Por Natália Otto,
Do Sul 21
O filósofo esloveno Slavoj Žižek sentou-se frente a uma
plateia lotada na Câmara Municipal de Porto Alegre minutos após o anúncio da
morte do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, na noite de terça-feira (5). A
fala de um dos maiores teóricos da esquerda contemporânea não poderia começar
diferente: “Chávez era um de nós, independente do que se queira dizer sobre
ele”, afirmou, enquanto o burburinho da notícia percorria a plateia.
“Todo mundo gosta de simpatizar com favelas, de fazer
caridade. Caridade é o que existe de mais fashion no novo capitalismo global.
Faz as pessoas se sentirem bem e, ao mesmo tempo, despolitiza a situação”,
prosseguiu Žižek. “Todos querem fazer caridade, mas nem todos querem incluir a
favela na política. Chávez viu que não incluir todos os excluídos significa
viver em uma permanente guerra civil. Por isso ele viverá para sempre, acho”,
sentenciou o teórico.
Nascido em Liubliana, na Eslovênia, em 1949, Žižek é
considerado um dos principais nomes da teoria crítica na atualidade. Com mais
de sessenta obras publicadas, o filósofo veio ao Brasil para lançar seu último
livro, Menos Que Nada: Hegel e a sombra do materialismo histórico, pela editora
Boitempo, que promoveu o evento.
Em uma fala inquieta e bem humorada, com espaço para
longas digressões e até piadas, Žižek falou durante quase duas horas sobre os
rumos – ou a falta deles – dos movimentos de esquerda contemporâneos.
Chávez e o perigo do
“oportunismo de princípios”
“Sempre tento ser um pessimista. Tento resistir a esse
entusiasmo estilo ‘ah meu Deus, Chávez!’”, afirmou Žižek durante a breve
entrevista coletiva que concedeu antes da palestra. Perguntado sobre os
governos de esquerda da América Latina, e ainda sem saber da notícia da morte
de Chávez, contou que, para ele, o problema principal é sempre de ordem
econômica. “Nesse sentido, acho que talvez Chávez tenha sorte demais. Os amigos
dele me dizem que ele não resolve problemas, ele pode se dar ao luxo de injetar
dinheiro aonde queira”, explicou.
“Acho que o maior serviço que alguém pode prestar a
todos esses movimentos de esquerda, como na América Latina, é, neste momento,
sermos críticos e realistas.
Para ser um utópico você precisa ser realista,
senão você acaba se tornando um oportunista de princípios”, disse Žižek. E
explicou: “É muito fácil não fazer nada politicamente, dizendo que não quero
sujar minhas mãos, que sou fiel aos meus princípios, e ainda pensar ‘que
maravilha, não traí meus ideais’. Mas essa é a tragédia da esquerda radical”,
lamentou.
No momento em que o filósofo acabou sua fala sobre a
América Latina, foi avisado de que Chávez havia falecido. “Bom, agora é a hora
de sermos menos críticos”, reiterou. “A luta continua.”
Indecisão e falta de rumo marcam ações da esquerda e
das elites dominantes
“As pessoas não sabem o que querem” foi quase um lema
repetido por Žižek ao longo de toda sua fala. Para ele, nem as elites
dominantes, a esquerda radical, os imperialistas, os manifestantes da Primavera
Árabe e de Wall Street, ou mesmo os teóricos – nenhuma dessas pessoas tem ideia
clara do que busca ou que está acontecendo com o mundo.
“A lição que tiramos de experiências como as da América
Latina é que ainda não temos um novo modelo. O século XX acabou, o comunismo
não funcionou, a social democracia e o estado de bem estar social funcionaram
bem enquanto duraram, mas estão desaparecendo”, pontuou ele.
Apesar da atual falta de rumo da sociedade, o filósofo
afirmou que não é suficiente dizer que vivemos em uma crise do capitalismo. Na
China e na Coreia, ele lembrou, a economia prospera, assim como na maioria dos
países subdesenvolvidos. “A crise existe apenas na Europa e ainda um pouco nos
Estados Unidos”, afirmou.
Žižek apontou a crise financeira de 2008 como um
exemplo que prova que nem mesmo as elites têm controle sobre a sociedade. “Os
marxistas têm essa antiga paranoia de que há um centro imperialista, um grupo
de pessoas que se encontra de dois em dois meses em algum lugar entre
Washington e Wall Street para tomar todas as decisões”, brincou. “Seria até bom
se houvesse um centro assim. Quanto mais eu vejo, mais percebo que isso não
existe, e que eles (elites) não sabem o que estão fazendo”.
Ele falou sobre os movimentos sociais como o Occupy
Wall Street, em que “pessoas protestam contra injustiça, querem democracia,
sentem que o presente sistema econômico é injusto, mas nunca fica claro para
onde elas estão se movendo”, explicou. Ainda assim, a postura de Žižek não é a
de descartar esses movimentos, acentuando ser crucial evitar tanto o
pragmatismo político quanto o “oportunismo de princípios” no momento da ação.
“Não devemos pensar que temos problemas concretos para resolver, como o
racismo, então podemos deixar a batalha ideológica totalmente de lado. Por
outro lado, e acima de tudo, precisamos evitar oportunismos como dizer que o
grande problema é o capitalismo e ficar sentados, esperando a grande revolução
que nunca acontece”, afirmou.
“O que conseguimos com uma modernidade alternativa é o
capitalismo alternativo”
No contexto em que a esquerda não sabe o que quer,
Žižek utiliza a filosofia do alemão G.F.W. Hegel para afirmar que, de fato, é
impossível compreender por completo os rumos do futuro. “Hegel proíbe a
especulação do futuro. Para ele, podemos apenas prever a abertura do futuro”,
explicou o teórico. “Ele fala sobre a alienação da nossa vida, em que o
processo é tão aberto que, quando você faz algo, não pode incluir no que você
está fazendo as consequências da própria ação”.
O filósofo também falou sobre questões de eurocentrismo
e multiculturalismo. Žižek citou o conceito de “modernidades alternativas”, que
sugere uma ideia que é possível pensar uma modernidade para países em
desenvolvimento, pós-coloniais, que não seja eurocêntrica. “O que conseguimos
com a modernidade alternativa é o capitalismo alternativo”, afirmou ele.
“Acho que essa é uma tese muito perigosa. O marxismo
compreende que há certos antagonismos que são inerentes ao capitalismo. A
teoria da modernidade alternativa pensa esses antagonismos como se eles não
pertencessem ao capitalismo em si, e sim a alguns tipos de capitalismo”,
explicou. “O capitalismo é um fenômeno global, um sistema que pode funcionar em
qualquer civilização. Devemos rejeitar essa ideia de um relativismo do
capitalismo, pois ele é multicultural”, pontuou o filósofo.
Žižek afirmou que mesmo o imperialismo colonial foi
multicultural, e usou como exemplo a colonização britânica na Índia, que teria
reintroduzido o sistema de castas no país – depois tido pelos indianos como um
traço cultural seu e, portanto, fazendo com que sua manutenção ganhasse a
aparência de um ato anticolonialista. “Em um processo dialético, você perde
alguma coisa, mas o que você perde não precede a perda. Você perde algo e
retroativamente o sonho de ter o que você perdeu emerge”, explicou Žižek.
A crise na Europa e a “ameaça liberal”
Sobre a recente crise na Europa e a decorrente ascensão
do nazifascismo na região, em especial na Grécia, o filósofo afirmou que “o que
está acontecendo na Europa não é um fenômeno mundial, e sim algo muito
particular”. Para ele, estes grupos que buscam proteger o legado europeu são a
verdadeira ameaça da região. “Há coisas no legado europeu pelas quais vale a
pena lutar, como o estado de bem estar social, mas não é isso que está
ocorrendo”, lamentou.
Ainda assim, Žižek lembrou do perigo de que a retórica
contrária aos grupos nazifascistas consiga unir os liberais e os esquerdistas.
“Eu não ficaria muito fascinado com esse perigo do novo fundamentalismo. É uma
ameaça liberal, como se eles dissessem ‘esqueça as suas ideologias, temos um
mesmo inimigo’, e não é tão simples assim”, explicou.
“Precisamos lembrar que são as dinâmicas do capitalismo
global que geram o fundamentalismo”, ressaltou Žižek. “Então há um limite na
interação entre os esquerdistas e os liberais na luta contra o fundamentalismo.
Temos que permanecer esquerdistas como princípio”, pontuou.
Žižek, que diz de si mesmo não ser um “otimista fácil”,
voltou à Hegel para finalizar sua fala pedindo que a esquerda não se deixe
carregar “no trem da história”, aguardando passivamente um progresso futuro.
“Se o capitalismo seguir no rumo em que está indo, vamos acabar com uma
sociedade na qual eu não gostaria de viver”, alertou o filósofo. “Na Eslovênia,
costumamos dizer que sempre há uma luz no final do túnel. E essa luz é,
geralmente, o farol de um outro trem vindo na nossa direção”, sentenciou ele.
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