Comentário de Hélvio Rech
Os atuais apologistas do mercado, em um
sequestro ideológico sem precedentes, explicam a crise de 2008: não foi o
fracasso do livre mercado que a provocou, mas sim a excessiva regulação estatal.
Nenhuma novidade nisso: Karl Polanyi em seu magistral livro “A GRANDE TRANSFORMAÇÃO”
fez uma original explicação sobre a crise que destruiu a “civilização liberal”
do século dezenove.
Na grande crise de 1929 havia os teóricos
que afirmavam que a origem e, sobretudo, a intensidade da crise estava no fato
de que as medidas liberais não haviam sido aplicadas em sua totalidade. Aliás,
um argumento utilizado para explicar a crise do apagão de 2002 no Brasil, de
que a receituário, agora denominada de “neoliberal” não tinha avançado o
suficiente. Diziam que o problema não é
o excesso de mercado, mas sua falta. É preciso avançar nas privatizações e
desregulamentação da economia. Esse é o passaporte para o paraíso. A história
mostrou o contrário.
Por Slavoj Zizek
A edição de natal da revista britânica The Spectator
publicou um editorial chamado “Por que 2012 foi o melhor ano de todos?” O texto
criticava a ideia de que vivemos em “um mundo perigoso e cruel, em que as
coisas estão ruins e ainda pioram”. Eis o parágrafo de abertura: “Talvez não
pareça, mas 2012 foi o ano mais formidável na história mundial. Essa afirmação
soa algo extravagante, mas pode ser corroborada pelos fatos. Nunca houve menos
fome, menos doenças ou mais prosperidade. O ocidente permanece em um marasmo
econômico, mas a maioria dos países em desenvolvimento está progredindo e as
pessoas estão saindo da pobreza a uma velocidade jamais registrada. Felizmente
o número de mortos pela guerra ou por doenças naturais também está baixo.
Estamos vivendo na idade do ouro.”
Essa mesma ideia tem sido fomentada de modo sistemático
em uma série de bestsellers, que vai de Rational Optimist, de Matt Ridley, a
Better Angels of Our Nature, de Steven Pinker. Também há uma versão mais
prática que se costuma ouvir na mídia, principalmente nos países fora da
Europa: crise, que crise? Vejamos os chamados países do BRIC – Brasil, Rússia,
Índia e China –, ou países como Polônia, Coreia do Sul, Cingapura, Peru, até
mesmo vários Estados da África subsaariana: todos estão progredindo. Os
perdedores são a Europa Ocidental e, até certo ponto, os Estados Unidos – então
não estamos lidando com uma crise global, mas simplesmente com a mudança do
progresso, que se afasta do Ocidente. Um símbolo poderoso dessa mudança não
seria o fato de que, recentemente, muita gente de Portugal, país em crise
profunda, está voltando para Moçambique e Angola, ex-colônias de Portugal, mas
dessa vez como imigrantes econômicos, e não como colonizadores?
Até mesmo com respeito aos direitos humanos: a situação
na China e na Rússia não é melhor agora do que há 50 anos? Descrever a crise
existente como um fenômeno global, como dizem, é uma típica visão eurocentrista
advinda dos esquerdistas que geralmente se orgulham de seu antieurocentrismo.
Nossa “crise global”, na verdade, é um mero abalo local em uma história mais
ampla do progresso geral.
Mas é preciso conter nossa alegria. A pergunta que deve
ser feita é: se a Europa, sozinha, está em declínio gradual, o que está
substituindo sua hegemonia? A resposta é: “o capitalismo de valores asiáticos”
– o que, obviamente, não tem nada a ver com o povo asiático e tudo a ver com a
tendência nítida e atual do capitalismo contemporâneo em limitar ou até mesmo
suspender a democracia.
Essa tendência não contradiz de modo nenhum o tão
celebrado progresso da humanidade – ela é sua característica imanente. Todos os
pensadores radicais, de Marx aos conservadores inteligentes, eram obcecados por
esta questão: qual é o preço do progresso? Marx era fascinado pelo capitalismo,
pela produtividade sem precedentes que ele desencadeava; mas Marx também
frisava que esse sucesso engendra antagonismos. Devemos fazer o mesmo hoje: ter
em vista a face obscura do capitalismo global que fomenta revoltas.
As pessoas se rebelam não quando as coisas estão
realmente ruins, mas quando suas expectativas são frustradas. A Revolução
Francesa ocorreu apenas quando o rei e os nobres começaram a perder o poder; a
revolta anticomunista de 1956 na Hungria eclodiu depois que Imre Nagy já era
primeiro-ministro há dois anos, depois de debates (relativamente) livres entre
os intelectuais; as pessoas se rebelaram no Egito em 2011 porque houve certo
progresso econômico sob o governo de Mubarak, dando origem a uma classe de
jovens instruídos que participavam da cultura digital universal. E é por isso
que o pânico dos comunistas chineses faz sentido: porque, no geral, as pessoas
hoje estão vivendo melhor do que há quarenta anos – os antagonismos sociais
(entre os novos ricos e o resto) explodem e as expectativas são muito mais
elevadas.
Eis o problema com o desenvolvimento e o progresso: são
sempre desiguais, dão origem a novas instabilidades e antagonismos, geram novas
expectativas que não podem ser correspondidas. No Egito, pouco antes da
Primavera Árabe, a maioria vivia um pouco melhor do que antes, mas os padrões
pelos quais mediam sua (in)satisfação eram muito mais altos.
Para não perder o elo entre progresso e instabilidade,
é preciso realçar sempre como aquilo que, à primeira vista, parece ser a
realização incompleta de um projeto social na verdade sinaliza sua limitação
imanente. Existe uma história (apócrifa, talvez) sobre o economista keynesiano
de esquerda John Galbraith: antes de uma
viagem à URSS no final da década de 1950, ele escreveu para seu amigo
anticomunista Sidney Hook: “Não se preocupe, não me deixarei seduzir pelos
soviéticos e voltarei para casa dizendo que eles têm socialismo!”. Hook
respondeu imediatamente: “Mas é isso que me preocupa – que você volte dizendo
que a URSS não é socialista!”. O que Hook temia era a defesa ingênua da pureza
do conceito: se as coisas derem errado com a construção de uma sociedade
socialista, isso não invalida a ideia em si, mas significa apenas que não a
executamos apropriadamente. Essa mesma ingenuidade não é detectada nos
fundamentalistas de mercado da atualidade?
Durante um recente debate televisivo na França, quando
o filósofo e economista francês Guy Sorman afirmou que a democracia e o
capitalismo necessariamente andam juntos, não pude me negar fazer esta óbvia
pergunta: “Mas e a China?”, ao que ele me repreendeu: “Na China não há
capitalismo!” Para o pós-capitalista fanático Sorman, um país não é
verdadeiramente capitalista se não for democrático, exatamente da mesma maneira
que, para os comunistas democráticos, o stalinismo simplesmente não era uma
forma autêntica de comunismo.
É assim que os atuais apologistas do mercado, em um
sequestro ideológico sem precedentes, explicam a crise de 2008: não foi o fracasso
do livre mercado que a provocou, mas sim a excessiva regulação estatal; o fato
de que nossa economia de mercado não foi um verdadeiro Estado de bem-estar
social, mas esteve, em vez disso, nas garras desse Estado. Quando rejeitamos as
falhas do capitalismo de mercado como infortúnios acidentais, acabamos em um
“progress(ism)o” que encara a solução como um uso mais “autêntico” e puro de
uma noção, tentando assim apagar o fogo com gasolina.
Tradução: Rogério Bettoni
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