Por José Luís Fiori
Qual foi o ponto de partida político do “milagre
econômico” chinês, a que se refere insistentemente Deng Xiaoping? Para os
chineses, o desenvolvimento capitalista é apenas um instrumento a mais de
defesa de sua civilização milenar, contra os sucessivos cercos e invasões dos
“povos bárbaros”.
“Sou leigo no
campo da economia. Fiz alguns comentários a respeito do assunto, mas todos de
um ponto de vista político. Por exemplo, propus uma política de abertura
econômica chinesa para o mundo exterior, mas, quanto aos detalhes ou
especificidades de sua implementação, sei muito pouco de fato.”
Deng Xiaoping, cit. In H. Kissinger, Sobre a China, Ed
Objetiva, RJ, 2011, p: 331
A história não se repete, nem pode ser transformada em
receita. Mas ela pode ensinar os que desejam aprender, como se fosse um velho e
bom professor.
Haja vista, o caso do extraordinário desenvolvimento
econômico chinês das últimas décadas. A explicação dos economistas costuma
sublinhar a importância demiúrgica das reformas liberalizantes, ou, a eficácia
das políticas econômicas heterodoxas, apesar de que Deng Xiaoping – considerado
pai do “milagre econômico chinês - sempre tenha insistido na natureza política
e estratégica do seu projeto reformista, muito mais do que econômica. Como se
ele estivesse apontando para a lua, enquanto os economistas insistissem em
olhar apenas para o seu dedo, devido a sua grande dificuldade de compreender
racionalidades que não se submetam à “lógica utilitária”. Sendo assim, qual foi
então este ponto de partida político do “milagre econômico” chinês, a que se
refere insistentemente Deng Xiaoping?
Não é fácil reconstruir e sintetizar um processo tão
complexo. Mas parece não haver duvida que “o grande salto capitalista” da
China, começou no final da década de 50, com a ruptura entre o comunismo chinês
e o soviético.
Uma ruptura ideológica que se transformou numa disputa de
fronteira, durante toda a década de 60, culminando com o conflito militar do
Rio Ussuri, em 1969. A partir daí, a URSS aumentou geometricamente sua força
militar junto à fronteira chinesa, e a China respondeu ao cerco russo, com seus
primeiro teste nuclear, em 1964, e com o lançamento do seu primeiro foguete
balístico, em 1966. O sentimento de ameaça e insegurança crescente, levou Mao
Tse Tung a convocar de volta, em 1969, um grupo quatro marechais do Exército de
Libertação Popular, que haviam sido expurgados pela Revolução Cultural – Chen
YI, Nie Rongzhen, Xu Xiangqian e Ye Jianying – com a tarefa de apresentar um
mapa das opções estratégicas da China, frente aos desafios criados pela ruptura
do bloco comunista. O diagnóstico da alta comissão militar foi terminante, e
suas propostas mudaram a história da política externa chinesa.
A URSS era definida como a principal ameaça à segurança
chinesa, e deveria ser contida através de uma politica militar de “defesa
ativa”, e de uma estratégia politica-diplomática “ofensiva”, de reaproximação
com os EUA. No ano seguinte, no dia 8 de dezembro de 1971, chegou à Casa
Branca, em Washington, a mensagem do primeiro-ministro, Chou en Lai, que deu
início à uma das transformações geopolíticas mais importantes do século XX. Em
nome da nova estratégia, na reunião presidencial de 1972, entre os presidentes
Mao e Nixon, Mao Tse Tung colocou entre parêntesis as divergências dos dois
sobre a questão de Taiwan, e propôs ao presidente Nixon uma “linha horizontal”
de contenção da URSS, que passava pelo Oriente Médio, e chegava até o Japão.
Na sequencia, e como forma de fortalecer a capacidade
defensiva da China, o primeiro-ministro Chou en Lai propôs, em 1975, o seu
programa das “4 modernizações” que foram implementadas por Deng Xiaoping, a
partir de 1978. Seguindo esta mesma estratégia, o governo de Deng Xiaoping
promoveu em 1979 uma invasão preventiva do Vietnã, para impedir a expansão da
influencia militar soviética na Indochina, com o conhecimento do Japão e com o
apoio logístico do governo Carter.
A nova estratégia militar e econômica encerrou
definitivamente a Revolução Cultural (1965-1974) e fortaleceu o estado central
chinês, que recuperou sua condição milenar de guardião moral da unidade e do
“interesse universal” do território continental e da civilização chinesa. Uma
sociedade multitudinária que se vê a si mesma como uma civilização superior,
homogênea e com pelo menos 2300 anos de existência, a despeito do “século de
humilhação” que lhe foi imposto à China, pela “barbárie europeia”, entre 1842 e
1945.
Depois do fim da URSS, a China se reaproximou da Rússia
e redefiniu seu “mapa estratégico”, mas manteve sua fidelidade ao ponto de
vista político de Deng Xiaoping: o desenvolvimento da China deve estar sempre a
serviço da sua política de defesa. Neste sentido, se nossa hipótese estiver
correta, e mesmo que a história não se repita, o mais provável é que a nova
Doutrina Obama de contenção da China reforce e expanda a “economia de guerra”
do país, acelerando e aprofundando sua “conquista do oeste” e sua integração
com a Rússia e com a Ásia Central. Por fim, esta história deixa uma lição
surpreendente: para os chineses, o desenvolvimento capitalista é apenas um
instrumento a mais de defesa de sua civilização milenar, contra os sucessivos
cercos e invasões dos “povos bárbaros”.
(*) José Luis Fiori é professor titular de Economia
Política Internacional da UFRJ e coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ
"O Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo".
(www.poderglobal.net)
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