Por Wilson
Roberto Vieira Ferreira
Em 1940 um artigo denunciava os chamados “sete
dispositivos da Propaganda” e exortava os leitores a detectá-los por ser uma
necessidade absolutamente vital para não serem enganados. Setenta e três anos
depois esses dispositivos continuam ativos apesar da absoluta obviedade,
exagero, “overacting” e, principalmente, canastrice dos intérpretes desses
verdadeiros scripts que são reeditados sob uma roupagem moderna e descolada por
marqueteiros e publicitários. Como é possível que depois de tanto tempo esses
dispositivos continuem na linguagem da mídia, da Política, do Marketing e da
Publicidade? E, apesar da explícita natureza fake e não-espontânea desses
dispositivos, continuam a pautar a sociedade e conquistar corações e mentes.
Qual a causa dessa invasão da canastrice na política e na esfera pública?
Nesse final de semana um amigo mostrou-me um antigo
exemplar de uma revista de artes gráficas norte-americana chamada “Print - A
Quartely Journal of the Graphic Arts” de setembro de 1940. É muito mais do que
uma revista, pois combina delícias visuais e belíssimas fotografias com textos
pesados e com foco sério.
A revista abre com um ensaio intitulado “Propaganda e
Artes Gráficas – a influência na opinião pública para a Unidade Nacional” de
William E. Rudge. O texto nos oferece diversos exemplos de “mensagens
positivas”, abordando como o design gráfico pode ser uma ferramenta para
“condicionar o comportamento humano”. Rudge escreve: “é absolutamente vital
distinguir, através da compreensão e análise, a boa e a má propaganda. Não se
deixe enganar!”.
O mais notável é uma lista que o autor faz dos “Sete
Dispositivos de Propaganda para os quais devemos estar atentos”.
Os sete dispositivos descritos pelo autor parecem ser
um tanto óbvios. Mas o incrível para mim é que, ainda em 2013, esses
dispositivos clichês, exagerados, óbvios, saturados ou “overacting” (essa
expressão inglesa parece ser a que melhor define-os) ainda são as principais
ferramentas de engenharia de opinião pública. Vemos esses dispositivos o tempo
todo sendo usados por políticos, relações públicas de empresas e “front
groups”, reportagens em telejornais, discursos de porta-vozes de governos e
peças publicitárias. A cada crise, eleições ou intervalos publicitários, lá
encontramos esses mesmos dispositivos, reeditados em formatos modernos, descolados
e antenados.
Por que tais dispositivos ainda continuam mobilizando
pessoas, moldando a opinião pública e agendando a pauta de discussões das
mídias e entre as pessoas? Como é possível que táticas tão caricatas, antigas e
surradas ainda têm credibilidade e ressonância na sociedade?
Para tentar encontrar uma resposta, em primeiro lugar
vamos enumerar e atualizar esses sete dispositivos explicados por Rudger.
1. Dispositivo de
Estereotipagem
Incita as pessoas a criarem um julgamento sem examinar
a evidência no qual o objeto possa estar baseado. Os propagandistas apelam para
os nosso ódio e medo. Isso é feito ao aplicar “xingamentos” a indivíduos,
grupos, nações, raças, políticas, práticas ou crenças. Em telejornais, qualquer
show popular na periferia onde ocorreu um crime, chacina ou desordem é rotulado
como “baile funk”. Qualquer culto afro-brasileiro é associado a “macumba”.
“Terrorista”, “radicais”, xiitas ou “muçulmanos” são rótulos genéricos que dão
nomes aos nossos temores mais irracionais. Suas fotografias são caricatas e
exageradas – barbas mal aparadas, olhos esbugalhados ou ferinos, enfim, rostos
de “maus”. A estereotipagem é evidente por si mesma, não são necessárias provas
ou evidências. Por exemplo, em um “baile funk” só pode ocorrer coisas ruins. Ou
pessoas com aquelas caras só podem ser terroristas.
Propagandistas criam a identidade de um programa
através de “palavras virtuosas”. Aqui se encontra o apelo a emoções como amor,
generosidade e amizade. Usam-se palavras genéricas contra as quais ninguém pode
se contra: liberdade, verdade, honra, justiça social, interesse público,
direito ao trabalho, lealdade, progresso, democracia, defesa da Constituição
etc. Se um artista como Bono Vox faz uma turnê com sua banda U2 pelo “fim da
fome e da pobreza na África”, quem poderá se insurgir contra um desejo tão
virtuoso? Afinal, Bono Vox está fazendo a “sua parte”. Essas palavras sugerem
brilhantes desejos de “homens de boa vontade”. Mas, concretamente, o “como”
realizar tais ideais é colocado entre parêntesis. Afinal, cada um faz “a sua
parte”. Outra pessoa que ponha em prática. A tática da estereotipagem nos
influencia a criar um julgamento para rejeitar e condenar sem provas. A tática
das generalidades brilhantes nos faz aceitar e aprovar sem nenhum exame crítico
dos possíveis meios para alcançar o ideal divulgado.
3. Dispositivo de
Transferência
Propagandistas transferem algum tipo de autoridade,
sanção ou prestígio de alguma coisa que nós respeitamos ou reverenciamos para
algum programa que querem que aceitemos. Alguém se torna “presidente de honra”
de uma empresa para que transfira seu prestígio ao novo presidente que o
substituirá. Um jovem candidato é fotografado ao lado de uma lenda da política.
Ou um cientista com pesquisas no exterior se deixa fotografar com a camisa
aberta para que vejamos uma outra verde-amarela para conseguir a sanção
nacionalista da opinião pública. Símbolos são constantemente usados: a cruz, a
bandeira, combinações de cores etc.
4. Dispositivo do
Testemunhal
Aceitamos qualquer coisa, de uma patente médica ou um
cigarro a um programa de política pública. O propagandista lança mão de
testemunhos. Um recurso metomínico da parte substituir um todo. Um depoimento
de um só médico, de uma só celebridade ou de um popular garante a aceitação do
programa ou produto. A evidência está na visibilidade do testemunho.
(Visibilidade x fama = Credibilidade). Essa fórmula resolve o problema lógico
de um só exemplar representar a totalidade de um gênero.
5. Dispositivo da
Pessoa Simples
O mito da “pessoa simples” é o dispositivo usado por
líderes políticos, homens de negócios, ministros, cientistas ou celebridades
para ganhar nossa confidencia e parecerem “pessoas como nós”. Candidatos
mostram sua devoção com crianças no colo de potenciais eleitores; um emérito
cientista torce por determinado time de futebol no twitter. À época da ascensão
dos Nazistas ao poder nos anos 1930, a imprensa divulgava fotos de Hitler na
sua vida privada ao lado de seus cães. Na revista “Life” Mussolini posava em
uma foto com seus filhos e netos nessa mesma época.
6. Dispositivo das
"Cartas Empilhadas"
Propagandistas contam uma única parte da verdade. Mas é
como empilhasse cartas sobre a verdade, de tal maneira que um lado ou fator
será mais enfatizado do que o outro. Dados estatísticos, gráficos e tabelas
nada dizem, a não ser criar uma espiral de interpretações: números absolutos
são tomados como verdade, esquecendo-se dos números relativos. A inflação caiu,
mas por outro lado, podemos dizer que ela subiu, porém em um ritmo menor...
Propagandas de pasta de dentes são hábeis em contar meias verdades: uma tem
“flúor garde”; outra diz ser “antitártaro”, como qualidades únicas e
exclusivas. Omitem que todas as pastas têm flúor e são antitártaros.
Uma variação desse dispositivo é o doublespeak (dupla
fala) onde alterações de palavras podem alterar a resposta emocional do
público. Por exemplo, a utilização do jargão pode contaminar a compreensão,
obscurecendo o verdadeiro significado que seria passado com palavras diretas. A
expressão “artilharia aérea” substitui a palavra “bomba”. “Defesa” é colocada
no lugar de “Guerra”. Enchentes viram “pontos de alagamento” e quebras em
composições de trem e metrô tornam-se “falhas pontuais no sistema”.
7. Dispositivo do
“Carro de Propaganda”
Esse dispositivo nos faz seguir a multidão, aquilo que
supostamente a maioria pensa e faz. Ou, pelo menos, o que a gente pensa que a
maioria pensa e faz. O tema aqui é “todos estão fazendo isso”. Como ninguém
quer ser deixado para trás por temer a solidão, exclusão ou esquecimento,
queremos seguir a tendência majoritária. Está associado ao conceito de “Espiral
do Silêncio” de Elizabeth Noelle-Neumann onde a criação de um “clima de
opinião” pode isolar grupos discordantes até a extinção pela sua autopercepção
do isolamento. “Havaianas: todo mundo usa!”. Poderíamos responder, “todo mundo
quem, cara pálida!” O slogan quer criar o clima de opinião onde pessoas
isoladas, temendo ficarem de fora da “onda”, embarquem em uma mera percepção
psicológica sem fundamento real, o “carro da propaganda”. Claramente esse
dispositivo baseia-se no medo de ficar excluído e no ódio daqueles que estejam
fora do grupo, da massa, da maioria ou da nação.
A Canastrice na
Propaganda
Lendo esses sete dispositivos de propaganda é nítido
que eles se baseiam nos instintos mais básicos humanos: medo, ansiedade e sexo
– este último latente no dispositivo do testemunhal onde sex appeal reforça a
conexão retórica entre “celebridade” e causa, programa ou produto.
Mas apenas isso não explica a longevidade dessas
táticas.
Há algo na estética de tudo isso que incomoda pela
previsibilidade e canastrice dos atores que representam os scripts elaborados
por publicitários, relações públicas e marqueteiros.
Em postagem anterior (veja links abaixo) analisávamos o
filme “Mera Coincidência” (Wag The Dog, 1997) onde um presidente concorrendo à
reeleição nos EUA é envolvido em um escândalo sexual. Com a ajuda de um
produtor de Hollywood e um relações públicas cria uma guerra fictícia com a
Albânia como estratégia de desvio da atenção. Um suposto vídeo real (na verdade
produzido em estúdio) é exibido pelas emissoras de TV: vemos uma jovem albanesa
com um gatinho branco nos braços fugindo de terroristas estupradores em meio ao
fogo cruzado de bombas e incêndios. Tudo muito melodramático, “over”, kitsch,
estereotipado e com o “appeal” e “look” semelhante às produções medianas de
Hollywood e “sitcons” do horário nobre. Apesar disso, jornalistas e a opinião
pública mordem a isca do suposto vídeo “vazado” como fosse um vídeo
documental.
Fica a questão: como ninguém percebe a evidente
natureza ficcional do vídeo, feito com recursos estéticos manjadissimos do pior
do cinema e TV? A opinião pública não percebe a natureza “fake” ou “forçada”
destes pseudoeventos porque própria estrutura de percepção do real já foi
alterada anteriormente por décadas de cultura pop: tomar o real não a partir
dele mesmo, mas a partir dos seus simulacros.
Depois de
décadas de cultura pop visual nossa percepção para o real foi invertida pelo
hiperrealismo das imagens: tomamos o real não mais por ele mesmo, mas a partir
de imagens anteriormente feitas dele. Olhamos nossos filhos a partir das suas
fotos e vídeos caseiros, vamos a pontos turísticos esperando que eles confirmem
as fotos dos folders promocionais do pacote de viagem.
Se observarmos as fotos de momentos íntimos e afetivos
postadas no Facebook perceberemos um grande número de imagens que reproduzem os
clichês de composição visual dos filmes hollywoodianos – amantes se beijando
tendo o sol poente em contraluz, namorados correndo para se abraçarem com o mar
azul ao fundo etc.
Ou seja, toda a canastrice dos intérpretes desses
dispositivos de propaganda e a obviedade dos scripts não são percebidos como
fakes, forçados ou não-espontâneos, pois a nossa percepção do real já está há
muito tempo invertida por gerações de vivência em ambientes midiáticos e,
principalmente visuais.
Apesar de toda obviedade e “overacting” esses sete
dispositivos da propaganda ainda continuam conquistando corações e mentes. A
canastrice dominou a Política.
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