Por Rubens Ricupero
Hugo Chávez passará à história como a manifestação mais
inconfundível da afirmação de um ator político novo na América Latina: as
periferias das metrópoles nascidas da urbanização explosiva das últimas
décadas. Ele foi um dos primeiros a intuir que essas periferias não se sentiam
representadas pelos partidos tradicionais dado o fracasso destes em melhorar a
vida das maiorias. Preenchendo esse vácuo, seu gênio foi tentar dar às
periferias expressão própria, canalizando assim o descrédito desses partidos e
instituições para um movimento de redistribuição imediata de benefícios
tangíveis aos mais carentes: saúde, educação pública, moradia, alimentos.
O tempo histórico de Chávez é diferente do que
prejudicou muitos líderes populares anteriores no continente. Ele é o primeiro
a surgir após a Guerra Fria e o fim do comunismo. Isso e a concentração
estratégica americana no Oriente Médio explicam que os Estados Unidos tenham se
acomodado, embora de mau grado, a seu anti-imperialismo.
Sua circunstância nacional também contrasta com a da
redemocratização na Argentina, no Brasil e no Chile no início dos anos 1980.
Ele não teve de reagir contra uma ditadura militar (a última terminara na
Venezuela em 1958). Seu duplo alvo eram os partidos desmoralizados da
democracia tradicional e a ortodoxia econômica do Consenso de Washington, que
impusera o pacote de ajuste econômico acertado com o Fundo Monetário
Internacional (FMI) pelo presidente Carlos Andrés Pérez (1989). O violento
protesto popular contra o pacote, o "caracazo", e sua brutal
repressão estão na raiz da ascensão que, depois de muitas peripécias, levaria o
jovem oficial paraquedista ao poder (1999).
Entende-se assim que suas prioridades fossem a
refundação da República e uma política econômica e social de signo oposto ao
consenso neoliberal. A palavra refundação sugere que a independência promovida
por Simón Bolívar havia sido confiscada pela oligarquia. Impunha-se, portanto,
abandonar as instituições tradicionais mediante reformas que rompessem os
mecanismos eleitorais, legislativos e judiciais de perpetuação da oligarquia no
poder.
A refundação visava reinventar uma democracia nova, de
participação direta, não mais do tipo clássico de partidos e representação
indireta.
A participação se efetivaria por meio de mecanismos inovadores e pelo
recurso frequente a referendos e consultas diretas aos cidadãos. Uma das
consequências é a autorização de reeleições sucessivas do presidente, que não
escondia a aspiração de governar até 2031. Desaparece na prática o sistema de
pesos e contrapesos e a verdadeira possibilidade de alternância no poder,
características da democracia representativa.
Na visão chavista, seria essa a única maneira de
transformar a economia no sentido de uma radical redistribuição da riqueza e
dos recursos naturais em favor da maioria pobre e mestiça. Para isso criaram-se
mais de 20 programas assistenciais ou de transferência de renda, as chamadas
"misiones bolivarianas". Os preços altos do petróleo forneceram a
Chávez os meios para realizar esse programa, conquistando o apoio dedicado de
mais da metade da população.
Multiplicaram-se nacionalizações e intervenções nas
atividades produtivas sem que tivesse havido real transformação das estruturas
da economia. Apesar do ambicioso objetivo de construir o "Socialismo do
Século XXI", a Venezuela continua a ser o que sempre foi ao longo desses
cem anos: uma economia rentista de petróleo. O que mudou foi o setor que se
apropria agora da maior parcela dessa renda.
O petróleo financiou também a ajuda a Cuba, aos
caribenhos e a criação da Alba, Aliança Bolivariana. Embora haja alguma
semelhança entre os bolivarianos, as diferenças são ainda mais acentuadas. No
fundo, o modelo chavista não se mostrou exportável devido à especificidade
petrolífera venezuelana.
Dotado de grande habilidade tática, Chávez sobreviveu
ao golpe de 2002, à greve geral daquele ano e à derrota de sua reforma
constitucional de 2007. A maioria do chavismo é indiscutível, mas a oposição
oscila em torno de significativa parcela de 40% do eleitorado, expressão de
sociedade polarizada e radicalizada em dois segmentos diferenciados pela classe
social e até pelo grau de miscigenação racial.
O desaparecimento de Hugo Chávez não significará a
extinção do movimento de genuína base social que fundou, da mesma forma que não
se apagaram os legados de Getúlio Vargas, Juan Perón ou Haya de La Torre. Não é
impossível que, num primeiro momento, sua morte gere (como no suicídio de
Getúlio ou na morte de Néstor Kirchner) um efeito de simpatia em favor dos
sucessores. É o que parece ter ocorrido nas eleições regionais de dezembro, em
que a oposição só conseguiu manter três dos sete governos estaduais que
detinha. O desafio do chavismo virá mais adiante, devido ao seu fracasso na
economia e na efetivação de muitas das reformas que tentou introduzir.
Ainda assim, seria pecar por superficialidade
subestimar Chávez devido a seus dotes histriônicos ou descartá-lo como mais um
caudilho populista latino-americano, ignorando a profunda aspiração de transformação
social e cultural à qual buscou dar expressão. A ascensão dos setores populares
próximos da linha de pobreza, sua exigência de dignidade e vida melhor,
continuarão a alimentar na Venezuela e na América Latina movimentos que só se
esgotarão quando se realizar sua promessa. Como o surgimento de um ator novo
acarreta mudanças na posição de outros, é provável que isso gere
desestabilização por décadas como aconteceu na Europa do século XIX.
Não compreender por que milhões de venezuelanos rezam
por Chávez é repetir a experiência narrada por Ernesto Sabato sobre a queda de
Perón em 1955. O escritor comemorava com amigos intelectuais e profissionais
liberais o fim do ditador que envergonhava a Argentina até que, em certo
momento, teve de entrar na cozinha. Lá, todos os empregados choravam...
Rubens
Ricupero foi ministro da Fazenda (1994) e atualmente é diretor da Faculdade de
Economia da Faap
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