Por Jorge O.
Romano
O noticiário em todo o mundo aponta para uma alta
generalizada de preços, dando especial ênfase ao aumento do petróleo e dos
alimentos básicos de consumo. As manchetes destacam que, em 2007, a inflação
nos Estados Unidos foi de 4,1% e, nas nações em desenvolvimento, 6,69%. Em
2008, atingiu 3,7% na Comunidade Européia, o maior nível dos últimos 15 anos.
No Brasil chegou a 5,41%. Assim, a inflação, e não o crescimento, está se
transformando na principal preocupação em nível macroeconômico global. “O
dragão que parecia domado nos anos 1990 escapou da jaula”, destacava a revista
Carta Capital em 28 de maio.
Nas commodities minerais, o aumento do petróleo superou
todas as expectativas. Em junho de 2008, o valor do barril atingiu U$ 140, o
quádruplo de 2003. Por sua vez, os principais grãos como trigo, milho, arroz e
soja em média dobraram de preço no mercado internacional entre a safra de 2006
e hoje. A “aginflação”, ou seja, a influência do aumento dos alimentos na
aceleração inflacionária no mundo é destacada por vários analistas. De acordo
com reportagem da Folha de S. Paulo1, na China, no Japão e em alguns
paises da África Central, o aumento dos preços dos alimentos contribuiu em até
75% com a inflação no ano passado.
A tendência de alta no custo da comida continua forte.
O índice de preços dos alimentos do Banco Mundial subiu 57,5% no primeiro
trimestre deste ano, destacando-se o crescimento de itens essenciais da dieta
de populações de baixa renda, como o arroz. Este aumento tem sido motivo de
protestos populares – muitos deles com mortes – na Costa de Marfim, Egito,
Camarões, Bangladesh, Índia, Filipinas, Haiti e México. São 33 países sofrendo
com a crise e a instabilidade social, correndo o risco de não conseguir mais
alimentar o povo com o atual modelo de agricultura. O já enorme contingente de
854 milhões de pessoas que passam fome no mundo pode crescer em mais 100
milhões, alerta o Programa de Alimentos das Nações Unidas.
Por isso, a fome volta a ter destaque entre os fatores
que geram instabilidade. A crise pode alterar a geopolítica mundial e tornar os
alimentos catalisadores de outros conflitos e instrumentos de pressão política.
Os países mais vulneráveis são os importadores líquidos de alimentos. O Ocidente,
com suas empresas transnacionais, controla quase todo o comércio mundial do
setor.
Autoridades governamentais e de organismos
internacionais, agentes financeiros, representantes do agronegócio, acadêmicos,
jornalistas e militantes de movimentos sociais e de organizações
não-governamentais têm atribuído o aumento dos preços dos alimentos a diversas
causas.
Assim, apontam-se
fatores relativos à demanda, como:
1. O aumento do consumo por populações
saídas da situação de pobreza em países emergentes como China e Índia. Esse
crescimento vem acompanhado da mudança do padrão de consumo. As pessoas não só
comem mais, como procuram mais carne, ovos, laticínios. Já que um quilo de
alimento animal implica em dez quilos de alimento vegetal na forma de rações, a
demanda por grãos cresce.
2. O incremento do processo de
urbanização tem feito com que antigos camponeses, agora habitantes de favelas
ou subúrbios, deixem de produzir seu próprio alimento, tendo que garantir seu
sustento no mercado.
Ou fatores
relacionados à oferta, como:
1. Quebras de safra em países como
Austrália e China, devido à mudanças climáticas que vêm afetando regiões
agrícolas em todo o mundo.
2. O aumento dos preços dos
fertilizantes e fretes em decorrência da forte elevação dos preços do petróleo.
3. A utilização de bens alimentares
para a produção de agrocombustíveis, como a beterraba e a canola na Europa, a
soja no Brasil e, particularmente, o milho nos Estados Unidos, onde se gasta
10% da produção mundial desse grão para obter etanol.
4. A redução dos estoques
internacionais de trigo, milho e soja, apesar de a produção agrícola mundial
ter crescido em 4% na safra de 2006/07.
5. A desvalorização do dólar enquanto
unidade do mercado internacional. Como Delfim Netto destacou2,
comparando o The Economist Commodity Price Index – índice de preços de
commodities medido em dólares com o em euros, a mesma cesta de produtos está
70% “mais cara” em moeda americana.
Ou elementos mais
estruturais como:
1. Três décadas de acordos de livre
comércio e políticas neoliberais que, nas palavras de Peter Rosset, do Centro
de Estudos para a Mudança no Campo Mexicano (Ceccam), desmantelaram a capacidade
da maioria dos países de produzirem o seu próprio alimento enquanto promoviam a
agricultura de exportação e o crescimento das empresas transnacionais. Dessas
grandes companhias com sede principalmente nos EUA e Europa, quarenta compõem o
cartel das seis transnacionais de grãos (Cargill, Continental CGC, Archer
Danields Midland, Louis Dreyfus, Andre Corporation e Bunge), que passaram a
controlar a produção e a comercialização dos principais produtos. Segundo a
organização não governamental ActionAid, nos meses recentes a Cargill teve um
aumento de 86% em seus lucros e a Archer Daniels Midland, de 700% nos ganhos de
sua divisão de serviços agrícolas.
2. A insuficiência de investimentos na
agricultura pelos Estados, particularmente em função do impacto das políticas
neoliberais nos países em desenvolvimento. Comparado com outros setores, a
situação da agricultura é grotesca. O gasto militar global cresceu 45% nos
últimos dez anos. Em 2007, a despesa com defesa equivaleu a U$ 202 por
habitante, alcançando a cifra astronômica de U$ 1,34 trilhão, o que representa
190 vezes mais do que os participantes da recente cúpula sobre Segurança
Alimentar da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a
Alimentação) prometeram investir no combate à fome no mundo.
3. O jogo duplo dos governos das nações
desenvolvidas. Por um lado, dão subsídios e colocam barreiras para garantir sua
própria produção agrícola com preços que configuram como dumping sobre outros
países (são U$ 50 bilhões anuais de subsídios na União Européia). Por outro,
exigem a liberalização dos mercados dos países em desenvolvimento,
desestruturando, em muitos casos, a soberania alimentar dos mesmos. Até 1960, a
grande maioria dos países era auto-suficiente na produção dos alimentos. Hoje,
70% das nações do hemisfério sul, onde vivem 4,8 bilhões de pessoas, se
transformaram em importadores desses produtos.
4. A catástrofe em câmara lenta
apontada por especialistas em agricultura e desenvolvimento. Como Ladislau
Dowbor ressaltou3, a expansão da monocultura extensiva, das sementes
caras e monopolizadas, dos circuitos comerciais cartelizados, das tecnologias
pesadas, da esterilização dos solos por excessiva quimização (a cada ano
perde-se 1,5 milhão de hectares cultivados em função da salinização das terras)
e da irrigação em grande escala com esgotamento dos aqüíferos (hoje a
agricultura consome 70% de toda a água potável) estão provocando um círculo
vicioso de desestruturação que ameaça o planeta.
5. A especulação nas bolsas de futuro,
que transforma a fome do mundo na nova fonte de lucro do capital financeiro.
Depois da crise
imobiliária...
Como se pode ver, o debate sobre as causas do aumento
do preço dos alimentos não é neutro. Em função de seus interesses e concepções,
diversos atores têm destacado alguns fatores ou diluído as suas
responsabilidades no conjunto deles. Tomemos só uns poucos exemplos. Para o
presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, ex-ministro de relações
exteriores do governo Bush, “a culpa” da crise seria “de todo mundo”. E por
isso a saída é fazer um novo acordo, nos marcos da Organização Mundial de
Comércio, visando um outro patamar de preços e produção. Já para o governo
Lula, “a culpa” seria dos subsídios à agricultura dos países ricos. Se eles não
existissem, os agricultores do sul poderiam aumentar sua produção e exportar a
menor preço. Para empresas transnacionais de alimentos e bebidas como a Nestlé,
Unilever, Kellogs, Danone, Cadbury, Mars, Heineken e Pepsi-Cola, como
argumentaram em carta recente ao Conselho Europeu, que reúne os 27 presidentes
do bloco, os agrocombustíveis são o principal fator da alta dos preços
agrícolas. Solicitam assim que a UE desista da meta de misturar 10% de etanol
aos combustíveis até 2020, pois isso implicaria numa “mudança dramática” do uso
da terra na Europa. A produção de agrocombustíveis, acreditam, é “eticamente
indefensável”4.
Vários acadêmicos e militantes de movimentos sociais e
organizações não governamentais reconhecem o conjunto de causas, mas apontam
que para explicar o aumento exponencial dos preços dos alimentos é preciso dar
mais atenção à especulação. Segundo Boaventura de Sousa Santos5,
estes aumentos especulativos – como também os do petróleo – seriam resultado do
capital financeiro (bancos, fundos de pensões, fundos de alto risco e
rendimento) ter começado a investir fortemente nos mercados internacionais de
produtos agrícolas depois da crise no setor imobiliário. Articulado com as
empresas transnacionais que controlam a comercialização de sementes e a
distribuição mundial de cereais, o capital financeiro investe no mercado de
futuros na expectativa de que os preços continuarão a subir. E, ao fazê-lo,
reforça essa expectativa. Peter Rosset concorda com a avaliação e lembra que
61% de todos os contratos futuros de trigo dos Estados Unidos estão detidos por
fundos de risco multimercados. Estudos da ActionAid apontam que a especulação
nos mercados futuros movimentou US$ 1 bilhão diariamente entre fevereiro e
março deste ano, volatilizando os preços e afastando-os da realidade da
produção.
O mercado agrícola internacional apresenta novos
perigos em termos de imprevisibilidade e irracionalidade. “No passado, oferta e
demanda, chuva e seca direcionavam os preços futuros de grãos”, analisa
Fernando Muraro, da Agência Rural. Nos últimos anos, perdeu-se essa formação
básica e a volatilidade dos preços que historicamente era de 20% chegou a 50%.
Essas novas tendências do mercado agrícola são promovidas, em boa parte, pela
entrada de novos fundos. E o ritmo acelerado do mercado futuro chega a negociar
22 safras anuais de soja. Só os fundos são responsáveis por oito delas. Em
2007, o mercado futuro agrícola da Chicago Board of Trade (bolsa de mercadorias
da cidade de Chicago) negociou 7,3 bilhões de toneladas de milho, 4,3 bilhões
de soja e 2,7 bilhões de trigo. Enquanto a produção física desses produtos em
2007 foi de 780 milhões, 220 milhões e 606 milhões de toneladas,
respectivamente6.
Novos milhares de fundos se especializam em nichos.
Quando o governo americano reduziu a taxa de juros, as aplicações de renda fixa
ficaram menos atraentes e os fundos ampliaram os investimentos com ações na Dow
Jones, passaram pela Nasdaq, inflaram o mercado imobiliário americano e
europeu, migraram para as commodities minerais como o petróleo e chegaram nas
agrícolas.
Na visão tradicional de alguns analistas, os fundos não
criam mercados, mas apenas vão onde existe liquidez. Quem criaria os mercados seriam
os hedgers (cooperativas, grandes atacadistas, exportadores e outros agentes
comerciais que produzem ou utilizam as commodities). Os investidores nos
mercados de ações conhecidos como day traders – que em muitos casos são os
fundos –, apenas aumentariam ou diminuiriam a febre dos preços, a volatilidade
que viria do desencontro entre a oferta e a demanda.
Muito além da oferta e
demanda
Mas sob uma visão crítica, os preços atuais escondem
muito mais que o jogo da oferta e da demanda. Segundo Muraro, o mercado
registrou, no ano passado, os maiores estoques de soja da história e mesmo
assim os preços explodiram. Em agosto de 2007, a saca do produto na bolsa de
Chicago estava a U$ 17,60. Em fevereiro de 2008, havia aumentado a U$ 35 e em
abril, recuava para U$ 24. Mais que oferta e demanda, o que existe é uma
financeirização do mercado que veio para ficar e está gerando um novo boom para
as commodities. Os riscos aumentaram, porém não desagradaram os participantes
dessa ciranda especulativa. Para os produtores pode significar preços maiores.
Para os investidores, a possibilidade de incrementar lucros. Para as bolsas,
uma liquidez mais atraente. Para os pobres, fome.
O aumento das transações agrícolas não se dá só no
exterior. No Brasil, a BM&F Bovespa vem duplicando anualmente as operações.
Em 2005, foram U$ 12,5 bilhões; em 2007, U$ 24,3 bilhões; e em 2008 poderão ser
negociados U$ 45 bilhões. Os capitais estrangeiros já representam 17% de seus
negócios7. Até em Washington a atuação dos especuladores financeiros está sendo
questionada. Os senadores Karl Levin e Joseph Lieberman têm criticado as
autoridades regulatórias do governo por não reprimirem a especulação. Lieberman
está trabalhando numa proposta que proíbe a atuação dos grandes investidores
institucionais no mercado de commodities8.
Enquanto isso, alguns investidores institucionais estão
fazendo apostas mais ousadas e de longo prazo, adquirindo terras aráveis,
depósitos de fertilizantes, silos para armazenar grãos e equipamentos de transportes.
Fundos como Black Rock são proprietários de terras aráveis na África
sub-saariana, no Brasil e até na Inglaterra, e a Calyx Agro está adquirindo
milhares de hectares brasileiros. Investidores chineses, americanos, franceses,
holandeses e ingleses estão comprando usinas no Brasil e formando um estoque de
terras que rende uma valorização acelerada semelhante à especulação típica das
zonas urbanas. A Braemar Group está investindo em terras no Reino Unido que,
segundo executivos da empresa, têm “atraso” nos preços, já que custam 50% menos
que as na Irlanda e na Dinamarca9.
Mercado financeiro: a
causa oculta
Com o controle da terra e outros negócios agrícolas, os
fundos ficam livres das regras que visam limitar as apostas especulativas no
mercado de commodities. Através dos silos, seriam capazes de comprar e vender
grãos físicos, e não apenas seus derivativos financeiros. Quando os preços
estão em alta, manter estoques para a venda futura pode oferecer lucros maiores
do que atender à demandas correntes. Ou, caso haja preços divergentes em outras
partes do mundo, os estoques podem ser despachados ao mercado mais lucrativo.
Com estas aquisições, os investidores financeiros estariam em condições de
reproduzir a especulação através do bloqueio da oferta com retenções de
estoques para forçar uma alta artificial dos preços10.
Como afirma Boaventura de Sousa Santos, o que há de
novo na fome do século XXI diz respeito não só às causas, mas principalmente ao
modo como as principais delas são ocultadas. A diluição da responsabilidade
pela especulação é um claro e perigoso exemplo. A fome hoje é a nova grande
fonte de lucros do capital financeiro. “É preciso acabar com a especulação
financeira e com o mercado futuro de alimentos, que joga roleta russa com
nossas vidas”, arrisca, esperançosa, a ativista iraniana Maryam Rahmanian, da
organização Cenesta. Mais pragmática, a ActionAid aposta em algumas medidas a
serem apresentadas, debatidas e adotadas na Conferência das Nações Unidas, que
ocorre em setembro deste ano. Elas pretendem cumprir a difícil tarefa de inibir
a especulação financeira que aflige a produção de alimentos: estoques
regulatórios maiores, limite para as posições de compra e venda, aumento da
margem de depósitos requeridos e taxação de transações especulativas. As
dificuldades são enormes, mas o acesso aos alimentos é ainda maior a luta pelo
direito elementar à vida.
Jorge O. Romano é doutor em Ciências Sociais pelo CPDA
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e integra a ActionAid
Brasil.
- Folha de S.Paulo, 07/06/2008.
- Folha de S.Paulo, 14/05/2008.
- Em entrevista para o IHU Online, em 19/05/2008. Para ler, acesse http://www.unisinos.br/ihuonline/
- Valor Econômico, 20/06/08.
- Revista Carta Maior, maio de 2008.
- Folha de S.Paulo, 26/05/08.
- Folha de S.Paulo, 26/05/08.
- Folha de S.Paulo, 17/06/08.
- Folha de S.Paulo, 06/06/08.
- Folha de S.Paulo, 06/06/08.
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