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O apagão jurídico produzido por Ayres Britto

Por Luis Nassif
É de responsabilidade principal do ex-Ministro Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal (STF) um dos capítulos mais irresponsáveis da história do Supremo: o fim da Lei de Imprensa sem ter colocado nada no lugar, criando um vazio jurídico.
Foi indesculpável também, a atuação dos demais Ministros – com exceção de Marco Aurélio de Mello – mostrando como o temor reverencial à mídia produz distorções que acabam afetando a própria mídia.
Na história recente da Justiça brasileira, não se tem notícia de vácuo legal semelhante ao criado por Ayres Britto, ao revogar a Lei de Imprensa e não providenciar uma substituição. Foi um absurdo tão grande que gerou críticas até de advogados das empresas jornalísticas. A ponto de ser taxado de “apagão jurídico” pelo maior dos especialistas em Lei de Imprensa, Manuel Affonso Ferreira, também advogado do Estadão.
O álibi de Ayres – aceito pelos seus pares – foi o de que, por ter sido criada no regime militar, a Lei de Imprensa era autoritária. Ora, o Código Penal foi elaborado no Estado Novo. E o Estatuto do Índio no regime militar.
Apesar de criada na ditadura, a Lei de Imprensa era considerada um instrumento legal bem elaborado. Defendia a vítima, ao definir procedimentos rápidos: 24 horas para a resposta do veículo; 24 horas para a decisão do juiz; e publicação imediata da resposta, independentemente da apelação. Mas também resguardava os direitos do veículo, ao acoplar as multas à capacidade financeira do condenado e ao definir prazos de prescrição.
Esses valores (da tabela de preços do veículo para cobrança do espaço utilizado na publicação compulsória da resposta) serviam de base para que o veículo cobrasse o preço do espaço quando tivesse vencido a demanda em segunda instância, isto é, o acórdão que julgou o pedido de resposta improcedente, reformando a sentença, servia de título executivo: bastaria ingressar com uma execução contra o perdedor, juntando o acórdão e a tabela de preços, para ser indenizado.
Esse princípio – da multa pecuniária adequada à capacidade econômica do condenado – acabou se espalhando por todo o sistema penal, mostrando as virtudes da lei.
Continha exageros típicos do período militar, como o possibilidade de prisão do jornalista e a apreensão de periódicos. Mas qualquer Ministro medianamente competente saberia tirar os exageros sem criar o vácuo legal. Não Ayres Britto.
As aberrações de Ayres Britto
Foram muitas as aberrações cometidas por ele.
A primeira, ao eliminar os procedimentos necessários para se obter o direito de resposta, afetou os direitos de milhares de vítimas de abusos. Direito de resposta é reconhecido pela Constituição. Mas sem a definição dos procedimentos, cria-se uma balbúrdia, pois cada ação dependerá do entendimento do juiz.
Não se ficou nisso. No Direito existe o chamado Princípio da Legalidade. Só se pode condenar quando existe lei definindo o crime e a pena. Sempre que revoga uma lei, qualquer Ministro responsável define o momento de aplicação da nova norma.

A Lei de Imprensa vigorava há 42 anos. A Constituição é de 1988.
Ayres Britto não definiu a data de corte, a partir de quando ela deixaria de ter eficácia, se a partir dos novos processos, resguardando os processos já em andamento, por exemplo.  Agora, há pessoas condenadas em 1990 que estão entrando na Justiça pedindo a anulação da pena, já que a Lei foi considerada inconstitucional pelo próprio Supremo.
As reações no Supremo
Em abril de 2009, período de discussão da Lei, o único Ministro a se insurgir contra essa excrescência foi Marco Aurélio de Mello.
Pediu aos Ministros que voltassem atrás em seus votos, alertou que a revogação criaria um vácuo jurídico. “A quem interessa o vácuo normativo? Amanhã se diz que passaremos a ter liberdade. Penso que passaremos a ter conflitos de interesse mediados por um julgador”.
Foi em vão. O temor reverencial em relação à mídia falou mais alto do que a responsabilidade em relação aos direitos individuais..
Sobreveio o caos previsto por Marco Aurélio,
Em dezembro de 2010 o STF analisou a questão do direito de resposta.
O inacreditável Ayres de Britto achou a solução: “Enquanto uma lei de direito de resposta não vem, a Constituição é o bastante. Ela tem eficácia plena e de pronta aplicabilidade”.
Sem a pressão da mídia,  Celso de Mello  vestiu a toga de magistrado competente e reconheceu o óbvio:  apesar de não haver uma lei de imprensa, o direito de resposta era um dispositivo da Constituição mas precisaria de definição dos procedimentos. No mesmo julgamento, Gilmar Mendes admitiu que o STF errou ao derrubar integralmente a Lei de Imprensa, inclusive em artigos que regulavam o direito de resposta.
Ora, mas o próprio Marco Aurélio havia alertado para esses desdobramentos. E pode-se criticar os Ministros por muitos ângulos, não pelo desconhecimento dos procedimentos jurídicos. O que explica essa posição de  nove Ministros terem convalidado essa aventura jurídica? Simples: incapacidade de julgar sem se render ao chamado clamor da mídia.
Trata-se de uma cena à altura dos melhores romances de Eça de Queiroz ou Machado de Assis. Ou do realismo fantástico latino-americano.
O advogado medíocre do interior, alçado à condição de Ministro da mais alta corte, quer deixar sua marca para a história. Escolhe para beneficiário o poder que poderá fotoshoppar sua reputação: a mídia.
Cria um desastre jurídico monumental, mas seus pares recolhem-se em silêncio para não despertar a ira do leão. E convalidam um desastre tão grande que desperta críticas até dos advogados do leão.
Lula tem uma dívida com o país, ao ter mediocrizado a composição do Supremo com as indicações de Ayres Britto, Luiz Fux e José Toffolli.
Mas o Supremo também tem um passivo  de, conhecendo a baixa capacidade de Ayres Britto, ter assinado em branco sobre o voto em que relatou o fim da Lei da Imprensa, por receio de ir contra os grupos jornalísticos.
Faltam estadistas no Supremo.

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