Por Valéria Nader e Gabriel Brito, do Correio da Cidadania
Iniciado o terceiro ano de Dilma Rousseff à frente da
República, o país encontra-se em uma considerável sinuca econômica. As
reiteradas tentativas de fazer a economia decolar, referendando a ideia de que
o Brasil não seria atingido pela crise mundial, seguem dando no muro, apesar
dos cada vez mais robustos subsídios oferecidos pelo governo ao empresariado,
nacional e internacional.
Para debater o atual cenário, o Correio da Cidadania
entrevistou o engenheiro e professor da USP Ildo Sauer, ex-diretor de petróleo
e gás da Petrobras e implacável crítico dos governos petistas e sua metamorfose
política. Para ele, o atual momento retrata uma disputa “intercapitalista”
entre os diversos grupos de apoio ao governo, subsidiada por bilhões de reais
do BNDES, ávidos em conquistarem espaços nos mais diversos segmentos
econômicos. “Os pacotes de subsídios certamente vão completar o processo que
FHC não conseguiu terminar”, afirma.
Em uma análise mais estrutural, Sauer constata que os
anos petistas no governo central promoveram a fusão de dois projetos nacionais
colocados à mesa no século 20. Preservando a “bem vinda herança maldita de
FHC”, de associação capitalista subordinada, Lula tentou também aplicar parte
da visão cepalina, isto é, criar atores privados nacionais portentosos, a
disputarem mercados e se tornarem hegemônicos em seu setor. Já a ideia de uma
sociedade com “traços nitidamente socialistas”, um terceiro projeto que desde o
século passado ronda a esquerda e que ajudou a embasar o Partido dos
Trabalhadores, caiu no esquecimento.
Desse modo, aliado a um “complô midiático contra a
inteligência nacional”, o governo tenta de todas as formas criar incentivos
para que o atual projeto econômico mantenha seu fôlego e evite a crise social
que está à espreita. Na visão de Sauer, o governo Dilma prossegue fiel aos
paradigmas neoliberais e trata de “destruir tudo que ainda resta de capacidade
de planejamento público”, o que se comprova numa desastrosa gestão do setor
elétrico e na campanha de desmoralização da Petrobras. Tudo em nome dos
interesses da enorme base de sua sustentação do governo.
Quanto aos sempre polêmicos debates energéticos, Sauer
reafirma a ineficiência no planejamento. Sempre pautado pelos grupos privados
que o patrocinam, o governo faz “populismo” no setor com dinheiro do Tesouro
Nacional, sem tocar na enorme lucratividade privada. As estatais estão sendo
levadas ao abismo sem gerar qualquer excedente econômico com destinação social.
“Sob a ótica capitalista, o país vive em crise. Sob a ótica socialista, é um
desastre”.
A entrevista completa com Ildo Luís Sauer pode ser
conferida na íntegra a seguir.
Correio da Cidadania: Aqueles leitores que acompanham a
conjuntura política, econômica e social têm se deparado com um cenário de
muitas ambiguidades: por um lado, está uma grande parte dos interlocutores da
grande mídia, acusando o atual governo Dilma de um aprofundamento inoportuno do
‘dirigismo’ estatal; de outra parte, há os defensores do atual acirramento
daquela que seria uma visão e atuação mais ‘desenvolvimentista’ deste governo;
e há ainda os que criticam esta que conformaria uma falsa dicotomia, vez que o
atual governo pratica novas e mais sorrateiras formas de privatismo na
economia. Como você, que participou do governo Lula e já trabalhou com Dilma,
se posiciona neste debate?
Ildo Sauer: A pergunta é bastante arguta no sentido de
posicionar o debate público e os conflitos que aparentemente estão na mídia. E
posicionar outro debate, que não aparece. Em certa ocasião, afirmei que a
grande questão do governo Lula foi que, ao acordarmos no meio de seu mandato,
descobrimos que na verdade foi um governo de consolidação da hegemonia das
relações sociais capitalistas, como forma de organizar a sociedade brasileira.
Foi isso. Um partido que começou se proclamando socialista se converteu em fio
condutor da consolidação definitiva, ou ao menos aprofundada, do capitalismo
como relação social hegemônica para organizar a produção e a vida do país.
No entanto, há um conflito intercapitalista neste
processo. Num artigo recente, usei tal referência, pois discutia
desenvolvimento, energia e recursos naturais. Discutindo o que seria
desenvolvimento, usamos três referências teóricas de anos anteriores, muitas
delas vinculadas à visão de mundo de Andre Gunder Frank, Ruy Mauro Marini,
Florestan Fernandes etc., em debates que vêm dos anos 50 e 60.
Vou tentar colocar nessa perspectiva: de um lado, a
teoria inspirada em Gunder Frank, da dependência associada, também assinada por
Fernando Henrique Cardoso, proclamando que nesses países, como o Brasil e os
demais da América Latina, não haveria burguesia e estrutura produtiva
organizada dentro dos moldes capitalistas, de modo que não haveria solução a
não ser a associação ao capitalismo internacional.
Simplificando, nada mais
errado que proclamar a frase de FHC “esqueçam o que escrevi”. Ele fez o que
escreveu. De fato, ele internacionalizou grandes setores da economia brasileira
e promoveu privatizações selvagens. Não conseguiu completar o processo porque
houve uma resistência popular, como no caso da Petrobras, e alguns fracassos
rotundos, como o racionamento de energia de 2001. Mas começou pelo sistema
bancário e financeiro, que não precisava ser privatizado por já estar
entranhado – apenas mudaram as taxas de transferência de valor, a taxa de
câmbio e os juros, a partir das quais se estrutura o sistema financeiro.
Na infraestrutura, as telecomunicações foram
privatizadas no tapa, com o processo altamente contestado da Embratel; bancos
estaduais foram privatizados; a Petrobras virou Petrobrax por um tempo, e
também sofreu privatização. E tinha uma cunha. Até então, a Petrobras tinha
sido criada para servir aos consumidores e também à criação da estrutura
produtiva sorbonne-capitalista do Brasil. Porque fornecendo derivados para a
circulação de pessoas e mercadorias, levando essa circulação de mercadorias por
todos os cantos do país – conforme se permitiu com a indústria do petróleo e
automotiva -, com integração ao sistema produtivo, a tendência era de que esse
capitalismo comercial se desenvolvesse de modo cada vez mais subordinado à
lógica financeira.
O sentido era a criação de um outro capitalismo no
Brasil. O que se cria, no entanto, quando FHC tenta privatizar a Petrobras e
não consegue (apesar de ter vendido boa parte das ações) é, de certa forma, um
conflito intercapitalista. De um lado, os capitalistas nacionais, aqueles que
se beneficiaram da ação do Estado, ou do fundo público, como dizia Chico de
Oliveira, pra reduzir a reprodução da força de trabalho, com gasolina,
transporte de alimentos e urbano mais baratos, além do insumo material, no que
foram ajudados. Porém, de outro lado, ao vender as ações da Petrobras na bolsa
de Nova York, o capital financeiro que comprou tais ações passou a cobrar cada
vez mais lucro, de modo que exige uma Petrobras puramente capitalista, voltada
ao interesse dos acionistas, não mais como um instrumento do Estado.
A visão Fernandiana, de tentar criar aqui uma burguesia
e hegemonia capitalistas, caminhava nessa direção, dando ênfase ao capital
financeiro internacional. Nem tanto no caso da Petrobras, que tem muitas
nuances. Mas nas telecomunicações, em muitas áreas do saneamento, em bancos
estaduais como Banespa e BANERJ... Tudo isso foi internacionalizado. Uma terra
arrasada pra privatizar tudo, estradas, rodovias, hidrelétricas. Não
conseguiram privatizar todas as elétricas por conta do racionamento de 2001 e
da resistência dos movimentos sociais.
Correio da Cidadania: Ou seja, a era FHC mais que
corroborou os estudos e inferências teóricas do presidente sociólogo, certo?
Ildo Sauer: Certíssimo. E é ao lado de tal constatação
que está a primeira visão, que acabo de relatar. A segunda visão é a cepalina,
que também entendia que um dos primeiros caminhos para a produção e desenvolvimento
seria a criação de uma espécie de burguesia nas cadeias produtivas da América
Latina e, especialmente, no Brasil. Porém, criando atores nacionais. Pautava-se
na substituição de importações, pra gerar mercado e cadeias produtivas. Tal
visão foi derrubada por Collor e Fernando Henrique imediatamente. Mas também se
trata de uma visão que enxergava um desenvolvimento que, em sua primeira etapa,
passaria necessariamente por uma estrutura capitalista de produção. Essas eram
as duas visões hegemônicas.
Já a terceira visão, que se embasava na análise de Ruy
Mauro Marini, mas teve muita expressão com Milton Santos e Florestan Fernandes,
é a que deu origem a grande parte da inspiração ideológica que, pelo menos no
discurso, estava por trás do PT. Significava o seguinte: não há estrutura
capitalista consolidada no país, e desenvolvê-la não é necessário. Poderíamos
ir direto a outras formas de construção de estruturas sociais, baseadas em
outros valores e princípios, como a solidariedade, a fraternidade, a igualdade,
algo cooperativo. Ou seja, uma estrutura nitidamente socialista. Era isso que
estava na base de grande parte das tendências e grupos do partido, até pouco
antes de chegarem ao poder. Embora já se vissem prefeituras, como a de Ribeirão
Preto, São Paulo e outras, com exceção de Porto Alegre, onde essa visão já não
era presente na prática. O Orçamento Participativo também fazia parte de tal
visão. Assim, o PT era um misto em 2000 – quando, por exemplo, Marta chegou ao
poder em São Paulo, Palocci já tinha ocupado o poder em Ribeirão Preto, e por
lá já havia feito privatizações... Enfim, o PT já se encontrava em metamorfose.
A pá de cal sobre tal visão se deu com a Carta aos
Brasileiros, de 2002, com o teatro de aparente contragosto do candidato Lula, pedindo
ao líder Mercadante que a lesse. Um teatro ao qual assisti pessoalmente, quando
também estava à mesa um Chico de Oliveira assombrado com o que se dizia, assim
como muitos de nós. De qualquer maneira, com o entusiasmo da vitória eleitoral,
parecia que se deixaria a Carta de lado, que tudo não passava de algo pra
marcar uma relação garantidora de governabilidade, com o posterior retorno do
velho discurso, que se tornaria prática. Porém, o tempo foi passando e viu-se,
definitivamente, que a grande missão de Lula, no discurso e na prática, era
abandonar essa terceira visão aqui mencionada.
E a metamorfose que Lula incorporou foi dupla. Assumiu
e absorveu toda a herança de FHC da dependência associada, da hegemonia
financeira no país, de setores privatizados, cujos objetivos são obviamente a
acumulação mais rápida, na escala mais veloz possível, vinculada ao sistema
financeiro internacional. Com os grupos econômicos presentes aqui e lá fora,
através dessa rede de grandes empresas, variadas cadeias produtivas, da
abertura no setor petróleo e em outros mais.
Tanto no governo FHC como no governo Lula, o debate
privatizar empresas versus abertura do espaço econômico parece colocar posições
diferentes. E existem mesmo diferentes posições. Porém, não privatizar a
Petrobras e, ao mesmo tempo, entregar os campos onde é possível encontrar
petróleo ao sistema financeiro internacional é tão grave quanto privatizá-la.
Não privatizar a Eletrobras, mas deixá-la eunuca, incapaz, tornando-a
praticamente inoperante, pra manter o velho discurso, tem o mesmo efeito
econômico que entregar todas as hidrelétricas e o espaço das eólicas. O governo
Lula fez esse hibridismo, de manter a herança que no discurso era maldita, mas
bem-vinda na prática, agora aprofundada em todas as formas de organizar e gerir
empresas estatais, num modelo de subordinação, deixando-as associadas a grandes
empresas multinacionais. E também brasileiras – a grande novidade do Lula.
Correio da Cidadania: E quem são, a seu ver, estas
‘brasileiras, a grande novidade de Lula’?
Ildo Sauer: A Petrobras, por pressão interna, foi
obrigada a se associar aos grupos internacionais na exploração do petróleo, o
que foi mantido nos anos Lula. Houve uma tentativa de vários grupos, de dentro
da Petrobras, de reverter o processo. Mas a pressão de Brasília, comandada pela
então ministra de Minas e Energia, era na direção contrária. O que Lula e seu
governo, em síntese, fizeram? Mantiveram esse sistema, de interesses claros e
definidos, ainda que em contradição, e incorporaram os conflitos ao governo. De
outro lado, resolveu recuperar parte do discurso cepalino, e criar atores
nacionais. E aí aparece algo interessante, notável, sutil: o discurso (de Lula
em 2003) era fortalecer e criar tais atores, pois “se há multinacionais no
Brasil, temos de criar as nossas”. E quem seriam as candidatas? Havia a
Petrobras, mas o grosso eram as empreiteiras contratistas, que são as grandes
patrocinadoras dos quatro ou cinco grandes partidos do país. Não só pra fazer
obras e exercer certo subimperialismo na África e América Latina, financiadas
pelo BNDES, mas também, como ocorrido na Coréia e Japão pós-guerra, crescendo e
se tornando grandes conglomerados.
Assim, a Camargo Correa se expandiu para as redes
elétricas, em associação com Bradesco e CPFL, tendo cada vez mais
distribuidoras elétricas, e caminhando para as rodovias e infraestruturas. A
Odebrecht foi beneficiada pelo longo processo de consolidação da petroquímica
no país, custeado pela Petrobras, tendo, ao final, a hegemonia na Braskem. A
maior beneficiária deste processo nas telecomunicações, a partir de relações
próximas e de longa data com a presidente da República, foi a Andrade
Gutierrez. Todo o grande imbróglio e luta intestina no governo, com italianos,
o grupo TIM, Daniel Dantas, ministros em lados opostos da disputa, e Lula nos
dois lados, acabou consolidando a hegemonia de um grande monopólio nas
telecomunicações, na telefonia celular.
Essa é uma síntese possível do governo Lula, mantendo o
espaço do sistema internacional e também criando grandes atores privados
nacionais. O mesmo se vê na siderurgia, que já vinha de vento em popa, com os
grupos de FHC na CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), com Steinbruch, depois
Gerdau e outros, chegando até a tentar as redes de atacado e varejo no
supermercado. No setor frigorífico, usou dinheiro do BNDES, sabe-se lá sob qual
justificativa estratégica, para um grupo econômico monopolizar todas as redes
brasileiras e comprar as mais importantes dos EUA e Austrália e se proclamar
grande e hegemônico. O mesmo se viu nas bebidas. Tudo isso sempre apoiado por
dinheiro do BNDES. Eis a lógica do que aconteceu em vários segmentos no governo
Lula. Com a sutileza de que foi apoiado, em grande parte, por movimentos
sindicais atrelados ao PT e aos dirigentes partidários que, em geral, vinham de
estratos do trabalho, não do capital.
Além do mais, há os fundos de pensão, outra muleta
importante. Podem atuar pela regra da agilidade privada, mas podem ser
comandados de forma paraestatal desde o Palácio do Planalto, onde se escolhem
seus dirigentes, delegados, prepostos do governo central, utilizando-se toda a
poupança gerada pelos salários dos trabalhadores das estatais e pelas
contribuições das empresas públicas. Essa é a estrutura híbrida que foi criada.
Correio da Cidadania: Como você pode, então, associar
toda esta retomada, destacando o hibridismo a que foi conduzido o governo Lula,
ao debate que está colocado hoje na imprensa, conforme já citado?
Ildo Sauer: O debate colocado hoje é que, dentro e fora
do governo, vemos o embate intercapitalista, de grupos se enfrentando e
tentando monopolizar cada vez mais segmentos com apoio do governo e suas
frações, de tão ampla base. Desde o começo, o governo Lula trouxe os conflitos
de fora da sociedade pra si, pairando sobre todos. Basta citar o movimento
ambientalista comandado por Marina Silva e os conflitos com o setor de Minas e
Energia. Pareciam dois governos diferentes, mas era um só, sob a arbitragem
suprema de Lula, que depois delegou a coroa, parcialmente, à princesa
sucessora, nomeada e ungida ao Palácio.
De modo que, das três vertentes e concepções citadas de
desenvolvimento, a que deu origem ao ideário do partido foi abandonada, em nome
de um hibridismo das outras duas, subordinadas agora ao capital internacional e
ao emergente capitalismo brasileiro, que atua aqui dentro e lá fora também,
sempre ancorado no BNDES e outros recursos públicos.
Assim, o conflito que vemos na mídia são manifestações
desse processo. Há grupos que vêm sendo mais ou menos favorecidos. Com mais
apoio, ou não, dentro da estrutura de sustentação ao governo. De modo que não
sobrou oposição. Por quê? Porque o projeto da chamada socialdemocracia, que na
verdade era neoliberalismo, foi incorporado e plenamente mantido dentro do
atual governo.
Portanto, temos aí a concorrência intercapitalista,
disputando, por exemplo, a Petrobras. Os acionistas querem preços mais elevados
pra terem mais lucros; o governo usa a empresa pra tentar reduzir a inflação, o
custo da reprodução da força de trabalho, da mobilidade. Em favor de quem? De
aumentar a taxa de lucratividade da economia brasileira. Não em favor dos
trabalhadores, mas dos grupos que estão aí, todos com seus representantes e
delegados instalados dentro dos vários órgãos de governo e poder, os chamados
crachás de aluguel. Que muitas vezes são funcionários de carreira, de longa
trajetória, de currículo até respeitável, mas que não estão lá pra cumprir uma
função de Estado, de governo, ou de um programa político transparente; são
delegados que estão lá pra defender seus patrocinadores. Por isso tantos
conflitos, trata-se de um espaço em disputa.
Disputa pela capacidade produtiva brasileira de gerar
excedente econômico no agronegócio, na cadente indústria e na área de serviços,
que em parte se reduz, após sustentar o surto de crescimento econômico dos anos
Lula – visto que os últimos dois anos parecem mais a era FHC. Crescimento que
teve tudo a ver com a explosão dos preços do petróleo, dos produtos
agroindustriais, os minerais, enfim, as commodities do mercado internacional,
em função do processo de expansão produtiva na China, que por sua vez também
está em risco.
Tudo isso passou a gerar uma renda econômica (diferença
entre custos de produção e renda do capital e trabalho diretamente aplicada); o
preço internacional de tais commodities (soja, arroz, milho, carne, frango,
minério de ferro, além da autossuficiência em petróleo) proporcionou uma
diferença grande entre o custo e o preço, permitindo que tamanha renda fosse
reciclada aqui dentro. A taxa de câmbio mantida naquele período ajudou a
reduzir a inflação e o custo da reprodução da força de trabalho, pois grande parte
dos produtos da cesta básica está vinculada ao câmbio, ao dólar, guardando
relação com o mercado internacional. Como consequência paralela, tivemos a
redução da capacidade produtiva da indústria e agora o Brasil corre o risco de
se tornar um país primário, desindustrializado e ausente de várias cadeias
produtivas. Se essa relação de preços das commodities for ameaçada - o que pode
ocorrer, especialmente em função da
expansão da China em muitos países da América Latina e da África, a fim de
acessar esses produtos primários a partir de termos de troca mais favoráveis -,
o país poderá passar por uma crise profunda no futuro. É algo que está no
horizonte.
Correio da Cidadania: Em face deste cenário, como situa
o pacote de infraestrutura que o governo lançou no ano passado, prevendo
investimentos de mais de 100 bilhões de reais nas grandes áreas estratégicas,
como rodovias, ferrovias, portos e aeroportos?
Ildo Sauer: O governo tem feito muita propaganda em
termos de infraestrutura, com poucos resultados. Basta olhar para a
transposição do São Francisco, os planos de expansão de rodovias, ferrovias e
portos deste pacote... Ao invés de organizar a máquina pública, criar
universidades de treinamento para gestão pública - como se fez no serviço
público francês, a exemplo também da Petrobras e algumas outras empresas no
Brasil, que formam seus quadros para tentar fazer seus gestores -, o governo
declara que as empresas públicas são incapazes de gerir qualquer investimento e
que a saída só pode ser privatizar, organizando pacotes de grande incentivo.
Pacotes que certamente vão completar o processo que FHC não conseguiu terminar.
O governo, surpreendentemente, segue esta lógica
mantendo em sua base de apoio setores dos trabalhadores até de segmentos
diretamente afetados pelo pacote. No setor elétrico, isto já ocorreu. E o mesmo
se vê na atual tentativa de desmoralização da Petrobras. A empresa está com
problemas realmente sérios. Mas tais problemas vêm da forma como o governo
conduz a empresa, reduzindo o preço da gasolina a um patamar impeditivo de
prover um excedente de magnitude para a Petrobras. De outro lado, os crachás de
aluguel e delegados de interesses dentro da empresa, vinculados a vários
segmentos do governo, têm feito vários investimentos inaceitáveis, como na
refinaria de Pernambuco, que está saindo por 20 bilhões de dólares. Certamente,
não poderia custar mais do que 7 bilhões, pra não causar prejuízo, porque o
máximo que se consegue no mercado, em média, é um excedente de 7 ou 8 dólares
por barril refinado. E lá, só pra recuperar o investimento, o custo do refino
será de 25 ou 30 dólares. Inviável. Vai perder, não vai recuperar. O Comperj no
RJ é a mesma coisa. No caso do gasoduto Urucu, em Manaus, previsto em 2 ou 3
bilhões de reais, chegou-se a 5 bilhões. Todos estes investimentos ocorrem em
função de uma estrutura de gestão subordinada aos interesses externos, o que só
pode gerar problemas.
O que o governo está promovendo é a destruição da
Petrobras, quando deveria fortalecê-la e usá-la como instrumento de geração de
excedente econômico. Deveria fazê-la produzir todo o petróleo brasileiro, com
pagamento pelos serviços, por 15 a 25 dólares pelo barril, sem impostos,
gerando um excedente de 65 a 75 dólares por barril, já que o barril vale hoje
entre 90 e 100 dólares. O excedente poderia ir direto para um fundo público,
para financiar educação e saúde públicas. Algo semelhante ao que deveria ser
feito na área elétrica, através das hidrelétricas, onde se poderia produzir um
excedente econômico da ordem de 10 bilhões de reais por ano, vendendo energia
próxima ao custo médio, pagando o custo de produção.
O que fez o governo? Está doando essa energia toda,
além dos subsídios que tem concedido, que virão do dinheiro que ele tem em
Itaipu. A Eletrobrás tinha um crédito junto a Itaipu que o Tesouro Nacional
assumiu. Antes, o Tesouro já tinha assumido os créditos da Eletrobrás em
Itaipu. Hoje, Itaipu deve uns 35 bilhões de reais ao Tesouro, que serão pagos
em cerca de 10 anos. São 3,5 bilhões por ano. O que o governo fará com tal
dinheiro? Tentará reduzir custos do sistema elétrico que foi mal gerido, pra
tentar reduzir a tarifa e dar um presente socialmente regressivo aos grandes
consumidores elétricos residenciais, industriais e comerciais. Há um exemplo flagrante:
sei de um empresário maranhense que tem uma mansão que consome energia por 5
mil reais por mês. Se cumprida a promessa de redução de 20% nas tarifas, ele
terá um benefício mensal de mil reais. Um empregado dele, por sua vez, que
ganha pouco mais de um salário mínimo e paga um pouco mais de 60 reais por mês
na conta, terá um subsídio de 12 reais. Algo semelhante acontece no setor
industrial. As maiores beneficiárias serão as grandes empresas, que não
necessariamente irão empregar mais, inovar tecnologicamente e produzir mais.
Apenas aumentarão seus lucros. De modo que esse populismo com o patrimônio
público na área elétrica também vai nessa direção.
O governo Dilma está tentando desmoralizar o resto que
há de possibilidade de gestão pública em setores estratégicos para, no limite,
destroçá-los, como conseguiram os tucanos, tudo à mercê desta disputa
intercapitalista que está colocada. E o BNDES é o grande instrumento. O que é o
BNDES? Um banco 100% público. O governo está com quase 2 trilhões de reais de
dívida pública. Apesar da redução dos juros, ainda paga juros altos sobre a
dívida, que vem aumentando em grande parte para capitalizar o Banco do Brasil,
a Caixa Econômica e, principalmente, o BNDES – no caso do BNDES, de modo a ser
o baluarte dessa ação de tentar desesperadamente gerar investimentos em vários
segmentos, sempre sob a égide privada.
Com o aporte indiscriminado a grupos nacionais e
internacionais, temos aqui uma versão acabada do mencionado hibridismo entre a
dependência associada e a visão cepalina da economia, embora todas
metamorfoseadas e já subordinadas, sem abrir mão de nenhum dos princípios mais
fundamentais e queridos ao neoliberalismo. Lógica que aportou aqui nos anos 90
e não está com jeito nenhum de que sairá. Pelo contrário, está se aprofundando.
É assim que vejo todos esses anúncios, na área
elétrica, do petróleo, especialmente no caso dos novos leilões de campos de
petróleo. Trata-se de áreas onde não se sabe quanto há de petróleo, cuja
exploração não foi terminada ou nem começou, mas que já se encontram
subordinadas à pressão desses que querem açodadamente arrancar toda e qualquer
gota de petróleo, convertê-lo em dinheiro e distribuir esse dinheiro, embora
ainda existam disputas a serem definidas, de modo a se saber quem serão os
beneficiários. E nada garante que a renda resultante desse processo será
revertida socialmente. Estamos arrancando bens naturais únicos, não
reprodutíveis, que pertencem às gerações futuras, e convertendo-os em riquezas
para alguns, deixando uma herança negativa através da poluição, rejeitos e
resíduos, além de cidades inviáveis e uma estrutura produtiva degradada.
De forma que o cenário não me parece favorável, sob
qualquer ótica. Sob a ótica capitalista, o país vive em crise. Sob a ótica
socialista, é um desastre.
Correio da Cidadania: Pensando agora no setor de sua
atuação mais específica, o energético, uma das medidas que mais polêmica causou
nos últimos tempos foi a MP 579, para renovação antecipada das concessões de
geradoras, em sua maioria estatais, sob a prerrogativa de uma necessária e
justa redução das tarifas elétricas. Como vê a medida, os resultados que dela
já emergiram até agora e o seu impacto para as estatais?
Ildo Sauer: Evidentemente, é um ataque contra as
empresas públicas, que já encontram problemas de gestão no presente. Deveriam
fortalecer Furnas, Eletronorte, Chesf, mas estão ‘arrancando’ projetos de
usinas a rodo. No passado, propusemos a criação da estatal Hidrobrás, mediante
operação cooperativa dessas três citadas, mantendo-as íntegras em suas
operações e capacitação, gerando excedente econômico para o país. Agora,
reduziram o custo de 22 mil megawatts de energia, pois Chesf, Cemig e Copel vão
entrar inteiramente na jogada. Mas o governo liquidou a RGE (Rio Grande Energia)
por cerca de 20 bilhões de reais, fora aquilo que já disse de Itaipu, para
indenizar e não deixar morrer a Eletrobrás e suas subsidiárias, especialmente
as três maiores (Furnas, Eletronorte e Chesf).
No entanto, a tarifa que o governo irá pagar (por ele
arbitrada) não custeia nem a operação, quanto mais a manutenção. Portanto,
temos riscos nesse sentido, estamos destruindo a capacidade de engenharia,
estamos destruindo os últimos bastiões que havia de capacidade de planejamento
público, de implementar, produzir e operar sistemas complexos, como eram os
casos de Furnas, Chesf, Eletronorte...
Há críticas às empresas públicas, mas elas deveriam ser
melhoradas, não destruídas. De um lado, trata-se disso, de destruir o resto das
empresas de enorme capacidade, como já revelaram alguns atores do sistema
hidrelétrico brasileiro que estão aí, alvo de tamanha disputa. E de outro lado,
o governo antecipou o fim das concessões usando para isso a RGE, o fundo
produzido por tarifas públicas, entre 18 e 20 bilhões de reais, utilizados pra
dar um fôlego a tais empresas e fazer populismo. O governo vai entregar energia
dessas empresas, antes dos impostos, a cerca de 8 a 10 reais o megawatt/hora
(mW/h). Com impostos, vai chegar a algo próximo de 30 reais o mW/h. No entanto,
esse é o excedente de 10 bilhões de reais por ano que será doado aos grandes
consumidores.
Ou seja, o governo age dessa forma sem mexer na enorme
lucratividade da participação privada no setor elétrico. Há empresas vendendo
energia gerada nas pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), que antes também
eram públicas e foram privatizadas. A energia delas entrava no sistema por 20 a
30 reais o mW/h. Depois da decisão do governo, foram privatizadas e sua energia
recomprada a 200 reais o mW/h, vendida como energia renovável e incentivada. E
o governo tem muitos contratos ainda, desde FHC e nos leilões da própria Dilma,
de energia térmica, que custa hoje entre 180 e 200 reais o mW/h.
Pra manter isso, a estrutura de contratos mal feitos,
com muitos riscos embutidos (que na verdade não existem, tudo pra justificar a
permanência desse tipo de contratos), o governo está esterilizando patrimônio
público – para, ainda assim, manter o Brasil com a terceira tarifa mais cara do
mundo. Caindo talvez pra décimo lugar, mas, de toda forma, sem ter um grande
impacto.
E além do mais, observa-se o mau planejamento. A
expansão do sistema elétrico sob os governos Lula e Dilma fez com que não
tivéssemos suficiente número de usinas hidrelétricas e eólicas operando desde
2011, 2012. O que fez com que agora, mesmo com período chuvoso, usemos todo o
parque termelétrico, com muitas usinas com o mW/h sendo vendido por até 800
reais. Também usinas a óleo diesel com GNL (gás natural liquefeito) importado
entraram em operação, acumulando prejuízos. E agora o governo anuncia pela
imprensa que o custo será absorvido pelo Tesouro Nacional, à custa de mais
impostos ou mais endividamento público. O mesmo Tesouro que financia a expansão
e os benefícios que o BNDES vem outorgando a vários grupos escolhidos.
Note bem: de um lado, o governo reduziu receitas
públicas, a partir da conta de consumo de combustíveis. Um exemplo é o que
ocorre no Amazonas, onde o processo de acabar com as usinas que queimam óleo
diesel demorou anos e ainda nem se completou, mesmo com o gasoduto Urucu/Manaus
disponível desde 2009. E essa conta é distribuída entre todos, chegando agora
ao Tesouro. Vários outros custos que estavam sendo levados ao consumidor agora
vão simplesmente migrar rumo ao Tesouro Nacional. Só que o Tesouro também é do
consumidor, e a diferença é que ele tem de ter um papel mais amplo. Jogar essa
conta sobre os consumidores elétricos apenas alivia a conta daqueles que têm mais
renda e consomem mais energia, as empresas. Portanto, estamos diante de uma
redução tarifária socialmente regressiva.
Ao mesmo tempo, é importante ressaltar, 9 das 12
empresas que mais tiveram lucratividade nos últimos anos no Brasil são da área
de energia. O que indica uma enorme assimetria. Muitas empresas privadas
continuam vendendo energia térmica para o sistema por 180, 200 reais o mW/h.
Agora, pra reduzir o risco de racionamento, o governo está queimando de 800
milhões a 1 bilhão de reais por mês em combustíveis. Uma conta enorme que ou
será rateada entre os consumidores ou, pior ainda, será repassada ao Tesouro
Nacional. O que significa que ou ele se endividará mais ou não haverá dinheiro
pra fazer saúde e educação públicas - os únicos dois caminhos para alterar as
relações sociais dentro do país. Se for mantida a redução tarifária, será à
custa do Tesouro. A máquina de fazer custos está de pé. O governo não fez
mudança estrutural, fez só uma mudança contábil, transferiu o nome de quem paga
a conta. E, claro, tirou das estatais a receita que teriam.
De modo que é assombroso ver o governo que veio do
partido concebido nos anos 80 – a partir das visões de Marini e Florestan, e
com a noção de que poderíamos migrar diretamente de um país ainda não industrializado
e sem base capitalista solidificada para um sistema socialista – adentrar nesse
sistema. Uma lógica onde o Tesouro Nacional e os recursos públicos são usados
pra atender toda gama de interesses incrustados e encastelados dentro de uma
base de governo tão ampla, onde cada um busca seu naco numa disputa que se
manifesta em todos os espaços.
Correio da Cidadania: Mau planejamento à parte, apagão
tem sido palavra-chave no setor, e vêm acontecendo, de fato e com frequência,
notórios cortes de energia em distintas regiões, inclusive nesta capital. O
risco de apagão é real?
Ildo Sauer: Nenhum risco de racionamento pode ser
descartado. Mas só poderemos ter uma impressão mais forte entre abril e maio,
olhando os reservatórios. O “problemaço” do planejamento criou outro grande
problema e uma desgraça criou um alívio. O fato de o país não ter crescido
tanto em 2011 e 2012 fez com que a demanda elétrica não fosse aquela prevista.
Mesmo assim, os reservatórios estão num nível preocupante, não se pode ter certeza
de como estarão até o dia 1º de maio, quando as chuvas de março já terão
encerrado o verão há muito tempo e poderemos fazer um balanço pra saber se,
mesmo com essas térmicas operando a um custo de quase R$ 1 bilhão por mês em
termos de combustível, e com todo esse fiasco energético do governo Dilma, não
teremos a catástrofe ainda maior de ter de cortar o consumo. Mas o fato de a
economia periclitar ajuda a evitar tal quadro.
Assim, ainda que seja baixo o risco de racionamento, a
ameaça está no horizonte. Mesmo que as probabilidades não sejam elevadas, não
se pode descartá-las. Ao mesmo tempo em que a presidente anunciava que não há
risco algum (uma mentira, porque sempre há risco), na reunião do começo do ano
com especialistas do setor elétrico e da climatologia foi dito que, “se não
chover, cabeças vão rolar”. É a frase pronunciada por ela e que saiu dos
bastidores. Fica claro o espírito e o ânimo em relação ao assunto. É evidente
que, no momento, temos de aguardar o fim do período de chuvas, fazer o balanço
em abril e ver em maio qual o nível de conforto, pra seguir operando
normalmente ou pra começar a fazer gestão de carga, dependendo do nível dos
reservatórios.
Outro escândalo é que há usinas eólicas na Bahia e Rio
Grande do Norte, com quase 600 Megawatts de potencial, que estão prontas e não
foram interligadas ao sistema elétrico por falta de transmissão. Algo
semelhante se repete agora. Os escândalos ambientais e agressões sociais que
acompanharam a construção de Santo Antonio e Jirau estão chegando a termo, com
algumas turbinas entrando em operação. E agora faltam linhas de transmissão pra
levar a energia aos centros de consumo. A energia está sendo escoada para o
Acre e Rondônia, liberando a produção de energia térmica. Mas dado o nível de risco
das demais regiões do país, essa energia disponível seria extremamente bem
vinda pra reduzir custos. O que mostra que a capacidade de gestão do governo, e
de quem se proclama grande gerentona, mãe do PAC, na verdade é uma grande
farsa.
Correio da Cidadania: A construção de grandes
hidrelétricas na Amazônia tem como uma de suas justificativas justamente a
necessidade de o país se adequar a uma demanda maior e crescente de energia
elétrica, e de forma sustentável. Você acredita nessa necessidade e argumentação?
O medo de desabastecimento justifica a construção de barragens na região, com
todos os seus conhecidos descalabros sociais, ambientais etc.?
Ildo Sauer: Esse argumento do desabastecimento pode ser
usado, sim. É evidente que, desde 2002, 2003, o programa de governo da Frente
Popular previa que se fizesse um inventário total de todos os recursos
energéticos do país. Hidrelétricas, eólicas, co-geração com bagaço de cana, com
gás natural, PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas), racionalização do uso de
energia... Tudo isso posto numa avaliação técnica, ambiental e social,
descartando-se aqueles projetos que fossem inviáveis social e ambientalmente,
orientando os demais pelo critério técnico-econômico. E sequencialmente, por
ordem de mérito, os projetos seriam postos em prática. Até agora nada disso foi
feito.
O que o governo fez, a partir da expansão da demanda em
2005, foi começar a lançar um monte de projetos. Belo Monte era um deles, que
vinha desde a ditadura militar, ressuscitado com os mesmos problemas sociais e
ambientais, apesar de uma pequena redução do reservatório. O complexo de Santo
Antonio e Jirau, por sua vez, foi herdado da era FHC, um consórcio privado, com
Furnas e Odebrecht no projeto, unicamente. Depois, o governo repartiu as duas usinas
entre seus sócios Odebrecht e Camargo Correa, dando a cada uma delas um sócio
estatal pra servir de muleta na administração dessas duas hidrelétricas do Rio
Madeira. Assim foi feito. O governo certamente vai usar essa ameaça de risco em
seu complô midiático contra a consciência social e tentar enfiar goela abaixo
outros projetos que favoreçam seus sócios, e não a sociedade e seu todo. Estão
aí projetos como São Luiz dos Tapajós e outros mais na linha de tiro.
Temos condição
de atender a toda demanda do país, com os menores custos possíveis, a partir de
uma associação entre projetos hidreletricamente viáveis com projetos eólicos
igualmente viáveis, com a complementação térmica apenas de longo prazo,
operando com combustíveis flexíveis. Mas considerando a fragmentação das
instituições que operam, planejam e dirigem o sistema elétrico e o conjunto de
interesses presentes nesses espaços, a decisão nunca é do interesse público. É
aquela que os grupos de plantão, com mais força de lobby, desejam. Exemplo disso
é o lobby nuclear, que conseguiu enfiar goela abaixo Angra 3, que custará mais
de 10 bilhões de reais só pra ser concluída, quando a energia que gerará
poderia ser providenciada com metade desse dinheiro em eólicas ou hidrelétricas
ambiental e socialmente viáveis. Com o que não restaria como herança às
gerações futuras, sem necessidade e pagando por isso, 1000 toneladas de
combustíveis altamente radioativos, a exigirem cuidado por 300 anos se forem
reprocessados. Está bem que o governo postergou a ideia das quatro usinas
nucleares que tinha proposto pra 2020. Mas há um lobby muito forte no seio do
governo para que tais projetos voltem à agenda. Fato é que o governo central
serve pra arbitrar os interesses expressos em sua base de apoio – econômica, política
e sindical. Mas sempre tem um vencedor aqui e outro acolá nessa trajetória de
implantação quase caótica de projetos energéticos, dentro da lógica do próprio
capitalismo e suas condições inerentes.
Vejo, portanto, o que ocorre no governo do seguinte modo:
disputa por espaço econômico e pela consolidação de interesses patrocinados por
alguns grupos. Porque o interesse público e a ideia de uma sociedade mais
justa, solidária e igualitária– o que exigiria investimentos planejados em
educação e saúde públicas, em infraestrutura, reformas agrária e urbana,
mobilidade, proteção ambiental, ciência, tecnologia – ficou completamente em
segundo plano. O governo se tornou mero árbitro dos interesses aqui descritos
pra tentar manter uma taxa de crescimento minimamente viável e evitar a crise
social, em razão da escassa renda distribuída.
É fato que continuar crescendo a 2%, ou menos, por ano
deixará todo esse projeto ameaçado, certamente. E o que vem depois ainda é uma
grande incógnita, em face da debilidade, lamentável, das propostas genuinamente
de esquerda. Acho que é necessário ressuscitar os princípios de esquerda – não
necessariamente com um partido específico, mas com vários que tenham inserção
nessa visão – para criar uma frente nacional, a exemplo do que foi visto na
Bolívia, Equador, Venezuela. Um processo que teria suas nuances, mas que
retomaria o debate político em novas bases, a fim de produzir outra proposta a
confrontar os grupos reconhecidos hoje: o governo, como centro-direita, e a
oposição, nitidamente neoliberais de direita também. Ambos muito parecidos em
vários aspectos.
O que falta
mesmo para o país é um maior debate e mobilização de esquerda, que está
anestesiada. Uma fração significativa das forças sociais que potencialmente
poderiam ser atores principais de tal mobilização – movimentos sociais,
sindicais e trabalhistas – continua subordinada a um projeto de governo que, na
verdade, nada mais foi que uma traição permanente e contínua aos interesses
mais fundamentais desses mesmos grupos sociais.
Valéria
Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
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