esconder provas
no caso de invasão de caixas postais; b) subornar policiais.
Fiscais não se auto-fiscalizam. Exclamação. Dias depois de divulgado o relatório, o premiê David
Cameron se reuniu com editores de jornais.
Cameron, basicamente, disse a eles que se mexam. Se têm
alguma proposta a fazer, eis a hora, porque “o relógio está correndo”.
Cameron deixou claro seu apoio à essência das
recomendações de Leveson.
1. A independência do novo órgão
regulador em relação às empresas de jornalismo. A independência deve ser
estendida, naturalmente, a outros centros de poder. O órgão não pode estar sob
a tutela nem do Parlamento e nem do governo. Mas de novo: também não pode estar
sob o controle das empresas de mídia.
2. Multas na “casa do milhão de
libras”, quando for o caso.
3. Retificações rápidas e em lugar de
grande destaque.
É mais ou menos o que se tem na Dinamarca, conforme já
escrevi neste Diário. As reparações são feitas na primeira página dos jornais.
A opinião pública britânica apoia maciçamente o
Relatório Leveson. Os ingleses já estavam enojados dos excessos da mídia.
Cameron esboçou fazer reparos a Leveson e a voz rouca das ruas se levantou: o
senhor tem que defender o povo da mídia, e não a mídia do povo. Cameron então
deixou claro que está com Leveson.
No Brasil, vigora a auto-regulamentação.
Funciona?
As próprias empresas colocam freios? Discutem, debatem,
prestam contas para a sociedade? Num caso particularmente rumoroso, um repórter
tentou invadir o quarto de um político em Brasília. Pode? Não pode? O assunto
foi ao menos discutido pela mídia, ainda que fosse para aprovar a conduta do
repórter e da publicação?
Liberdade de expressão não é algo que possa ser
invocado para garantir que a mídia esteja acima da sociedade – e da lei.
Um juiz americano, numa comparação que ficaria célebre,
escreveu que alguém que gritasse fogo num ambiente lotado e fechado não poderia
depois invocar a liberdade de expressão para escapar das consequências da
tragédia que possivelmente provocaria.
Depois de ver o debate britânico, é lastimável ouvir
platitudes como as pronunciadas – sob ampla cobertura – dias atrás pelo juiz
Ayres Britto.
Britto, que acaba de se aposentar do STF aos 70 anos,
fez a defesa da liberdade de imprensa, mas com uma superficialidade que é
chocante, primária, infantil quando contrastada com a mesma defesa da liberdade
de imprensa feita pelo seu colega britânico Brian Leveson. “É um direito
pleno”, afirmou ele.
Sob Pinochet, ou mesmo sob Geisel, Britto mereceria
aplausos. Mas, numa democracia em que uma imprensa livre é um fato da vida, eis
uma frase superiormente tola, e que esconde a real pergunta: qual o padrão
ético da mídia tradicional brasileira, se é que existe algum?
No Reino Unido, Leveson não caiu na falácia de que
liberdade de imprensa significa licença para matar. A sociedade tem que ser
protegida dos excessos da mídia. Ou então a mídia presta um formidável
desserviço ao interesse público.
O que leva Britto a fugir do real debate – não a
liberdade de imprensa, a favor da qual somos todos, vertebrados e
invertebrados, mas a melhor maneira de evitar seus excessos?
Britto tem uma história complicada na família.
Em 2009, um genro seu foi flagrado numa conversa
comprometedora com um político corrupto. Britto seria um dos juízes no
julgamento do político, e o genro usou seu nome.
O caso virou manchete, justificadamente. E Britto,
também justificadamente, disse que não podia responder pelo genro.
Britto teria ficado
intimidado?
É uma possibilidade. Ele foi o principal responsável
pelo fim da Lei da Imprensa, editada na era militar, e diz que aquela é sua
maior contribuição ao país. Um instante: ao país? Que Leveson diga mais ou
menos o mesmo na Inglaterra — não fará por modéstia e decoro — se
compreenderia. Ele enfrentou a ira e o poder de Murdoch, por exemplo.
Britto não é Leveson.
Com o fim da ditadura, a Lei da Imprensa já não causava
cócegas a nenhuma empresa jornalística, e também a nenhum jornalista, Era um
cadáver jurídico.
Para lembrar: a Lei da Imprensa vigorava quando Paulo
Francis caluniou diretores da Petrobras. Mas estes, sabendo o quanto ela era
inoperante, foram processar Francis na justiça americana, uma vez que ele
fizera as acusações em solo dos Estados Unidos. Francis ficou desesperado ao lidar com uma justiça que exigia provas
para assassinato de caráter, e que cobrava pesado pela ausência delas. Morreu
disso, segundo os amigos.
A morte de uma lei já morta trouxe um efeito colateral
nocivo à sociedade. Sumiu, com a Lei da Imprensa, o direito de resposta. O que
significa que a sociedade ficou desprotegida.
Britto se despediu da ativa com esse passivo enorme no
currículo, e repetindo lugares-comuns que não reforçam a imagem da justiça
brasileira e de seus mais elevados expoentes – a despeito do espaço generoso
que os jornais dedicam a seu palavrório oco.
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